Opinião

O assessor jurídico do magistrado em debate: entre falsos temores e incertezas

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27 de janeiro de 2021, 10h37

No último dia 13, neste espaço, o professor Hugo de Brito Machado Segundo publicou um polêmico artigo intitulado "A figura do procurador de fazenda assessor de ministro precisa ser debatida".

Atendendo à sua proposta e sabendo que a melhor homenagem a um texto é escrever sobre ele, mesmo sem eu nunca ter sido assessor de magistrado, nem ter ocupado qualquer cargo de relevância na PGFN, senti-me instigado por considerações do Hugo, de quem me considero amigo e interlocutor.

Na linha de estudar o processo à luz da moderna epistemologia, em dar transparência para fatores que não podem ser desprezados na tomada de decisão, como vieses e preconceitos, algo que tem preocupado ao Hugo, a mim e a todos que lidamos com o Direito de maneira mais séria, na questão dos algoritmos por exemplo, naquele artigo ele preconiza a necessidade também de se cuidar do tema no processo de tomada de decisão "puramente" humano eu diria, sem interferência de máquina.

Assim, a questão colocada já no título, o debate se um procurador da fazenda poderia ser assessor de magistrado, não se apresenta como questão necessariamente ilegal, mas que pode tocar o devido processo legal substantivo, pois, de uma perspectiva institucional, vieses e preconceitos, normais em todos nós, poderiam "dificultar" — a palavra é minha, não dele — "a imparcialidade para ver necessária razão nos pleitos apresentados por contribuintes" (palavras dele).

A bem da verdade, após tentar separar as figuras do "assessor procurador da Fazenda" do "assessor advogado privado", ele se pergunta:

"Um procurador que defendeu por anos a Fazenda Nacional em questões tributárias, quando passa a assessorar um ministro do STJ no deslinde dessas mesmas questões por um breve espaço de tempo, sabendo que ao cabo da licença retornará ao seu órgão de origem, do qual não se desvincula, terá a imparcialidade necessária para ver razão nos pleitos apresentados por contribuintes?".

Algumas questões não foram consideradas por Hugo, daí que seja meu objetivo demonstrar que a imparcialidade necessária do "assessor procurador da Fazenda" existe pela forma como ele se vincula ao tribunal, pela função que a ele cabe e pela própria institucionalidade garantida pelo Direito positivo brasileiro. A análise, assim, vai além do ilegal, tocando pontos do devido processo legal substantivo.

Um procurador da Fazenda nacional, cedido para uma assessoria de magistrado, poderia, na visão do autor, ter sua imparcialidade obstaculizada "porque não perde o vínculo com a Fazenda que defende, licenciando-se por tempo curto e pré-determinado, com retorno certo ao órgão de origem".

O fato de a licença ser por tempo curto e pré-determinado, com retorno certo ao órgão de origem, não retiraria o vínculo do assessor à Procuradoria. Não só um vínculo ideológico ou de mentalidade, mas um vínculo de subordinação jurídica.

Discorda-se dessa posição, porque o procurador da Fazenda, enquanto ocupar o cargo de assessor, afasta-se legal e formalmente do cargo anterior, assim como se licencia da advocacia. Pelo artigo 12, inciso segundo, da Lei 8.906 (Estatuto da Advocacia), por ser a assessoria de magistrado atividade incompatível com a advocacia, cabe a qualquer assessor, advogado público ou advogado privado, requerer sua licença.

Esse fato, que não passou desapercebido ao CNJ no Procedimento de Controle Administrativo 0000706-90.2012.2.00.0000, no qual se analisou e ao final se permitiu a cessão de procuradora da fazenda nacional para assessorar desembargador do Tribunal Regional Federal, não foi levado em conta no artigo.

O vínculo jurídico, de subordinação hierárquica, fica suspenso a tal ponto que o procurador da Fazenda deixa de poder advogar, tornando-se um profissional licenciado durante o tempo que ocupar o cargo e, como qualquer advogado público, precisa estar inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil para atuar em sua carreira, durante a licença perde a plenitude de seus direitos e deveres como advogado, em geral.

Mesma licença deve requerer o advogado privado convidado para uma assessoria de magistrado e, inclusive, precisa se retirar de eventual sociedade de advogados da qual faça parte, pois não possuirá mais todos os direitos e deveres de um advogado.

Embora Hugo sugira que o debate deve ser doutrinário, para então provocar uma mudança legislativa, é fato que a possibilidade de cessão de membros da Advocacia Geral da União para assessoria de tribunais é legal, advinda dos artigos 1º, 7º, da Lei Federal nº 11.890/2008, artigo 26, da LC nº 73, conforme se extrai de decisão dada pelo CNJ, a qual enfrentou vários dos argumentos trazidos por Hugo, a meu juízo, além do prisma legal.

Há uma presunção de legitimidade — não só legalidade — da cessão de procuradores da Fazenda Nacional e de membros da AGU para assessoria de magistrados, também quando se analisam as questões institucionais do direito positivo brasileiro. No voto do conselheiro relator, afirma-se:

"60. A razão é simples. O assessor não julga, não pode julgar e nunca julgará, missão exclusiva e indelegável dos magistrados. No âmbito dos tribunais, aliás, essa missão cabe, via de regra, ao colegiado.
61. Assim, com o devido respeito, não vejo sustentação jurídica na tese — fundada em premissa e presunção equivocadas — de que o assessor seria parcial ao minutar votos em demandas entre o contribuinte e a União, a ponto de quebrar a "paridade processual" e a isenção do magistrado, em possível "tráfico de influência".
62. Vejo nessa tese, ao contrário, um desconhecimento da real atribuição de assessor e, em especial, um desrespeito e um desprestígio à nobre missão de julgar dos magistrados, movida apenas e tão somente pela dialética e pelo convencimento dela decorrente, fruto exclusivo da argumentação jurídica garantida pelos princípios do contraditório e da ampla defesa a ambas as partes"
 [1].

O conselheiro traz argumentos que, se não afastam a vinculação ideológica que um "assessor procurador da Fazenda" pode ter com a instituição, a mentalidade da instituição da qual se licencia, considerando haja essa tal mentalidade e que qualquer procurador da Fazenda a incorpore, mostram como a institucionalidade do Direito positivo brasileiro já deu conta de possíveis pontos cegos do Direito Processual Tributário, para me valer de interessante insight de um livro de Rui Cunha Martins [2].

Existiria um ponto cego entre a maquinaria processual das convicções, movidas pelo interior do Direito, e uma maquinaria processual de expectativas, afetando desde o exterior do direito, que não pode ser negligenciado. Mas no caso sob análise não existe tal ponto cego, pois os vieses e os preconceitos de um assessor já estão à vista da institucionalidade do direito posto, havendo mecanismos de controle positivados.

Antes de ir à institucionalidade do Direito positivo, reafirma-se que a premissa de que o assessor tem uma importância além de minutar, que parece revelada na última pergunta que Hugo faz em seu artigo — "Ou a leitora acredita que o assessor minutaria um paradoxal voto reconhecendo a invalidade de sua própria atuação?" — não se sustenta.

Assessor deve minutar, pela subordinação hierárquica criada para ele, quando na função de assessoria. Assessor não julga, logo sua convicção pessoal sobre a melhor interpretação da legislação e a determinação dos fatos, é juridicamente irrelevante. Mas e se o magistrado debater com o assessor sobre as questões jurídicas e fáticas colocadas?

Talvez seja normal que isso ocorra, assim como um magistrado já faz indo a um congresso palestrar, e tendo oportunidade de ouvir teses fazendárias e dos contribuintes, numa roda de amigos juristas, discutindo sobre uma questão jurídica em abstrato ou, mesmo, recebendo memoriais das partes, antes de um julgamento.

O próprio magistrado busca chegar a sua convicção fundamentada debatendo e ouvindo opiniões jurídicas. Isso é humano, demasiadamente humano, forma a convicção jurídica em algum grau, mas daí não se pode concluir que ele poderia "pegar" os vieses e preconceitos de com quem conversa, de quem lê e por aí vai, o que demandaria um trabalho de pesquisa empírica. De qualquer modo, institutos devem ser criados para mitigar as tais influências externas, sejam ou não advindas de um assessor, o que foi feito no ordenamento brasileiro.

A um, a necessidade de fundamentação das decisões judiciais no artigo 489, do Código de Processo Civil aumentou o ônus argumentativo decisório, mecanismo de controle dos vieses e os preconceitos que podem aparecer na interpretação da legislação com conceitos jurídicos indeterminados, princípios, cláusulas abertas etc.

Os parágrafos segundo e terceiro do artigo 489, CPC, explicitam o ônus argumentativo na fundamentação da decisão, seja o assessor minutando-a, seja o magistrado a fazendo sem ajuda na solidão do gabinete ou de seu lar, de modo que a própria necessidade de fundamentação pode evitar vieses e preconceitos.

A dois, pode-se dizer que vieses e preconceitos nas demandas tributárias têm uma influência potencialmente maior sobre julgadores administrativos e de primeira e segunda instâncias judiciais, quando a qualificação de fatos pode ser necessária.

Lembre-se de que a determinação dos fatos tem sido relegada pela teoria jurídica, não se levando os fatos a sério, como bem percebeu William Twining [3]. Essa foi uma preocupação também um dos maiores juristas dos últimos tempos, recentemente falecido, Michele Taruffo, que em seu clássico "Simplesmente a verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos" alertou para que as máximas da experiência são utilizadas no Direito, não raro, expressando uma generalização sem base cognitiva, como lugares comuns, preconceitos e estereótipos, distantes de qualquer conhecimento efetivo [4].

Para ele, com aportes em Twining, Umberto Eco e Bernard S. Jackson, toda narração é cultural, entendendo-se cultura como conhecimento de mundo, donde haver um stock of knowledge, um sentido comum ou de cultura geral que influencia os aplicadores do Direito [5]. Preconceitos, estereótipos e perfis fazem parte da cultura, da compreensão do que seria "normal" dentro da cultura [6], e influenciam tanto na determinação dos fatos, quanto na interpretação de dispositivos normativos.

Pense na litigiosidade aguerrida do Direito Tributário, na ideia de que contribuintes possuem uma resistência natural a pagar tributos, diagnosticada por Carnelutti e alçada à ideia de tributo como norma de rejeição social e na ideia de que os contribuintes são devedores contumazes, estereótipos e perfis da nossa cultura tributária brasileira próximos aos de "marido infiel", "esposa fiel", "policial corrupto", "terrorista islâmico", "traficantes de drogas latino-americanos" [7].

No caso do Direito Tributário, a qualificação dos fatos, como na validade de um planejamento tributário, pode ser influenciada, em tese, por esses preconceitos, estereótipos ou perfis, mas como reexame de fatos não pode ser feito em tribunais superiores, ao menos na assessoria por procurador da Fazenda no STJ e no STF, o temor pela influência que ele poderia ter sobre o magistrado torna-se muito reduzido.

A três, estando-se assessorando magistrado de qualquer tribunal, inferior ou superior, é natural que vieses e preconceitos dos assessores possam ser corrigidos por uma decisão que deverá levar em conta a maioria do colegiado, em plenário.

A quatro, o novo CPC limitou os poderes do relator e aprimorou o sistema de precedentes obrigatórios, o que também reduz a potencialidade de vieses e preconceitos.

Além desses argumentos de Direito Positivo, ainda no terreno da possível vinculação ideológica, mudanças institucionais da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos últimos anos, têm fomentado consensualidade entre contribuintes e Estado, o que aumenta a legitimidade da cessão para assessoria, ao menos indiretamente.

Restrições a seus membros para litigar, com uma lista de dispensa de contestar e recorrer, levando em conta até eficácia persuasiva de precedente ainda não obrigatório; opção por um sistema racional de cobrança dos créditos "ranqueando" os contribuintes, entre outras medidas, podem levar à conclusão de que a mentalidade "normal", "oficial" dos assessores procuradores da Fazenda Nacional não é de quem sempre defenderá um metafísico e intolerável interesse arrecadatório permanente, mas de alguém também sensível aos interesses dos contribuintes. PFN também é contribuinte, aliás, formando seu caldo cultural, seu stock of kwowledge.

Não desconheço que existe procurador da Fazenda Nacional crendo que todo contribuinte é um devedor, assim como advogado tributarista que defende qualquer atitude do contribuinte para não pagar tributos, perfis que afirmo não caberem a mim e ao Hugo, mas, além de sentir que esses perfis maniqueístas estão com os dias contados, no caso dos advogados públicos há uma nova mentalidade sobre sua função, oficial e institucionalizada.

Para além do que eu ou Hugo possamos achar, cabe à academia verificar se as teses de quaisquer assessores, a partir de sua origem prévia, confirmam-se em mudança de entendimento dos magistrados ao longo do tempo.

Só assim concluiremos se "vieses e preconceitos em assessores humanos" possuem relevância como fatores nas decisões dos magistrados e, em caso positivo, qual grau de relevância, o que pode exigir mudanças institucionais ou ajustes

Por enquanto se está no terreno da mera especulação, sem uma base de dados sólida, o que reafirma a presunção de legitimidade da cessão e ainda a contradição do termo "assessor procurador da Fazenda".

Como assessor assessora, o que ele foi antes e o que será depois não podem servir para rotulá-lo, além do que o fato de ser um procurador da Fazenda licenciado não indica que ele será um assessor das minutas de teses apenas contrárias aos contribuintes.

Como conclusão, pode-se dizer que institucionalmente o processo brasileiro tem meios corretivos de reduzir interferências, por vieses e preconceitos, atendendo-se ao devido processo legal substantivo, o que não afasta, é claro, propostas e tentativas de aprimoramento.

 


[1] BRASIL, CNJ, Procedimento de Controle Administrativo 0000706-90.2012.2.00.0000, j. em 17.04.2014, p. 16. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/cnj-libera-cessao-procuradores-fazenda.pdf. Acesso em 16 jan. 2021.

[2] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons. 3ª ed., São Paulo: Editora Altas, 2013.

[3] Twining, Willima. De nuevo, los hechos en sério. In: “DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 32 (2009), PP. 317-430.

[4] TARUFFO, Michele. Simplesmente la verdade: el juez y la construcción de los hechos. Barcelona: Marcial Pons, 2010, p. 75.

[5] Ibidem, p. 72.

[6] Ibidem, p. 73.

[7] Ibidem, pp. 73-74.

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