Contas à vista

Desvio educacional paulista segue na contramão do STF e do Plano Biden

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29 de junho de 2021, 8h00

Enquanto o Brasil se arrasta em meio ao caos político e sanitário, países mais adiantados na vacinação da Covid-19 projetam o futuro mediante rediscussão estrutural do papel do Estado e, por conseguinte, reavaliam suas regras fiscais em caráter qualitativo. Há até quem anuncie um novo consenso macroeconômico.

Spacca
Em debate está a própria noção do que seja investimento a justificar expansão do endividamento público. O plano trilionário do governo Joe Biden nos Estados Unidos tem sido um grande catalisador de tais reflexões. Ali, entre outras agendas, há a priorização do esforço de se ampliar a oferta de educação gratuita desde a primeira infância até o ensino superior.

Paul Krugman, a esse respeito, suscita que o Estado deve abraçar o "lado mais macio da infraestrutura". Segundo o premiado economista, é preciso revisitar e atualizar o que se entende tanto por investimento, quanto por infraestrutura:

"A ideia de que o investimento não é real se não envolver aço e concreto seria uma novidade para o setor privado. É verdade, lá nos anos 1950, cerca de 90% dos gastos em investimento das empresas foram em equipamento e estruturas. Mas hoje em dia mais de um terço do investimento das empresas é em 'propriedade intelectual', principalmente P&D e compras de software.
As empresas, portanto, acreditam que podem alcançar resultados reais investindo em tecnologia
visão ratificada pelo mercado de ações, que hoje atribui um alto valor às companhias com relativamente poucos ativos tangíveis. O governo pode fazer o mesmo? Sim, pode.
(…) E que tal os gastos em pessoas, que correspondem a centenas de milhões e poderão ser o principal foco de uma proposta adicional? Há evidência avassaladora de que é uma boa ideia.
A verdade é que é difícil avaliar a recompensa de gastar em infraestrutura física, porque não podemos observar o fato contrário
o que teria acontecido se não construíssemos aquela ponte ou estrada. Só teremos evidência sólida sobre o valor do investimento físico se, como parece muito possível, algumas peças chaves de nossa infraestrutura desmoronarem.
Em contraste, sabemos muito sobre os efeitos de investir em pessoas (…) Isso permite que os pesquisadores comparem a trajetória de vida dos americanos que receberam ajuda quando crianças com a dos que não receberam".

Nesse contexto, educação deveria ser considerada como investimento em infraestrutura humana, até para que não ficasse sujeita a falseadas restrições fiscais. Daí porque André Roncaglia, Salomão Ximenes e esta articulista defendemos a reclassificação jurídica, como despesa de capital, de todos os gastos em manutenção e desenvolvimento do ensino, para que seja possível resguardar, se necessário, seu custeio mediante operações de crédito, na forma do artigo 167, III, da CF.

O sinal emitido a partir do Plano Biden é o de centralidade da educação para o desenvolvimento lastreado no conhecimento que valora design e processamento inteligente de grandes bases de dados, bem como incentiva intensivamente a produção de ciência e tecnologia no cenário pós-Covid-19. Não obstante isso, estamos presos no Brasil à lógica reducionista do investimento físico meramente associado a obras de engenharia (investimento do "aço e concreto", tal como Krugman ironizava), tão típica do século 20.

Ora, tal cenário explica porque, na última quinta-feira (24/6), o Plano Nacional de Educação completou sete anos de vigência com estimativa de apenas 15% de cumprimento pleno das suas metas até o prazo final da sua vigência. Conforme balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, "a três anos do fim de vigência da principal legislação da educação nacional, a estimativa é que, dos 41 dispositivos de meta do PNE mensurados, somente 6 devem ser cumpridos em seus respectivos prazos".

Se levássemos a política pública educacional a sério e se considerássemos educação como investimento, o diagnóstico de um horizonte de descumprimento de 85% das metas do PNE até 2024 deveria ser motivo de avaliação e responsabilização efetiva dos agentes políticos inadimplentes. Mas, infelizmente, o Brasil vai na contramão do sentido contemporâneo de desenvolvimento e se dá ao luxo de manter a maioria da sua população adulta semialfabetizada, sem sequer haver concluído o ensino médio.

O que explica tal cenário? Como chegamos a esse esvaziamento quase completo do planejamento decenal da educação em nosso país? Em uma síntese muito breve, podemos avaliar que esse descalabro se deve a omissões e desvios em todos os níveis da federação, em muitos casos com a passiva conivência dos órgãos de controle.

Embora haja garantias de custeio vinculadas ao setor, governantes reputam o piso educacional um estorvo fiscal e frustram a aplicação adequada dos recursos do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica Obrigatória e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Vale a pena trazer aqui o exemplo do estado de São Paulo, cujo exame das contas do governador João Doria, relativas ao exercício financeiro de 2020, pelo Tribunal de Contas Paulista, ocorreu exatamente na véspera do sétimo aniversário do Plano Nacional de Educação (23/06). Houve aprovação com ressalvas, mesmo diante da formal declaração de inconstitucionalidade incidente sobre desvio bilionário dos recursos educacionais para cobertura de passivo previdenciário.

Governo estadual e Tribunal de Contas paulista simplesmente ignoraram de forma evasiva a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.719 e mantiveram inconstitucionalmente o cômputo de gastos com pessoal inativo como se fossem despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino ao longo de 2020.

Para que tenhamos claro em mente o tamanho do nosso descalabro educacional, vale a pena repisar que, na véspera do sétimo aniversário do PNE, o TCE-SP "relevou" os déficits de 24,54% no piso educacional paulista e de 96,12% do Fundeb, à revelia da unânime decisão do STF na ADI 5.719 e da explícita vedação inserida no §7º do artigo 212 pela Emenda 108/2020.

Apenas o Ministério Público de Contas do Estado de Paulo, em seu parecer, disponível aqui, impugnou os déficits bilionários na rede pública estadual de ensino, causados pela inclusão inconstitucional de inativos nos recursos vinculados à educação.

Não bastasse o desvio ocorrido em 2020, o estado mais rico da federação aprovou sua lei orçamentária para o exercício financeiro de 2021 mantendo tal cômputo inconstitucional, em reiterada afronta à decisão do STF na ADI 5.719 e em desconsideração literal ao §7º do artigo 212 da CF, que foi introduzido pela Emenda do Fundeb permanente (EC 108/2020).

Eis o contexto em que a Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon) apresentou ao STF a Reclamação 47.440, no intuito de restabelecer a autoridade decisória da Corte Constitucional brasileira em relação à persistência do desvio educacional paulista para cobertura de passivo previdenciário (projeção na LOA-2021 paulista de R$ 7,3 bilhões). Conforme a petição da Ampcon, assinada pelos advogados Luís Maximiliano Telesca e Bruno de Oliveira:

"O Estado de São Paulo voltou a violar não só o texto constitucional [§7º do artigo 212], como também a decisão da Suprema Corte no julgamento da ADI 5.719, de relatoria do Min. Edson Fachin.
Na proposta orçamentária de 2021, o Governo do Estado de São Paulo, em seu anexo XIV, denominado 'demonstrativo da destinação dos recursos do fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e de valorização dos profissionais da educação (FUNDEB)', previu a destinação de recursos financeiros para a 'contribuição do estado para o regime de previdência dos servidores'.
Com essa contribuição do Estado para o regime de previdência dos servidores, houve destinação de R$ 7.259.882.512 (Sete bilhões, duzentos e cinquenta e nove milhões e oitocentos e oitenta e dois mil e quinhentos e doze reais), dos quais R$ 2.111.776.000,00 (Dois bilhões cento e onze milhões setecentos e setenta e seis mil reais) serão custeados especificamente com recursos do Fundeb (em evidente afronta ao artigo 212, §7º da Constituição de 1988), consoante documento anexo.
Nem se diga que tal rubrica de 'Contribuição do Estado para o Regime de Previdência dos Servidores' 
lançada na previsão orçamentária da Secretaria de Estado de Educação dentro do piso educacional a que se refere o artigo 255 da Constituição Estadual de São Paulo e também dentro dos recursos vinculados ao Fundeb (artigo 212-A da CF/1988) corresponderia ao recolhimento dos encargos sociais patronais relativos aos servidores ativos da pasta.
Isso porque há outras rubricas próprias para o pagamento de salários e correspondentes encargos sociais dos profissionais da ativa que trabalham, de fato, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Senão veja-se o contraste da ação 12.846.0815.9001 (“Contribuição do Estado para o Regime de Previdência dos Servidores”) acima mencionada com as seguintes ações:
1) Ação 12.368.0800.5161, denominada 'Desenvolvimento e Gestão do Ensino Fundamental Profissionais do Magistério
Fundeb', que previu cerca de R$6,7 bilhões para a despesa de 'Pessoal e Encargos Sociais' dos Profissionais do Magistério lotados no atendimento a 2.042.167 estudantes matriculados no ensino fundamental da rede estadual paulista;
2)
Ação 12.368.0800.5757, denominada 'Desenvolvimento e Gestão do Ensino Médio – Profissionais do Magistério Fundeb'  (que previu cerca de R$4,3 bilhões para a despesa de 'Pessoal e Encargos Sociais' dos Profissionais do Magistério lotados no atendimento a 1.281.184 estudantes matriculados no ensino médio da rede estadual);
3) Ação 12.368.0800.5759, denominada 'Desenvolvimento e Gestão do Ensino Médio – Servidores
Fundeb'  (que previu cerca de R$500 milhões para a despesa de 'Pessoal e Encargos Sociais' dos Servidores da Educação (exceto docentes) lotados no atendimento a 1.281.184 estudantes matriculados no ensino médio da rede estadual).
Como visto acima, o Estado de São Paulo previu no seu orçamento de 2021 cerca de R$11,5 bilhões para pagamento das despesas de pessoal ativo e respectivos encargos sociais no âmbito da Secretaria de Estado de Educação. Tal gasto é lícito e, de fato, corresponde à finalidade constitucional do piso educacional e do Fundeb. Problema ocorre com a Ação 12.846.0815.9001 ('Contribuição do Estado para o Regime de Previdência dos Servidores'), por meio da qual o Executivo estadual paulista pretende desviar dos recursos mínimos vinculados à política pública educacional cerca de R$ 7,3 bilhões para pagamento de passivo previdenciário com os aposentados e pensionistas que, a despeito de terem trabalhado anteriormente na SEE-SP, estão vinculados à SPPrev, porque correspondem a apenas pagamento de proventos de inatividade.
Infere-se, ademais, que na mencionada contribuição houve a seguinte descrição por parte do Estado de São Paulo (p. 395), que segue em anexo:
Contribuição do Estado para cobertura de insuficiências financeiras do RPPS decorrentes do pagamento de benefícios previdenciários, observada a insuficiência apurada em cada um dos Poderes, entendida como o valor resultante da diferença entre o valor total da folha de pagamento dos benefícios previdenciários e o valor total das contribuições previdenciárias dos servidores, dos Poderes do Estado. Inclui as despesas correspondentes ao pagamento à SPPREV da taxa pela administração dos Regimes Próprios de Previdência dos Servidores Públicos.
Assim, vê-se pela descrição da contribuição do Estado para o regime de previdência dos servidores, previsto na LOA-2021, que houve contribuição para cobertura de insuficiências financeiras do Regime Próprio de Previdência Social, bem como inclui o pagamento à SPPREV da taxa pela administração do RPPS. Ou seja, utilizou-se de recursos públicos destinados à educação para suprir o déficit do regime próprio de previdência
Destarte, a LOA-2021 do Estado de São Paulo, ao estabelecer um quantitativo de R$ 7.259.882.512 (Sete bilhões, duzentos e cinquenta e nove milhões e oitocentos e oitenta e dois mil e quinhentos e doze reais) de contribuição para prover as insuficiências financeiras do RPPS, dos quais R$ 2.111.776.000,00 (Dois bilhões cento e onze milhões setecentos e setenta e seis mil reais) serão custeados especificamente com recursos do Fundeb (em evidente afronta ao artigo 212, §7º e ao artigo 212-A da Constituição de 1988), contrariou o entendimento adotado pela Suprema Corte no julgamento da ADI 5.719, o qual previu que essas despesas previdenciárias não foram excepcionadas pelo disposto no artigo 167, inc. IV, da Constituição Federal"
. (grifos conforme o original).

Não se trata de burla oculta, mas assumida cínica e flagrantemente diante da imprensa. Segundo noticiado pela Folha de S.Paulo em 21 de abril deste ano, "apesar de o novo Fundeb vetar a aplicação da verba com inativos, o Orçamento de 2021 (paulista) ainda prevê essa prática', já que 'o governo afirma se basear em lei estadual e em modulação de efeitos do TCE para manter as medidas'" (grifo da autora).

O que a Reclamação 47.440 pretende, portanto, é que seja fulminada por desconforme com a autoridade decisória do STF nos autos da ADI 5.719 a modulação de efeitos feita pelo TCE-SP nos autos do TC-6453.989.18-8 (reiterada no TC’s 5866.989.20). Em igual medida, pretende seja determinado que o Estado de São Paulo observe em sua LOA-2021 o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal no julgamento do ADI 5.719, devendo se ajustar que ao artigo 212, §7º, e ao artigo 167, inciso IV, ambos da CF.

Ao fazerem de conta que aposentadoria é educação, descumprem acintosamente o STF e a Constituição de 1988, além de esvaziarem pragmaticamente o alcance do PNE. Seguem na contramão do nosso ordenamento constitucional, tanto quanto caminham em sentido contrário à própria concepção de futuro para o qual o mundo desenvolvido tem se reorientado. O preço dessa ignorância certamente nos será cobrado muito em breve.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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