Consultor tributário

A figura do procurador de fazenda assessor de ministro precisa ser debatida

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

13 de janeiro de 2021, 9h00

Spacca
Em rápida passagem por Brasília, um advogado marcou de encontrar um antigo amigo de Faculdade. Não se viam há muito, pois o amigo, aprovado anos antes em um concurso para Procurador de Fazenda, havia se mudado para a capital federal. Foram tomar um café.

O tempo decorrido desde que conversaram a última vez, o que cada um havia feito nesse lapso, como estava a família de um e de outro, notícias que tinham dos demais colegas da turma, essa foi a pauta, usual quando se quer costurar a fenda aberta pelo tempo, que nessas horas parece ter sido muito longo mas paradoxalmente ter passado muito rápido. Quando se despediam, o amigo procurador dizia precisar voltar ao trabalho. Havia pouco pessoal no órgão e muita coisa a fazer, prazos…

— Pouco pessoal? — Indagou o outro, surpreso. — Pensei que o número era bem razoável para atender a demanda…

— Em tese, seria. Mas muitos estão licenciados, assessorando ministros de Tribunais Superiores.

— Assessorando ministros?

— Sim. Eles, os ministros, geralmente oficiam ao nosso órgão, pedindo que lhes sejam enviados procuradores com bom conhecimento de Direito Tributário, matéria com a qual precisam de ajuda, principalmente para questões mais técnicas e específicas. E como aqui na Procuradoria praticamente só trabalhamos com isso, defendendo o Poder Público, somos valorizados para esse papel.

— E por que atendem aos pedidos, já que estão ficando com pouco pessoal?

— Ora, você acha que um pedido desses, feito institucionalmente à Procuradoria, pode ser recusado? Iríamos nos negar a colaborar diretamente na feitura das decisões que deslindarão os casos que conhecemos tão bem?

— Sim, é claro…

Essa conversa talvez seja obra de ficção. Ou não. Isso não é importante. O relevante é que ela pode perfeitamente ser verdadeira, pois realmente é comum a presença de procuradores de fazenda nos gabinetes de ministros de Tribunais Superiores, e de Desembargadores de Tribunais de Apelação, na condição de assessores. E isso não raras vezes se deve a pedidos formulados institucionalmente, de órgão para órgão, como o narrado no diálogo. Não se trata de uma pessoa que o ministro já conhecia previamente, e tinha como exímia conhecedora de Direito Tributário, sendo a sua condição de procuradora um mero acaso. Não. Institucionalmente, um órgão — do Judiciário — requisita de outro — da advocacia pública — pessoas habilitadas a assessorar na solução de questões tributárias. Tais Procuradores se licenciam, de forma temporária e por prazo determinado, e passam a atuar como assessores de ministros, do STJ ou do STF. Expirado o curto prazo da licença, retornam às suas funções de procuradores.

O amigo procurador, no diálogo fictício que abriu este texto, narrou o episódio com naturalidade. E o amigo advogado que o visitava, ao ouvir aquilo, achou um pouco inusitado, mas só depois, ruminando a conversa, foi invadido por uma sensação de perplexidade. Ficou a pensar: advogados de uma das partes licenciam-se temporariamente de suas funções para ajudar os julgadores a confeccionar as decisões que deslindarão casos como aqueles nos quais atuaram? E que têm a entidade pública a que servem como parte?

A leitora acha isso normal? Plenamente compatível com o devido processo legal substantivo, e tudo que dele decorre?

Não se está, aqui, a dizer que a prática é necessariamente ilegal. Tampouco se coloca em dúvida a correção de conduta ou as boas intenções de cada assessor especificamente, ou, pior, dos nobres ministros por eles assessorados. Longe disso. Mas muito longe disso mesmo. Estão seguramente inspirados pelas melhores intenções, e procuram ao máximo decidir corretamente, dando conta de descomunal volume de trabalho. Merecem todos os elogios por isso, inclusive. A questão, na verdade, é institucional. Liga-se a vieses e preconceito implícitos dos quais as pessoas sequer têm consciência, e que justificam, no caso de magistrados, regras de impedimento e suspeição, por exemplo. Um juiz, quando aprecia demanda que envolve um amigo íntimo seu, até pode manter sua imparcialidade. E muitos talvez mantenham mesmo, com toda a integridade. Mas talvez seja humano não manter. Talvez seja natural não manter. E por isso a regra processual estabelece o impedimento.

Como o título deste artigo diz, o tema precisa ser debatido. Não que deva ser proibida a prática, reprovada, ou mesmo combatida. Talvez se conclua, notadamente diante de manifestações mais esclarecidas do que esta, que nada precisa ser feito ou alterado. Mas é importante debater o tema, e, quem sabe, estabelecerem-se critérios para a escolha desses importantes atores da prestação jurisdicional em sede recursal.

Há todo um rigor, pelo menos no plano institucional, para a definição de quem pode, e de quem não pode, ser julgador. E, agora que se debate o uso da inteligência artificial, é comum ouvir e ler os especialistas realçando a importância da transparência dos algoritmos, permitindo-se um controle destinado a se evitarem erros, vieses e preconceitos na operação destes, ainda que apenas assessorem julgadores, minutando decisões que serão por estes subscritas. Mesmo sabendo que quem assina a peça é um humano, que se responsabiliza pelo seu teor, tem-se receio dos erros que podem ser praticados por um algoritmo. Por que, então, não dar alguma atenção a fatores nada desprezíveis, que levam a vieses e preconceitos em assessores humanos? Um assessor robô não deve ser enviesado, mas não há problema se um humano for?

Um procurador que defendeu por anos a Fazenda Nacional em questões tributárias, quando passa a assessorar um ministro do STJ no deslinde dessas mesmas questões por um breve espaço de tempo, sabendo que ao cabo da licença retornará ao seu órgão de origem, do qual não se desvincula, terá a imparcialidade necessária para ver razão nos pleitos apresentados por contribuintes?

É sabido que quem se responsabiliza pela decisão é o julgador. Não se ignora, por igual, que o assessor, ao exercer seu papel, seguirá as orientações do ministro, e agirá com boa fé. Nada disso é posto em dúvida aqui. Mas quem conhece a realidade dos Tribunais no Brasil, principalmente das instâncias superiores, sabe que o assessor tem, sim, muitas atribuições a si delegadas pelo julgador respectivo. Isso pode significar, na prática, a colocação do procurador, que defendeu por anos uma tese perante o Poder Judiciário, para redigir o acórdão que a irá deslindar. Isso não parece adequado.

Poder-se-ia objetar que o mesmo ocorreria com o assessor oriundo da advocacia. Um assessor advindo de um escritório, o qual patrocina causas como aquelas que serão apreciadas pelo Tribunal, e ao qual ele voltará depois de um período junto ao Tribunal. A situação, contudo, é diferente, por duas razões essenciais.

Primeiro porque o ministro não requisitará, via ofício, a um grande escritório, que lhe envie um bom advogado para atuar como assessor. O contato será feito com o advogado diretamente, por já ser ele previamente conhecido pelo ministro ou por ter sido objeto de alguma indicação. Não se trata, portanto, de alguém requisitado para assessoria por ser advogado do escritório “x”, mas de alguém que o ministro tem, individualmente, como um potencial bom assessor, e que por acaso é advogado.

Segundo, porque aquele que deixa a advocacia para atuar como assessor pode, em tese, passar bastante tempo nessa posição. Dependendo de sua relação com o ministro, e de seus outros projetos pessoais e profissionais, a assessoria pode se estender mesmo por décadas. Encerrada essa atuação, o sujeito pode voltar a advogar, ou passar a fazer qualquer outra coisa. Tal como o próprio julgador: não é raro que bacharéis em direito com inscrição na OAB prestem concurso para a magistratura, sejam aprovados, exerçam a função por décadas, e depois, pedindo exoneração ou aposentadoria, voltem a advogar, possibilidade que por si não contamina a isenção que devem ter no exercício da jurisdição. A situação é diferente quando se trata de um servidor público que não perde o vínculo com a Fazenda que defende, licenciando-se por tempo curto e pré-determinado, com retorno certo ao órgão de origem.

Por outro lado, se estivesse errada a situação do advogado que atua como assessor e em seguida volta a advogar, isso não tornaria menos injustificada a atuação do procurador como assessor. O relevante, como se diz, é discutir o assunto, e quem sabe estabelecer critérios — como se fez em relação aos Conselheiros do CARF — para evitar a influência de preconceitos implícitos e vieses, dos quais ninguém está imune, por maior que sejam a boa fé e as boas intenções.

Esse debate, porém, precisará ocorrer no plano doutrinário e, sua solução, se alguma for necessária, terá de vir do Poder Legislativo. Judicializar a questão, por razões óbvias, não é a melhor saída, o que só confirma a relevância do problema. Ou a leitora acredita que o assessor minutaria um paradoxal voto reconhecendo a invalidade de sua própria atuação?

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!