Opinião

A função extraeconômica da licitação e a proteção ao deficiente na Lei 14.133/21

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

14 de julho de 2021, 17h10

A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/21) trouxe inegáveis avanços à disciplina normativa das contratações públicas, cabendo destacar, neste artigo, o emprego da função regulatória ou extraeconômica nas contratações públicas para garantir a consagração de uma isonomia material, bem como para buscar efetividade social das normas de proteção da pessoa com deficiência.

Originariamente, a Lei nº 8.666/93, em seu artigo 3º, concebia o processo de licitação com dois objetivos basilares: seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, numa consideração quase que pura e exclusivamente econômica, e observância da isonomia em relação aos interessados na contratação pública.

Apenas com o advento da Lei nº 12.349/10 — que promoveu alterações no artigo 3º da Lei nº 8.666/93 — é que o legislador passou a dar maior ênfase na função regulatória das contratações públicas, ao inserir o desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos das contratações públicas. Iniciou-se, neste momento, uma melhor compreensão da função extraeconômica dos contratos públicos.

Verificando o legislador a importância das contratações públicas no cenário econômico nacional, para além de assegurar a mera competitividade do mercado nos processos de licitação, em uma isonomia formal e presumida, com a consequente seleção da proposta mais vantajosa (economicamente considerada) para a Administração, passou o legislador a se valer das normas de contratações públicas como instrumento regulador do mercado.

Consoante às lições do saudoso professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, "o novo papel do estado na economia, sob a égide deste binômio — competição e eficiência — evolui do papel conformativo do mercado, própria das regulamentações diretas e indiretas, e do papel substitutivo do mercado, próprias das intervenções concorrenciais e monopolísticas, para tornar-se 1) regulador do mercado; 2) alocador de recursos; 3) parceiro econômico; e 4) fomentador" [1].

Vislumbrou-se, em especial nestas últimas duas décadas, a importância da função regulatória do mercado pelo Estado, em especial por meio das normas de contratação pública, tanto com o escopo de contribuir para a promoção da concorrência (por meio de implementações de regimes especiais e regras de desempate para ME ou EPP, para produtos manufaturados etc.) [2], mas também como mecanismo de promoção de determinadas práticas, políticas públicas ou para a consecução de valores constitucionais, conforme destacado no trabalho desenvolvido por Victor Aguiar de Carvalho [3].

Nesse segundo escopo, e especificamente em relação às pessoas com deficiência, vale destacar que de longa data existem normas que trazem proteção de postos de trabalhos, na iniciativa privada, em consonância aos valores constitucionais de proteção da pessoa com deficiência, em especial o contido no artigo 27, item 1, alínea "h", do Decreto nº 6.949/09 [4], que traduz um direito fundamental ao trabalho às pessoas com deficiência [5].

Aludido direito fundamental, retratado no artigo 27, item 1, alínea "h", do Decreto nº 6.949/09, foi regulamentado pelo artigo 93 da Lei nº 8.213/91, segundo o qual "a empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados, 2%; II – de 201 a 500, 3%; III – de 501 a 1.000, 4%; e IV – de 1.001 em diante, 5%" [6].

Atento o legislador à função extraeconômica do direito das contratações públicas, que respaldada na imperativa necessidade constitucional de observação da função social dos contratos, e para garantir efetividade social à norma regulamentadora do direito fundamental da pessoa com deficiência ao trabalho, em especial na iniciativa privada, a nova lei de licitação promoveu importante avanço sobre a questão, se comparada com a legislação anterior.

Na Lei nº 8.666/93, a empresa que participava do processo licitatório atendendo à norma que garante o direito ao trabalho da pessoa com deficiência teria preferência na contratação com a Administração Pública, em igualdade de condições com terceiros. Em síntese, atender às normas de proteção ao trabalho da pessoa com deficiência era mera recomendação, para fins de contratação pública, sendo utilizada como mero critério de desempate, consoante artigo 3º, §2º, inciso V [7].

Com advento da Lei nº 14.133/21, em consonância com a norma fundamental, e conferindo efetividade social ao artigo 93, da Lei nº 8.213/91, a exigência da observância das vagas destinadas a pessoas com deficiência passou a ser cláusula obrigatória de todo contrato firmado pela Administração Pública (artigo 92, inciso XVII). Para além do momento da contratação, durante toda a execução do contrato a empresa deve manter a observância do disposto no artigo 93 da Lei nº 8.213/91, sob pena de extinção do contrato (artigo 137, inciso IX) [8].

Em síntese, com a nova Lei de Licitações, a empresa que não atende ao número de vagas destinadas a pessoas com deficiência sequer pode participar do processo licitatório, funcionando tal adequação como verdadeiro requisito implícito de habilitação no processo licitatório.

Importante destacar, por fim, que a Lei nº 13.146/15 incluiu o inciso IX no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), de modo que a inobservância dessas novas regras de acessibilidade dos portadores de deficiência nas contratações pelo poder público pode caracterizar ato de improbidade, que viola os princípios da Administração Pública, em especial diante da omissão dolosa.

Diante de tal quadro, verifica-se uma plausível evolução da nova Lei de Licitações ao ser conferida uma importante função extraeconômica do direito das contratações públicas — respaldada na imperativa necessidade constitucional de observação da função social dos contratos —, destinada à proteção do direito fundamental de acesso ao trabalho do portador de deficiência, funcionando o disposto no artigo 93 da Lei nº 8.213/91 como verdadeiro requisito implícito de habilitação no processo licitatório, o qual, uma vez desconsiderado, por resultar na tipificação da conduta descrita no inciso IX do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92).

 


[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Novo Papel do Estado na Economia. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, n. 11, ano 3, jul./set. 2005, p. 7. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43325/44666. Acessado em 10/07/2021.

[2] Consoante se verifica do artigo 3º, §§ 2º e 5º da Lei nº 8.666/93; artigo 26, da Lei nº 14.133/21; artigos 42 e seguintes da LC 123/06, dentre outros.

[3] CARVALHO, Victor Aguiar. Fórum de Contratação e Gestão Pública — FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 186, p. 65-74, jun. 2017. Disponível em https://www.academia.edu/35998368/A_fun%C3%A7%C3%A3o_regulat%C3%B3ria_da_licita%C3%A7%C3%A3o_como_instrumento_de_promo%C3%A7%C3%A3o_da_concorr%C3%AAncia_e_de_outras_finalidades_publicas. Acessado em 9/7/2021.

[4] 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Esse direito abrange o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e promoverão a realização do direito ao trabalho, inclusive daqueles que tiverem adquirido uma deficiência no emprego, adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação, com o fim de, entre outros: a) Proibir a discriminação baseada na deficiência com respeito a todas as questões relacionadas com as formas de emprego, inclusive condições de recrutamento, contratação e admissão, permanência no emprego, ascensão profissional e condições seguras e salubres de trabalho; b) Proteger os direitos das pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas, às condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo iguais oportunidades e igual remuneração por trabalho de igual valor, condições seguras e salubres de trabalho, além de reparação de injustiças e proteção contra o assédio no trabalho; c) Assegurar que as pessoas com deficiência possam exercer seus direitos trabalhistas e sindicais, em condições de igualdade com as demais pessoas; d) Possibilitar às pessoas com deficiência o acesso efetivo a programas de orientação técnica e profissional e a serviços de colocação no trabalho e de treinamento profissional e continuado; e) Promover oportunidades de emprego e ascensão profissional para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, bem como assistência na procura, obtenção e manutenção do emprego e no retorno ao emprego; f) Promover oportunidades de trabalho autônomo, empreendedorismo, desenvolvimento de cooperativas e estabelecimento de negócio próprio; g) Empregar pessoas com deficiência no setor público; h) Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas; i) Assegurar que adaptações razoáveis sejam feitas para pessoas com deficiência no local de trabalho; j) Promover a aquisição de experiência de trabalho por pessoas com deficiência no mercado aberto de trabalho; k) Promover reabilitação profissional, manutenção do emprego e programas de retorno ao trabalho para pessoas com deficiência (destaque nosso). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acessado em 10/07/2021.

[5] Pessoa com deficiência, nos termos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15 — artigo 2º), é "aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas". No mesmo sentido, o artigo 1º, do Decreto 6.949/09.

[6] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acessado em 10/07/2021.

[7] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acessado em 10/07/2021.

Autores

  • é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP), atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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