Observatório constitucional

MI e seus respectivos limites constitucionais: análise do julgamento da renda básica

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

1 de maio de 2021, 8h00

Em um contexto de afirmação do compromisso do Estado com a guarda dos direitos fundamentais, a Constituição Federal instituiu o mandado de injunção como ação constitucional orientada para a tutela de direitos da pessoa ou liberdades constitucionais, na hipótese em que o exercício deles se veja injustamente obstaculizado por omissão estatal.

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O artigo 5º, LXXI, da Constituição prevê, expressamente, a concessão do mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. A regulamentação do permissivo constitucional se deu com a edição da Lei nº 13.300, de 23 de junho de 2016, que disciplinou o processamento e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo.

Ao lado desse instrumento destinado, fundamentalmente, à defesa de direitos individuais contra a omissão do ente legiferante, introduziu o constituinte, no artigo 103, § 2º, um sistema de controle abstrato da omissão. Assim, reconhecida a procedência da ação, deve o órgão legislativo competente ser informado da decisão para as providências cabíveis. Se se tratar de órgão administrativo, está ele obrigado a colmatar a lacuna dentro do prazo de 30 dias.

A expectativa gerada pela adoção desse relevante remédio constitucional resultou na impetração de inúmeros mandados de injunção perante o Supremo Tribunal Federal. Assim, em um curto período de tempo, o STF teve que se debruçar sobre o assunto e enfrentar os questionamentos, dificuldades e inquietações que são inerentes aos debates inaugurais de qualquer instituto jurídico. Nesse particular, faz-se necessária uma breve incursão na jurisprudência do STF, com vistas a propiciar um exame dinâmico das decisões judiciais que, ao longo de mais de duas décadas, contribuíram para o desenvolvimento do mandado de injunção e para a conformação do significado atual do instituto.

A questão não é nova e tem sido objeto de intensos debates jurídicos na Corte. A origem da orientação jurisprudencial hoje prevalecente no Supremo remonta ao julgamento do MI 107 (1990), em que a Corte apreciou, em caráter inaugural, questões relacionadas ao controle das omissões constitucionais. Na ocasião, deparando-se com a total ausência de regras processuais específicas, o Tribunal admitiu o cabimento do mandado de injunção, concebendo-o como ação constitucional vocacionada à certificação da mora legislativa. Perfilhou, contudo, a corrente não concretista, ao decidir que caberia ao Poder Judiciário a simples declaração da omissão estatal, a ser comunicada ao órgão legislativo em mora para que promovesse a integração do preceito constitucional invocado.

Já no julgamento do MI 283 (1991), o Tribunal avançou em direção à posição concretista individual e, pela primeira vez, assinalou prazo razoável para que o legislador colmatasse a lacuna normativa, alertando que, se persistisse a omissão, a satisfação dos direitos constitucionais negligenciados seria assegurada judicialmente.

No mesmo sentido o MI 232 (1992), em que o Tribunal fixou prazo de seis meses para edição da lei regulamentadora e, desde logo, estabeleceu as bases jurídicas para que o requerente desfrutasse da imunidade tributária prevista no artigo 195, § 7º, da Constituição Federal. Idêntica providência foi assegurada no MI 284 (1992).

A jurisprudência evoluiu e, no célebre julgamento dos MIs 670, 708 e 712, o Tribunal conferiu perfil concretista geral ao writ, engendrando solução normativa ampla para a omissão legislativa. Na ocasião, amparei-me nos ensinamentos de Rui Medeiros[1] para concluir pela excepcional admissibilidade de um modelo de sentença de perfil aditivo, tal como desenvolvido na Itália.

Na oportunidade, o Tribunal reconheceu a excepcionalidade da atuação do Judiciário em matéria de omissão estatal. Também assentou que as sentenças aditivas somente se legitimam se alcançarem a devida acomodação dentro do rol de competências do Supremo Tribunal Federal e, ainda assim, apenas se guardarem sintonia com o princípio da separação dos Poderes. Dessa forma, é forçoso reconhecer que, na linha do entendimento do STF, a atuação do Poder Judiciário como legislador positivo é admitida quando as decisões aditivas ou modificativas se limitam a integrar ou completar um regime previamente adotado pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora aquilo que os italianos chamam de "solução constitucionalmente obrigatória" (a rime obbligate).

E, como revelam os leading cases da matéria, a Suprema Corte, atenta à necessidade de agregar maior legitimidade à prolação de sentenças aditivas, tem observado rigorosamente tais parâmetros decisórios nas raras hipóteses em que atua mais incisivamente no controle de constitucionalidade de omissões legislativas. E essa maior legitimidade se deve precisamente à utilização de técnicas decisórias que limitam a um mínimo necessário a liberdade dos juízes na criação de regras concretas para possibilitar o exercício de direitos constitucionais negligenciados pelo legislador.

É o que ocorreu no julgamento dos referidos mandados de injunção, atinentes ao direito de greve dos servidores públicos, em que o Tribunal identificou um exemplo clássico de solução obrigatória pela perspectiva constitucional, a legitimar a adoção de técnicas decisórias inspiradas na declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, do direito alemão, e nas sentenças aditivas e modificativas, do direito italiano.

Na mesma linha, durante o julgamento do mencionado MI 232, o Tribunal também reconheceu uma solução constitucionalmente obrigatória, à vista do reduzido campo de discricionariedade do legislador quanto à regulamentação da imunidade tributária outorgada a entidades beneficentes de assistência social (art. 195, § 7º).

Além das hipóteses em que o substrato da decisão judicial trilha o único caminho constitucionalmente aceito (a rime obbligate), a orientação jurisprudencial prevalecente no Tribunal sinaliza para a utilização de outras salvaguardas institucionais para legitimar atuação excepcional do Judiciário como legislador positivo.

De fato, em muitos casos, ao concluir pela existência de omissão legislativa, o Tribunal demonstrou preferência pela utilização de parâmetros normativos preestabelecidos no ordenamento jurídico, os quais foram estendidos, por analogia, para possibilitar o exercício de direitos constitucionais negligenciados pelo legislador. Para bem ilustrar esse raciocínio, destaco que tanto na discussão do direito de greve do servidor público (MIs 670, 708 e 712) quanto na controvérsia sobre a aposentadoria especial do servidor público (MI 758), a Corte debelou o vácuo legislativo por meio da adoção de parâmetro normativo preestabelecido, estendendo para o caso dos autos normas jurídicas definidas pelo Congresso Nacional para situação similar.

No julgamento dos MIs 670, 708 e 712, assegurou o Tribunal a efetividade do direito constitucional de greve, aplicando aos servidores públicos civis as disposições da Lei nº 7.783/1989 relativas aos movimentos grevistas da iniciativa privada. Esse mesmo raciocínio foi utilizado no julgamento do MI 758, em que se estenderam aos servidores públicos as regras previstas na Lei nº 8.213/1991, que versam sobre aposentadoria especial dos trabalhadores em geral.

Esse levantamento das raízes históricas do entendimento prevalecente no Supremo permite identificar um certo padrão decisório em se tratando de controle judicial das omissões do poder público. Afastando-se do entendimento inicialmente adotado, de índole não concretista, o Tribunal passou a perfilhar solução conciliatória que, a um só tempo, reafirma a efetividade do mandado de injunção e preserva as bases da democracia representativa, especialmente a liberdade de atuação das instâncias políticas.

A partir da experiência do direito italiano, o Tribunal tem, excepcionalmente, admitido sentenças de perfil aditivo, evitando postura meramente contemplativa em face de lesão concreta a direitos reconhecidos pelo texto constitucional. Nessa perspectiva, a atividade de integração do ordenamento jurídico, notadamente no julgamento de mandados de injunção, deve ser exercida com cautela, parcimônia e, sobretudo, deferência ao Poder Legislativo.

Atuações mais incisivas do Tribunal, reservadas para os casos de manifesta inoperância do legislador, têm se limitado aos casos em que o Supremo Tribunal Federal identifica uma solução obrigatória na perspectiva constitucional (a rime obbligate). Em outras palavras, atenta à excepcionalidade do instituto, a Corte absteve-se de proferir decisões aditivas sempre que vislumbrou um leque de alternativas constitucionalmente admissíveis para a solução de omissão legislativa, por reconhecer que a conformação de políticas públicas compete exclusivamente aos representantes democraticamente eleitos.

No mais, nas raras hipóteses em que prolatou decisões manipulativas com efeitos aditivos, o Tribunal sinalizou preferência por soluções que incorporam parâmetros normativos preestabelecidos, ou seja, limitou-se a estender, por analogia, critérios definidos pelo legislador para situações similares.

Vê-se, pois, que a Corte tem observado critérios rígidos no controle incidental de omissões estatais, de modo a limitar a discricionariedade dos juízes na prolação de sentenças aditivas.

Essas as balizas que empiricamente têm orientado a atuação do STF no julgamento de mandados de injunção foram bem analisadas no julgamento do MI 7.300. Na oportunidade, discutia-se a possível omissão administrativa do Poder Executivo Federal em implementar a renda básica prevista no artigo 1º da Lei 10.835/2004. Defendia-se, nesse sentido, que, não obstante o legislador tenha determinado a implementação progressiva do benefício, com priorização das camadas mais necessitadas da população, passados mais de 17 anos da promulgação da Lei nº 10.835/2004, o Programa Renda Básica de Cidadania ainda não havia sido regulamentado pelo Chefe do Executivo.

Vale destacar que, no caso concreto, o impetrante alegava carecer dos recursos necessários para manutenção de existência digna, sobrevivendo apenas com recursos recebidos do Programa Bolsa Família, no valor de R$ 81.

Na oportunidade, a questão foi analisada com base no dever do Estado no combate à pobreza e na assistência aos desemparados, situado nos arts. 3º, 6º e 23 da Constituição.

A primeira norma constitucional é indene de dúvidas em apontar, como um dos objetivos da nossa República, que devemos "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", enquanto a terceira repassa a todos os níveis da Federação a determinação de "combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos", com auxílio da sociedade. Por sua vez, a segunda norma promana como direito social básico a assistência aos desamparados, na forma da Constituição e do ordenamento jurídico.

Uma das formas de concretização do mandamento constitucional somente adveio com a Lei nº 10.835/2004, a qual instituiu a renda básica de cidadania. Além de criar a renda básica de cidadania, a lei pontuou que: (i) "caberá ao Poder Executivo fixar o valor", desde que "em estrita observância ao disposto nos artigos 16 e 17 da” Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF – Lei Complementar nº 101/2000); (ii) a quantia “deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias”; (iii) a abrangência da cobertura da população “deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população”; (iv) o pagamento “poderá ser feito em parcelas iguais e mensais”; (v) não será tributável “para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas”; e (vi) o PPA e a LOA deverão “especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do Programa”.

Sendo assim, a contrario sensu, concluiu-se que a lei abre brechas interpretativas sobre: (a) a fixação do valor observar o binômio: grau de desenvolvimento do País e possibilidade orçamentária, tendo em vista que aquele deverá ser “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias”; (b) a existência de diferentes etapas de cobertura populacional, “priorizando-se as camadas mais necessitadas da população”; e (c) a periodicidade do pagamento (poderá ser mensal, semestral ou anual etc.).

Partindo-se para um exame acerca da proteção insuficiente de combate à pobreza, notou-se que, apesar da política pública inclusiva e necessária do Bolsa Família, que fixou a transferência direta de renda aos seus beneficiários, formulada em benefícios básicos e variáveis, as análises do Banco Mundial indicavam que o contingente nacional vinculado à pobreza e à extrema pobreza perdeu mais renda comparado aos demais estratos populacionais

A despeito da existência dessa política pública, quase 5 milhões de brasileiros retornaram para a extrema pobreza, sendo justificado, entre outras circunstâncias, pela inexistência de reajustes anuais para reposição da inflação. Sendo assim, restou claro que essa política pública necessitava de atualização ou repaginação, eis que, apesar da enorme contribuição para retirada de milhões de pessoas da extrema pobreza até 2014, desde então, a situação havia se deteriorado, a recomendar uma correção de rumos.

Do que ressoa do caso, o que estava em jogo era a verificação do cumprimento de um dever de proteção constitucional (Schutzpflicht), que visa a tutelar garantias individuais da mais absoluta centralidade para a ordem democrática: a promoção do combate à pobreza, como condição de superação das desigualdades sociais e econômicas. Nesse sentido, os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote).

Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).

No caso concreto, verificou-se que, se compararmos o poder de compra em relação ao salário mínimo, enquanto, em 2004, o valor do benefício básico equivalia a 19,23% do salário mínimo (R$ 50,00 : R$ 260,00), atualmente, corresponde a 8,09% do mesmo comparativo (R$ 89,00 : R$ 1.100,00).

Em relação ao poder de compra em si, é evidente que aqueles cidadãos estratificados abaixo da linha da extrema pobreza perderam mais de metade de sua capacidade econômica de prover a sua subsistência e de sua família, aumentando o nível de desigualdade entre as camadas mais pobres da população e aqueles que percebem apenas um salário mínimo.

Durante o julgamento, destacou-se que não se desconhecia que a Lei nº 10.836/2004 estabeleceu o Programa Bolsa Família como um conjunto de “ações de transferência de renda com condicionalidades” e constou como objetivo básico daquele o combate à pobreza (art. 4º do Decreto 5.209/2004). Entretanto, há proteção insuficiente quanto ao combate à pobreza e à extrema pobreza, como restou demonstrado, sobretudo em relação à parcela mais vulnerável da população brasileira.

Seguindo essa linha de raciocínio, os valores básicos e/ou variáveis do Programa Bolsa Família necessitariam de atualização para se adequarem à realidade econômico-social no período pós-pandemia. Diante desse cenário, entendeu-se ser o caso de se fazer um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que reformulassem os programas sociais de transferência de renda em vigor, mormente a Lei nº 10.835/2004, e, ainda, para que atualizassem as quantias do Programa Bolsa Família (Lei nº 10.836/2004), diante das distorções acima apontadas.

Dessa forma, a conclusão foi no sentido de determinar ao Presidente da República que implementasse, “no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito (2022)”, a fixação do valor disposto no art. 2º da Lei nº 10.835/2004 para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica (extrema pobreza e pobreza — renda per capita inferior a R$ 89 e R$ 178, respectivamente), devendo adotar todas as medidas legais cabíveis. Também se concluiu pela necessidade de formulação de um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotassem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do programa Bolsa Família, isolada ou conjuntamente, e, ainda, para que aprimorassem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, unificando-os, se possível.

O mandado de injunção é, certamente, um importante meio para a garantia de direitos fundamentais, que, conforme se verifica a partir do histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assumiu relevante papel nos julgamentos da Corte. Isso porque esse instrumento se revela como um valoroso mecanismo processual apto ao preenchimento de lacunas normativas que, em maior ou menor extensão, esvaziam a eficácia das garantias previstas na Constituição Federal, inclusive referentes a temas centrais de nossa República, a exemplo da existência digna de milhões de brasileiros, como visto no exemplo analisado no presente artigo.


[1] MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 1999, pp. 493-494.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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