A autorregulação da advocacia e as obviedades
16 de janeiro de 2021, 10h47
Nos últimos anos, tem-se promovido um intenso debate sobre os deveres de cooperação do advogado. O contexto está diretamente relacionado com a positivação do artigo 9º da Lei 9.613/98, introduzido em 2012 por meio da Lei nº 12.683. Em suma, o referido artigo especifica que algumas pessoas físicas e jurídicas devem proceder com a comunicação de movimentações suspeitas de lavagem de dinheiro aos órgãos de controle (artigo 11, inciso II). Não há obrigação específica aos advogados. No entanto, o inciso XIV do mencionado artigo 9º [1] deixa margem para dúvida, na medida em que impõe os deveres às pessoas físicas e jurídicas que prestem, v.g. serviços de assessoramento, aconselhamento e afins de qualquer natureza em operações específicas, entre outras, de compra e venda de imóveis e gestão de sociedades.
Em dezembro de 2020, a Comissão Especial para Análise do Anteprojeto de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro da OAB elaborou uma proposta de criação de mecanismos de autorregulação [2] da advocacia [3], fundamentalmente em razão dos crescentes movimentos que têm por objetivo criminalizar a advocacia e o legítimo recebimento de honorários. A referida proposição, em linhas gerais, atende aos principais pontos sensíveis da imposição de tais deveres ao advogado, como, por exemplo, a questão do sigilo. É dizer, não se pode exigir deveres de comunicação a advogados que atuem em questões estritamente jurídicas (artigo 1º da Lei 8.906/1994).
A proposta de provimento por parte da respeitada comissão de juristas abrange aspectos que são de crucial importância nos dias de hoje, a despeito destes — no espectro de uma lógica jurídica normal — serem óbvios. Aliás, nos dias atuais, reafirmar premissas óbvias tornou-se uma obrigação [4]. A comissão, nesse caso, foi além e tratou de regulamentar administrativamente as obviedades. É o caso, por exemplo, do artigo 2º, que veda a participação do advogado em crimes de lavagem de dinheiro. Ao mesmo tempo em que veda, também estipula limites: antes que se diga que o recebimento legítimo de honorários — ainda que maculados — caracterize branqueamento de ativos, é preciso dizer que não. A bem da verdade, o advogado — como qualquer outro cidadão — pode ser sujeito ativo de lavagem de dinheiro, conquanto participe efetivamente da empreitada criminosa, não só no que diz respeito aos elementos objetivos do tipo, como também em relação à tipicidade subjetiva da conduta. O parágrafo único do mesmo dispositivo estabelece, portanto, que não há crime quando existe a prestação legítima de serviços e a consequente contraprestação. Inclusive porque, do contrário, tratar-se-ia de criminalizar uma ação neutra, a qual, na valiosa lição de Luís Greco, cuida-se de intervenção manifestamente impunível em fato típico alheio [5].
A imposição do dever de comunicação também reclama que se diga algo que é indispensável para assegurar o livre exercício da advocacia: o artigo 11 dispõe que não estão sujeitos aos aludidos deveres as eventuais informações que se vinculem estritamente à atividade jurídica, incluindo-se, também, as orientações e consultas acerca do início ou da evitação de uma ação judicial. De fato, a discussão que visa a incluir o causídico como sujeito obrigado não é nova. Aliás, o debate no entorno dessa questão advém, em grande parte, do antes mencionado artigo 9º, inciso XIV, da Lei 9.613/98, porquanto a redação do referido dispositivo versa acerca da comunicação de movimentações atípicas pelos profissionais que prestem qualquer tipo de serviço de assessoria ou consultoria. As principais construções doutrinárias que se debruçaram sobre esse tema não trataram da interpretação específica do artigo, mas, sim, do próprio problema, qual seja, se o advogado pode — de qualquer modo — ser inserido nesse rol.
Para Pierpaolo Bottini, essa possível imposição normativa resulta em uma contradição, posto que, de um lado, há a necessidade de cooperar com informações de caráter confidencial e, doutro, o legislador criminaliza a conduta de violação de segredo profissional (artigo 154, Código Penal), bem como a de traição, pelo advogado, de dever profissional (artigo 355, Código Penal) [6]. Trata-se, portanto, de uma flagrante colidência que se caracteriza pelo confronto de uma norma de cunho extrapenal com outras penais. Na Espanha, por exemplo, parte da doutrina tem por certo que não se trata de uma colidência, senão de um evidente estado de necessidade. Ivó Coca Vila, ademais, alude que o sigilo profissional é uma incumbência, constituindo não só um dever, como também um direito, a compreender que essa garantia concebe a defesa como um elemento essencial de um Estado de Direito [7].
A questão que se coloca não é uma imposição de privilégio ou, até mesmo, blindagem em relação ao advogado, senão a necessidade de assegurar o livre exercício da profissão, uma vez que a grande diferença entre este e os demais sujeitos obrigados está no objeto da prestação de serviços que realiza. E aqui merece uma ressalva no sentido de que a reserva penal se vincula, essencialmente, à atividade advocatícia que necessita e legitima a imperiosidade do sigilo, através da atuação em contencioso judicial e consultivo [8]. É claro, por outro lado, que se as atividades se desvinculam das tarefas forenses — isto é, aquelas elencadas no artigo 1º, incisos I e II, da Lei 8.906/94 — daí, sim, poderá se falar em contribuição com os órgãos de controle, "pues no hay derecho fundamental alguno que tutelar, ni el abogado desempeña entonces función institucional alguna em el sistema judicial" [9]. O fato é que o esvaziamento da atuação livre da advocacia impede a consecução do direito de defesa e do próprio exercício da atividade. Não é demais lembrar, nesse sentido, que "direito não é direito sem advogados. E sem direito, só há tirania" [10].
Por último, a inserção do advogado no rol de sujeitos obrigados a cooperar com os órgãos de controle — notadamente em relação aos dados que se referem à atividade privativa da profissão — resulta na violação de normas infraconstitucionais e constitucionais, motivo pelo qual exigir essa incumbência é medida antidemocrática. Com efeito, a partir do momento em que este atende a possível exigência que o obriga a comunicar situações que possam ter visos de tipicidade penal, ele, ao mesmo tempo, comete os crimes de violação de segredo profissional e patrocínio infiel. Afora isso, o dever de comunicar também mitiga garantias constitucionais, como o próprio direito de defesa, uma vez que o acusado em processo penal, por exemplo, não teria a segurança necessária para relatar ao seu representante o fato com todas as suas circunstâncias, sabedor de que o advogado não teria a possibilidade de assegurar a confidencialidade dos dados.
À base de todo esse cenário, o provimento apresentado dá conta de estabelecer premissas lógicas, a saber: 1) não há crime no recebimento legítimo de honorários, ainda que maculados; 2) o dever de comunicação somente será imposto quando o advogado não prestar serviços privativos do ofício; e 3) pratica a conduta de lavagem de dinheiro, o profissional que concorre, instiga ou presta auxílio jurídico à prática criminosa, como, por exemplo, através da simulação do contrato de honorários.
Referências bibliográficas
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais – comentários à Lei nº 9.613/98 com as alterações da Lei nº 12.683/2012. 2. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 136.
GRECO, Luis. Cumplicidade através de ações neutras. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. v.1. 190p.
SIEBER, Ulrich. Programas de compliance en el Derecho Penal de la Empresa: una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. In: URQUIZO OLAECHEA, ABANTO VÁSQUEZ e SALAZAR SÁNCHEZ(coords.), Homenaje a Klaus Tiedemann. Dogmática penal de Derecho penal econômico y política criminal, Lima: Tomo I, 2011, p. 205-246.
STRECK, Lenio Luiz. Ensino, dogmática e negacionismo epistêmico. 1 ed. – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.
STRECK, Lenio Luiz. Qual é o modelo de advogado ideal? Um olhar de esperança. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-16/senso-incomum-qual-modelo-advogado-ideal-olhar-esperanca: Acesso em: 13.01.2020.
VILA, Ivó Coca. La posición jurídica del abogado: entre la confidencialidad y los deberes positivos. In: Jesus-Maria Silva Sanchez (Dir) e Raquel Montaner Fernandez (coord.). Criminalidad de empresa y compliance. Barcelona, Espanha: Atelier Libros, 2013, p. 287-318.
[1] "Artigo 9o Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: […] XIV – as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações: a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais".
[2] Essa necessidade de autorregulação advém da criação de estruturas, pelo Estado, que a estimulam. É o que se chama de autorregulação regulada: "La co-regulación se caracteriza por el hecho de que las disposiciones estatales crean preceptos más o menos detallados o crean estructuras que estimulan la autorregulación y/o hacen vinculantes medidas de la autorregulación. Por ello, la co-regulación es designada como la “autorregulación regulada”, la cual, en cuanto a la discrecionalidad de contenido concedida, a los “creadores” de los programas previstos así como a las estructuras de estímulo o de presión empleadas, presentan diversas formas mixtas e intermedias que van desde la “autorregulación” hasta la regulación estatal". SIEBER, Ulrich. Programas de compliance en el Derecho Penal de la Empresa: una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. In: URQUIZO OLAECHEA, ABANTO VÁSQUEZ e SALAZAR SÁNCHEZ (coords.), Homenaje a Klaus Tiedemann. Dogmática penal de Derecho penal econômico y política criminal, Lima: Tomo I, 2011, p. 205-246.
[3] https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/proposta-preve-advogado-comunique-operacoes-suspeitas-clientes.
[4] Nesse ponto, a lição de Streck: “Vivemos em um tempo em que precisamos reafirmar o óbvio. É a velha tese de Orwell: em tempos de abismo, temos a tarefa de reafirmar o óbvio. Temos que reafirmar que verdades existem, que aplicar a lei não é feio, que nem tudo é questão de opinião. Que a Terra é redonda, que vacinas funcionam, que o aquecimento global existe. Que Kelsen não é um exegetista. Que Newton, afinal, vejam-só, não era um burro”. STRECK, Lenio Luiz. Ensino, dogmática e negacionismo epistêmico. 1 ed. – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 111.
[5] GRECO, Luis. Cumplicidade através de ações neutras. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. v.1. 190p.
[6] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais – comentários à Lei nº 9.613/98 com as alterações da Lei nº 12.683/2012. 2. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 136.
[7] VILA, Ivó Coca. La posición jurídica del abogado: entre la confidencialidad y los deberes positivos. In: Jesus-Maria Silva Sanchez (Dir) e Raquel Montaner Fernandez (coord.). Criminalidad de empresa y compliance. Barcelona, Espanha: Atelier Libros, 2013, p. 287-318..
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Qual é o modelo de advogado ideal? Um olhar de esperança. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-16/senso-incomum-qual-modelo-advogado-ideal-olhar-esperanca: Acesso em: 13.01.2020.
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