Observatório Constitucional

Jurisdição constitucional exercida por juízes estrangeiros

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

24 de julho de 2021, 10h34

Há diversos estudos sobre a representatividade na composição de Cortes Constitucionais. Discute-se se seriam necessárias cotas de gênero, bem como reserva de assentos específicos para determinados setores da comunidade, com base, por exemplo, em religião ou em etnia. Tem-se, aí, a ideia de que garantir maior confiança da população, que se vê representada em seus juízes, resultaria no fortalecimento da legitimidade da própria instituição. Do ponto de vista argumentativo, o Tribunal teria a ganhar pela variedade de visões de mundos que diferentes magistrados tendem a apresentar.

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Já sob a perspectiva da fundamentação de decisões, existe uma série de pesquisas sobre a utilização de doutrina e de precedentes estrangeiros por Cortes Constitucionais. Em tribunais que não fazem referência ao direito comparado para subsidiar ou para confirmar seus entendimentos, a controvérsia volta-se muitas vezes ao fato de que decisões tomadas sob circunstâncias outras não teriam legitimidade suficiente para persuadir, de alguma forma, o intérprete nacional.

Nesse cenário, interessante e pouco estudada espécie de engenharia constitucional propicia singular enfoque à discussão: a utilização de juízes estrangeiros por tribunais que exercem jurisdição constitucional, peculiar modelo adotado por pelo menos trinta países no mundo[1].

Há variados motivos que fazem com que Estados soberanos deliberadamente submetam a interpretação de sua lei máxima a profissionais provenientes do exterior, situação que pode ocorrer em casos de carência técnica – comum em países de pequena extensão geográfica e em novas democracias –, ou em sistemas que encontram dificuldade em acomodar diversas minorias étnico-religiosas e que, por isso, acabam por buscar magistrados que atuariam de forma mais isenta[2].

Em relação à ausência de especialistas nacionais, essa circunstância ocorre geralmente em países com “escassez geográfica”, como nos denominados microestados, que recorrem ao auxílio de nações vizinhas com os quais têm algum vínculo histórico e cultural para o exercício de sua soberania, inclusive da jurisdição constitucional[3].

Nesse sentido, mencione-se, a título exemplificativo, o caso de Mônaco. O órgão máximo de interpretação da sua Constituição é composto por cinco membros efetivos e por dois substitutos, nomeados pelo Príncipe, após proposta das principais instituições do país. Os eleitos devem ter pelo menos 40 anos de idade e são selecionados “dentre juristas com particular competência”, sem expressa menção à nacionalidade que devem ter.

Na prática, é comum que a Suprema Corte monegasca seja integrada por professores de direito público de instituições da França, indicados pelo Príncipe da mesma forma que seus pares nacionais, e que, uma vez no cargo, gozam das mesmas garantias. Fala-se que a atuação de profissionais estrangeiros seria benéfica em um pequeno Estado como Mônaco, em que todos se conhecem e possuem relações próximas entre si[4].

Algumas democracias insulares do Pacífico também possuem arranjo institucional que prevê a inclusão de juízes provenientes de outros países em seus órgãos do Poder Judiciário, inclusive nos que exercem jurisdição constitucional. Em geral, são nações com população pequena, localizadas em ilhas muitas vezes esparsas, que possuem pouca atividade econômica e ampla diversidade étnica.

Em tese de doutorado na Universidade de Melbourne, Austrália, Anna Dziedzic analisou o impacto do emprego de juízes estrangeiros em jurisdição constitucional de nove países do Pacífico[5], todos membros da Comunidade Britânica de Nações (Commonwealth).

Ao estudar os textos constitucionais dos modelos selecionados, verificou que há diferentes regras para a admissão de magistrados não-nacionais. A pesquisadora encontrou restrições relativas à origem dos profissionais – com limitação a integrantes da Commonwealth; aos oriundos de ordenamento jurídico semelhante, ou aos expressamente listados por lei; assim como exigências quanto à experiência pregressa – como a necessidade de período de prévia atuação na jurisdição nacional ou no exterior. Além disso, identificou dispositivos sobre a obrigatoriedade de que residam no local em que exercerão a jurisdição, pelo período em que designados ao ofício, ou que apenas compareçam para as sessões de julgamento[6].

Além do tamanho geográfico e da carência de especialistas, outro fator comum a esses países do Pacífico é o alto custo de manutenção do Poder Judiciário[7]. O Fundo da Commonwealth para Cooperação Técnica (Commonwealth Fund for Technical Cooperation), previsto para auxiliar o desenvolvimento de seus membros, inclusive dispõe sobre o fornecimento de mão de obra qualificada para as supremas cortes de Estados que enfrentem problemas financeiros. Com o pedido de ajuda, as Cortes interessadas recebem magistrados que praticamente já integram verdadeira carreira de atuação internacional especializada nesse tipo de demanda. Ou seja: o texto constitucional é interpretado por profissionais provenientes do exterior, financiados por fundo internacional.

Nesse contexto, entre 2000 e 2015, 187 juízes estrangeiros tomaram assento nas cortes supremas dos nove Estados pesquisados, dos quais aproximadamente 32% eram provenientes da Nova Zelândia, 30% da Austrália e 8% do Reino Unido[8].

A opção por conceder assentos a juízes estrangeiros em tribunais que exercem a jurisdição constitucional também pode ocorrer para equilíbrio de forças políticas nacionais, a exemplo da Corte Constitucional da Bósnia e Herzegovina. Apesar de criada em 1995 pelo Acordo de Dayton, que pôs fim ao conflito entre os dois países, e ter sido idealizada, em parte, por uma equipe de juristas norte-americanos, a formatação da Corte seguiu tradição já existente desde o período socialista[9].

A estrutura desenhada para o atual Tribunal Constitucional previu a composição por nove magistrados, dos quais quatro são escolhidos pela Câmara dos Representantes da Bósnia e Herzegovina, dois pela Assembleia Nacional da República Sérvia, e três pelo Presidente da Corte Europeia de Direitos Humanos, após consulta ao Presidente da Bósnia e Herzegovina. Nos termos da Constituição, todos os candidatos devem possuir “alta posição moral”. No caso dos estrangeiros, não podem ser cidadãos da Bósnia e Herzegovina, ou de qualquer estado vizinho. Com essas condições, no Tribunal já atuaram, por exemplo, juristas alemães, austríacos, franceses, suecos e italianos[10].

O texto constitucional da Bósnia e Herzegovina não exige nenhuma espécie de proporcionalidade representativa na Corte. Entretanto, desenvolveu-se o costume de manter o equilíbrio de dois juízes para cada povo – bósnios, croatas e sérvios –, além dos representantes estrangeiros. Os magistrados vindos do exterior seriam, nessa balança, uma força alheia às disputas locais a tentar conceder maior estabilidade aos julgados.

Por fim, há quem indique que a participação de juristas estrangeiros em tribunais constitucionais pode ser forma de aumentar o prestígio do Poder Judiciário local, reforçando, inclusive, a imagem de sua independência. Isso ocorre especialmente em nações recém-formados que ainda não possuem tradição jurídica consolidada, ou que precisam demonstrar estabilidade institucional. Exemplo mencionado pela doutrina seria a composição do Court of Final Appeal, de Hong Kong, criada em 1997, após a China retomar sua soberania sobre a região. Para casos considerados relevantes ou complexos, a Corte, que igualmente possui jurisdição constitucional, pode convocar juristas de outras nacionalidades com notável conhecimento técnico na matéria a ser apreciada[11].

O estudo sobre o impacto ou sobre a influência de juízes que, com sua peculiar bagagem, apreciam casos constitucionais em países que não os seus, é bastante deficiente. Isso se deve, possivelmente, à baixa quantidade de ordenamentos que se utilizam desse recurso; ao tamanho geográfico dessas nações, que acabam não gerando muitos julgados – o que dificulta avaliações empíricas – e, também, à ausência de interesse acadêmico na matéria.

Em Mônaco, relatórios indicam que o emprego de magistrados estrangeiros não apresenta impactos negativos no funcionamento institucional, nem na correta aplicação das salvaguardas constitucionais do país[12]. A atuação de juristas franceses seria prática já assimilada e considerada normal. Além disso, entende-se que o controle direto do Príncipe, ao nomear e ter a prerrogativa de destituir um juiz da Suprema Corte, já poderia servir de eventual instrumento de proteção da soberania[13].

Em compensação, os juízes de outras nacionalidades que ocupam assentos na Corte Constitucional da Bósnia e Herzegovina são alvo de bastante polêmica. Apesar do mérito profissional, são constantemente acusados de favorecer as preferências políticas dos bosníacos, além de seguir instruções do Escritório do Alto Representante da Bósnia e Herzegovina, inclinando a balança contra o entendimento dos representantes sérvios e croatas. Em 2016, após o tribunal deliberar contrariamente à implementação de um feriado sérvio, políticos dessa etnia convocaram referendo para decidir sobre a executoriedade do julgado: 99,8% foram contrários à decisão. O feriado foi mantido e várias propostas de alteração da composição da Corte foram apresentadas[14].

Para verificar esse possível favorecimento por parte dos juízes provenientes do exterior, estudo acadêmico analisou os votos por eles proferidos entre 1997 e 2015 em casos de controle abstrato de constitucionalidade. Após diversas ponderações, concluiu-se que não parecem ter atuado com o mesmo tipo de preconceito que motivou seus pares nacionais. Como há cadeiras específicas para cada etnia na Corte, o magistrado estrangeiro, ao julgar, naturalmente já estaria atuando em um ambiente com forças pré-dispostas, em que o seu voto necessariamente significará o desempate[15].

No Pacífico, entende-se que a utilização de juízes com outras nacionalidades parece não comprometer a confiança pública no Poder Judiciário[16]. Os países pesquisados já possuem o sistema transplantado do exterior, com leis e modelos tradicionais do direito anglo-saxônico, de modo que o uso de técnicos importados para apreciar questões sob esse sistema – também importado – não gera grandes objeções. A situação é outra quando esses mesmos técnicos apreciam o direito consuetudinário, comum no período de pré-colonização e adotado pela maioria dos Estados em caráter complementar. Aí sim seria possível verificar intolerância em relação a decisões tomadas por profissionais de origem diversa, em situações que realçariam a vulnerabilidade do sistema híbrido[17]

De pronto, a presença de estrangeiros na jurisdição constitucional pode causar incômodo se analisada sob a perspectiva das bases fundantes do Estado democrático de Direito, diretamente associado à noção de povo, que o criou e para quem foi criado. É no mínimo inusitado que esses juízes, assim como seus pares nacionais, prestem juramento e comprometam-se a honrar o Estado em que atuam, sem com ele muitas vezes possuir a mínima conexão – física, cultural, étnica, linguística. 

Magistrados estrangeiros não são membros da comunidade, tampouco, em alguns casos, vivem nos países em que trabalham. Não estão, portanto, imediatamente vinculados aos temas que apreciam, nem às consequências que podem advir de seus julgados. Todavia, são justamente esses profissionais, meramente técnicos e alheios ao que ocorre no cenário local, que conformam a história da jurisdição constitucional da nação em que atuam, estruturando-a com influência de suas origens.  

É preciso ponderar os diversos aspectos envolvidos em submeter a jurisdição constitucional a julgador externo, transferindo importante dimensão do jogo democrático nacional a player com visão limitada de suas regras. De qualquer forma, esse modelo de verdadeira engenharia da escassez, tão peculiar, parece ser válida alternativa de sobrevivência institucional de democracias em formação ou de estados com carência de especialistas.

 


[1] DZIEDZIC, Anna. Foreign judges on Constitutional Courts. IACL-AIDC Blog, publicado em 13.6.2018. Disponível em: https://blog-iacl-aidc.org/blog/2018/6/13/foreign-judges-on-constitutional-courts. Acesso em: 11.7.2019.

[2] Para análise geral, conferir, além dos trabalhos de Anna Dziedzic, considerações introdutórias de: SCHWARTZ, Alex. International judges on Constitutional Courts: cautionary evidence from post-conflict Bosnia. Law & Social Inquiry, 44, 2019.

[3] Ver HORBACH, Beatriz Bastide. Jurisdição constitucional em microestados europeus. Observatório Constitucional. Conjur. Publicado em 2.2.2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-fev-02/observatorio-constitucional-jurisdicao-constitucional-microestados.

[4] COUNCIL OF EUROPE. Parliamentary Assembly. Documents Working Papers. 2007 Ordinary Session. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2007, p. 283.

[5] DZIEDZIC, Anna. Foreign judges on Pacific Courts: Implications for a Reflective Judiciary. Federalismi.it. Revista di Diritto Público Italiano, Comparato, Europeo. Número Especiale 5 – “Jurisdiction and Pluralisms: The Temptations of a Reflective Judiciary”, p. 63-87, 2018. São os países analisados: Fiji, Kiribati, Nauru, Papua Nova Guiné, Samoa, Ilhas Salomão, Tonga, Tuvalu e Vanuatu.

[6] Ibid., p. 67.

[7] Ibid., p. 69.

[8] Ibid., p. 68.

[9] SCHWARTZ, Alex. Alex, op. cit, p. 8

[10] Ibid., p. 8.

[11] DZIEDZIC, Anna. Foreign judges on Constitutional Courts. IACL-AIDC Blog, op.cit. Sobre as atribuições, competência e história do Tribunal, conferir página do órgão na internet: HONG KONG. Court of Final Appeal. Site oficial. Disponível em: https://www.hkcfa.hk.

[12] COUNCIL OF EUROPE, op. cit. p. 283.

[13] COUNCIL OF EUROPE, op. cit. p. 283.

[14] SCHWARTZ, Alex, op. cit., p.8.

[15] SCHWARTZ, Alex, op. cit., p. 31.

[16] DZIEDZIC, Anna. Foreign judges… op. cit., p. 64.

[17] Ibid., p. 69.

Autores

  • é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen (Alemanha) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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