Tribunal do Júri

O sistema adversarial inglês e o surgimento da defesa técnica

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

31 de julho de 2021, 8h00

Quando pensamos nos julgamentos perante o Tribunal do Júri, uma das primeiras imagens que surgem são as figuras do acusador e do defensor inquirindo as testemunhas ou sustentando perante os jurados. É comum resgatarmos a cena caricata dos filmes norte-americanos do acusado sentado ao lado do seu defensor e ladeado pelo acusador, num típico procedimento adversarial. Porém, o que muitos desconhecem é que a figura do defensor é algo relativamente recente no júri, pois, em seu embrião inglês, os jurados alcançavam o veredicto a partir de seu próprio conhecimento e da instrução realizada diretamente pelo magistrado, sem a atuação direta da defesa técnica.

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O procedimento criminal inglês foi durante séculos organizado pela ideia de que o acusado não deveria ser representado por um advogado quando do seu julgamento [1]. Tal prática, além de reforçada pelo Judiciário, era fartamente estampada na doutrina jurídica da época (Staunford, 1554; Pulton; 1609; Coke; 1630; e Hawkins, 1721), a qual identificava que a proibição fazia parte da rule of law [2].

No início do século 18, quando o réu era acusado de uma felony [3], o defensor era proibido de ajudá-lo no desenvolvimento dos aspectos fáticos do caso. Era permitido apenas que apresentasse argumentos legais, sem que pudesse oferecer provas, realizar o exame-cruzado de testemunhas ou sustentar diretamente aos jurados, seja na fase inicial (opening statements) ou na fase final (closing statements). A argumentação jurídica, quando presente, estava geralmente relacionada com a impugnação da acusação (indictment). Porém, a prática de vedar ao acusado o acesso a uma cópia da peça escrita dificultava a impugnação dos seus termos, os quais eram apenas "descobertos" no início do julgamento, quando o assistente do juízo traduzia o indictment do latim para o inglês.

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As alegações orais eram feitas pelo próprio acusado, sob a justificativa de que ele conheceria melhor os fatos do que qualquer outra pessoa, inclusive melhor do que o próprio advogado [4]. Assim, a regra contra a defesa técnica partia da premissa de que os advogados não poderiam contribuir para a apuração da matéria fática a ser apreciada pelos jurados. Dessa forma, o acusado exercia um dúplice papel, incorporando as funções de defensor e testemunha, apesar de não realizar o juramento de dizer a verdade. A regra de que o ônus da prova caberia à acusação se tornou realidade somente a partir do século 19 e, com isso, era função do acusado apresentar uma versão alternativa aos fatos narrados pelo acusador. De acordo com Langbein, ao final do julgamento, caberia ao júri a missão de dizer se o acusado teria explicado adequadamente a prova aduzida contra ele [5], invertendo-se assim uma das premissas fundamentais que disciplinam o ônus probatório.

A acusação, por sua vez — excepcionando-se o crime de traição — era frequentemente realizada pela vítima, a qual poderia — porém, não era a regra — ser auxiliada por um profissional. Diante desse quadro, o magistrado exercia o papel de protagonista na produção probatória, admitindo a sua apresentação, instruindo o feito, controlando o debate e evitando eventuais abusos. Até o início do século 18, o sistema era nitidamente presidencialista, eis que o juiz atuava como um intermediário das perguntas do acusado para as testemunhas, algo muito próximo do anterior procedimento previsto no CPP brasileiro até a reforma de 2008. Conforme esclarece Jonakait:

"O juiz exercia o papel principal na inquirição das testemunhas. Sua inquirição alcançava o acusado, que, mesmo se tivesse um privilégio contra a autoincriminação, não poderia se recusar a responder, porque, não estando devidamente assistido por um advogado, caberia a ele fazer a defesa. Consequentemente, muitos julgamentos eram essencialmente duelos de inteligência entre o acusado e o juiz" [6].

Diante da ausência da defesa técnica — como regra — para impugnar aspectos legais da acusação, muitas vezes o magistrado atuava de ofício, detectando falhas na denúncia e assumindo o papel do advogado do acusado: "The court, it was said, would be counsel for the accused" [7]. A atuação dos magistrados, contudo, não substituía o ônus do acusado de realizar a sua própria defesa quanto aspectos fáticos da acusação, todavia, são documentados casos em que o juiz esporadicamente ajudava o acusado realizando firmemente o cross-examination de acusadores quando verificada a má-fé da acusação ou enfatizando falhas da denúncia enquanto se dirigia ao júri. Para tanto, não era incomum que o magistrado consultasse o anterior depoimento escrito de testemunhas (deposition [8]) buscando eventuais contradições.

Por outro lado, nos julgamentos dos crimes de traição ocorridos nos séculos 16 e 17, os juízes se mostravam muito mais severos com os acusados, exibindo uma profunda parcialidade em favor da coroa. Em alguns casos, o juiz era auxiliado por um funcionário da corte (clerk of assize), cuja função essencial era a de documentar o procedimento do julgamento, mas que por vezes acabava por suplementar o trabalho do juiz quando da oitiva das testemunhas, chegando a atuar como um acusador para o rei.

Talvez a maior incongruência do sistema inglês da época estivesse relacionada ao julgamento dos ilícitos categorizados como misdemeanor. Tratava-se de ofensas que não se enquadravam como treason ou felony e estavam atreladas a matérias sobre Direito Civil (por exemplo, o direito de propriedade) ou de caráter regulatório (por exemplo, a manutenção das estradas). O Direito inglês equiparava infrações de natureza civil, tais como, invasão e perturbação, a ilícitos criminais passíveis de indenização. Porém, enquanto na esfera criminal o acusado faria a sua própria defesa, sustentando sem realizar o juramento de dizer a verdade, na esfera cível, as partes eram representadas por advogados. Aqui está a grande disparidade: enquanto para os crimes de felony, passíveis de punição com a pena de morte, o acusado deveria fazer a sua própria defesa; para os misdemeanor — diante da sua equiparação aos litígios cíveis e passíveis de indenização — passíveis de punição com pena de multa, o acusado poderia se fazer representar por um advogado. A desproporção era tamanha que a doutrina da época chegou a afirmar: "'(…) What Rule of Justice is there to warrant (the) Denial [of counsel in capital cases, when counsel is allowed]… in a Civil Case of a Halfpenny Value…'?" [9].

A forma parcial de atuar nos crimes de traição — especialmente estando o acusado desassistido —, acabou por fomentar a promulgação do Treason Trials Act (1696), considerado um ponto fundamental na mudança do sistema criminal inglês. Para muitos, caracterizava-se de uma legislação classista (amparada no interesse da classe política), pois os réus dos crimes de traição eram costumeiramente identificados como membros da casta dirigente da sociedade da época.

De qualquer maneira, a nova legislação instituiu duas novas e fundamentais garantias ao processo inglês: 1) o direito de ser amparado por uma defesa técnica quando o réu fosse acusado da prática do crime de traição; e 2) o direito de obrigar o comparecimento de testemunhas de defesa, as quais passariam a ser inquiridas no julgamento mediante a imposição do juramento de dizer a verdade. A imposição de prestar o compromisso legal conferiu maior credibilidade ao relato das testemunhas da defesa, equiparando-as, a partir desse momento, às testemunhas da acusação, as quais já eram obrigadas a prestar o juramento.

Contudo, o ponto de maior envergadura estava relacionado ao direito de o acusado poder contar com a defesa técnica durante toda a persecução penal. Extrai-se do Treason Trials Act (1696):

"(…) And that every such Person so accused and indicted, arraigned or tried for any such Treason, as aforesaid, or for Misprision of such Treason, from and after the said Time, shall be received and admitted to make his and their full Defense, by Counsel learned in the Law, and to make any Proof that he or they can produce by lawful Witness or Witnesses, who shall then be upon Oath, for his and their just Defense in that Behalf; (…)" [10].

Como sabemos, a ampliação de garantias e direitos, especialmente na seara processual-penal, dificilmente ocorrem de baixo para cima e o Treason Trials Act é mais uma amostra de como as coisas se dão na prática. Porém, apesar do direito à defesa técnica estar limitado inicialmente aos crimes de traição, delitos que costumeiramente apenas envolviam a classe aristocrática dominante — e não a uma criminalidade de massa —, tratou-se de um marco extremamente importante que acabou por impulsionar a promulgação do Prisioner’s Counsel Act, que, em 1836, estendeu o mesmo direito para os felony trials.

 


[1] VIDMAR, Neil; HANS, Valerie P. American Juris. The Verdict. Amherst, New York: Prometheus Books, 2007, p. 25. No sistema norte-americano, apesar da clareza interpretativa do texto da Sexta Emenda ("In all criminal prosecutions… the accused shall enjoy the right… to have the assistace of counsel for his defense"), o direito à defesa técnica foi objeto de intensa discussão perante a Suprema Corte e, conforme recorda Savage, ele apenas foi permanentemente consagrado para réus acusados de crimes federais passíveis de pena de morte de morte. Inicialmente, para os demais casos, o Suprema Corte tinha a compreensão que caberia ao acusado arcar com os custos da sua defesa técnica, ou, eventualmente, exercê-la pessoalmente (SAVAGE, David G. The Supreme Court and Individual Rights, 5ª., ed. United States: CQ Press, 2009, p. 328). A respeito desse tema, há diversos precedentes que merecem um maior aprofundamento, destacando-se: Powell v. Alabama (1932); Betts v. Brady (1942) e Gideon v. Wainwright (1963).

[2] LANGBEIN, John H. The Origins of Adversary Criminal Trial. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 10.

[3] Felony é considerado um crime grave passível de punição com pena de prisão por mais de um ano, alcançando até a pena de morte. São exemplos: o crime de roubo, incêndio, estupro e homicídio. (Black’s Law Dictionary, 10ª. ed., United States: Thomson Reuters, 2004, p. 736). Segundo Blackstone, felony „'é comumente reconhecida no direito inglês, como toda a espécie de crime passível de gerar, nos termos da common law a perda de terras e bens’" (BLACKSTONE, William. Commentaries on de Law of England 04 (1769), Apud Black’s Law Dictionary, 10ª. ed., United States: Thomson Reuters, 2004, p. 736).

[4] "(…) This indeed many have complained of as very unreasonable; yet if it be considered, that generally every one of Common Understanding may as properly speak to a Matter of Fact as if he were the best Lawyer; (…). (HAWKINS, William. A Treatise of the Pleas of the Crow 400 (London 1716-1721) (2 vols.). Apud SMITH, Bruce P.; LERNER, Renée Lettow; LANGBEIN, John H. History of the Common Law. The Development of Anglo Legal Institutions, New York: Aspen Publishers, 2009, p. 603).

[5] "The question for the jury to decide, the issue of the trial, was whether the accused had adequately explained the evidence adduced against him". (LANGBEIN, John H. The Origins of Adversary Criminal Trial. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 14). Segundo o autor, observando-se os julgamentos realizados no século XVI e seguintes, o acusado alcançava a absolvição em um terço ou mais dos casos de felony. Porém, as absolvições raramente ocorriam nas acusações de "traição" (ou seja, a fazer ou planejar algo contra a vida do monarca ou fomentar uma rebelião armada).

[6] JONAKAIT, Randolph N. The American Jury System. New Haven and London: Yale University Press, 2003, p. 173.

[7] LANGBEIN, John H. The Origins of Adversary Criminal Trial. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 28.

[8] Modernamente, o deposition é o depoimento de uma testemunha dado ou colhido por escrito, mediante juramento ou diante de um comissário da justiça, na forma de um interrogatório ou cross-examination e usualmente subscrito pela testemunha.

[9] SHOWER, Bartholomew. Reason for a New Bill of Rights 6 (London 1692). Apud, LANGBEIN, John H. The Origins of Adversary Criminal Trial. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 39.

[10] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée Lettow; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutios. United States: Wolters Kluwer, 2009, p. 660.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri)

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