Opinião

Raymundo Magliano Filho, Bobbio e o mercado

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

26 de janeiro de 2021, 10h20

O recente falecimento do ex-presidente da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) Raymundo Magliano Filho, vítima da Covid-19 [1], repercutiu amplamente no mundo econômico e financeiro, assim como no mundo jurídico.

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Raymundo Magliano Filho foi para todos o presidente da Bovespa no período de 2001 a 2008, e o "pioneiro" em promover o conceito de educação financeira e a divulgação do mercado de capitais no Brasil, criando o programa "Bovespa vai até você". Expressou as suas ideias também por meio da publicação dos livros "Por uma Bolsa Democrática" e "Um caminho para o Brasil: a reciprocidade entre sociedade civil e instituições". Ao responder questionamentos sobre a popularização do mercado de capitais, Raymundo Magliano Filho dizia: "Foi justamente compartilhar com a sociedade brasileira o ideal de fazer do mercado de capitais um aliado capaz de promover os principais valores humanos necessários para uma sociedade realmente democrática" [2], deixando-nos intuir a importante "interdependência" ou "conexão" que existe entre as regras do mercado e o contexto social no qual o próprio mercado opera. Hoje, provavelmente referindo-se às suas ideias, os economistas utilizam a expressão "sustentabilidade do mercado".

Além de um importante e iluminado presidente da Bovespa, Raymundo Magliano Filho foi também o fundador do Instituto Norberto Bobbio no Brasil, em São Paulo.

O reconhecimento não é unicamente por ter conseguido promover e consolidar ainda mais as fortes relações de amizade e cooperação jurídica entre Brasil e Itália, mas sobretudo por ter contribuído para divulgar um pensamento que hoje em época de crise pandêmica , mais do que nunca, nos lembra da importância e da atualidade da tutela do indivíduo, da pessoa, das suas liberdades, dos seu direitos!

O Instituto Norberto Bobbio Cultura, Democracia e Direitos Humanos (sociedade sem fins lucrativos) propõe-se a divulgar o pensamento e as reflexões do jurista e filósofo italiano sobre cultura, democracia e direitos. Foi fundado em 2009, surgindo do Centro de Estudos Norberto Bobbio, criado em 2005, na própria Bolsa de Valores de São Paulo. O centro, na ideia de Raymundo Magliano Filho, nasceu para permitir e facilitar o contato do mercado financeiro com a comunidade jurídica nacional [3]. A "democratização" do acesso à Bolsa de Valores e ao mercado financeiro em geral foi e é considerada um importante passo para a integração e a participação direta e recíproca das pessoas no mercado e na vida econômico-financeira do país.

Celso Azzi, presidente do instituto, evidencia como a obra de Magliano destaca sobretudo a importância da relação de reciprocidade, que Magliano considera fundamental entre instituições e sociedade civil com a finalidade de fortalecer a democracia através da sociedade. Particularmente em "Por uma bolsa democrática", a experiência da Bovespa lembra Azzi  "deve ser compreendida como um case de sucesso do compromisso de defesa pelo futuro da democracia, mesmo em instituições tradicionalmente tidas como distantes dessa preocupação" [4].  

Relembrando uns pensamentos em Bobbio…

Bobbio investiga o problema "jurídico-filosófico" do fundamento do Direito, diferenciando principalmente duas metodologias de indagação, que dependem de a busca ser direcionada para: 1) um direito que já se tem; ou 2) um direito que se gostaria de ter. No primeiro caso, a indagação limitar-se-ia a um problema sistemático stricto iuris de direito positivo, enquanto no segundo o estudo se tornaria de direito racional ou crítico. Em particular, Bobbio parte da premissa de que todos os direitos do homem são direitos que se gostaria de ter, mesmo que ainda não sejam reconhecidos, daí a importância de encontrar um fundamento [5].

É importante destacar como o tema dos direitos do homem, junto aos temas da democracia e da paz, representam a assim chamada "trilogia". Em particular, Bobbio concretiza o seu pensamento em um movimento histórico, caracterizado em três momentos: "Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há democracia, sem democracia, não existem as condições mínimas para solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha guerra como alternativas, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo" [6]

Os três temas, ou melhor, momentos, são necessariamente inter-relacionados e interdependentes entre si. Bobbio evidencia como a experiência histórica demonstrou (e demonstra) que não existiria tutela dos direitos do homem sem a sociedade ser democracia, assim como não existiria democracia sem que se respeitassem os direitos do homem. Entre os direitos do homem para Bobbio —, o direito à vida é com certeza o direito humano fundamental por antonomásia!

O imperativo categórico não matar é, portanto, o leit motiv que caracteriza toda a obra de Bobbio. O direito à vida não se resume unicamente ao direito a não perder a vida, mas se concretiza também no sentido de viabilizar as condições mínimas de subsistência. Assim, o direito à vida encontra-se diretamente conectado ao momento da paz, e o momento da paz, ao direito à vida e aos outros direitos do homem.

Para Bobbio, é especialmente importante estabelecer qual experiência histórica permitiu que o direito fosse conquistado ou reconhecido, sendo que temos de ser otimistas, tendo em consideração que a história segue sempre o sentido que lhe reconhecemos, inclusive no que se gostaria de ter. Consequentemente, os direitos do homem podem ser considerados "direitos históricos", considerando que foram conquistados no tempo e na base do que se gostaria de ter. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa hoje o fundamento dos direitos do homem, e isso graças ao seu consentimento universal [7].

Os direitos do homem são, portanto, estritamente conectados à paz: "… durante a guerra e a prossecução de qualquer forma de hostilidade, o direito à vida não só não pode ser garantido, mas até cada Estado beligerante pede o próprio sacrifício da vida". Da mesma forma, a guerra pode ser utilizada como válida justificativa para suspender os direitos de liberdade. Em Bobbio, o relacionamento entre paz e democracia pode ser assim resumido: "Democracia é aquela forma de governo na qual vigem regras gerais (as regras do jogo) que permitem aos cidadãos (aos jogadores) resolver os conflitos, que inevitavelmente nascem em uma sociedade onde se formam grupos que possuem valores e interesses constantes, sem recorrer à violência" [8].

E, para completar o círculo de inter-relacionamento e interdependência, há de se destacar que os direitos constituem as "precondições" da democracia. Em Bobbio, especificamente, esses direitos são os direitos de liberdade e alguns direitos sociais.

A influência de Kant em Bobbio é também evidente, podendo ser identificada no relacionamento entre Direito e república: o Direito que existe na república, e esse Direito se distingue do que pertence aos outros Estados (que não sejam repúblicas) pelo fato de que os espaços da liberdade que (o Direito) cria ou garante são considerados "universalizáveis". Unicamente determinadas liberdades são aptas a ser consideradas direitos do homem ou fundamentais e, consequentemente, devem ser reconhecidos e garantidos pelas próprias Constituições da república.

Raymundo Magliano Filho, com base nesses pensamentos, que quis "emocratizar" por meio do Instituto Norberto Bobbio, desmistificou a Bolsa diante da sociedade, utilizando princípios fundamentais como os da transparência, da visibilidade e do acesso. Princípios que para Bobbio são próprios da democracia.

Na mesma forma, hoje, conceitos como compliance, governança corporativa e responsabilidade social transmitem a mesma ideia de transparência, visibilidade e acesso. Tratam-se de formas de linguagem e controle que geram confiança e legitimidade social. Uma forma de crescimento não unicamente do mercado em si, mas sobretudo da pessoa, parte ativa do mercado.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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