Senso Incomum

Qual é o modelo de advogado ideal? Um olhar de esperança!

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16 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Como sou amante de literatura e cinema (vejam mais de 200 vídeos no YouTube do Programa Direito & Literatura — TV Justiça e TV Unisinos), penso que podemos traçar um modelo de advogado ideal, assim como André Karam Trindade e eu já o fizemos do modelo de Juiz no livro Os Modelos de Juiz na Literatura (editora Atlas), e assim como fiz sobre o modelo de professor ideal no livro Diálogos com Lenio Streck (2ª. Ed. Editora Livraria do Advogado) e também já havia feito sobre o modelo de estudante (ver aqui).

Ora, é uma coluna necessária. Por dois motivos. Primeiro: já de há muito digo que, no Brasil, advocacia virou corrida de obstáculos. Exercício de humilhação. E eu estou na trincheira com os advogados, pois.

Segundo. Direito não é direito sem advogados. E sem direito, só há tirania (já dizia Locke). Logo, sem advogados… daí a máxima, a decisão primeira do tirano shakespeariano: kill all the lawyers.

Ora, o bom autor Jeremy Waldron chegou a brincar em palestra, falando sobre o juiz Hércules dworkiniano, que, sendo o Direito interpretativo-argumentativo como é — e Waldron "compra" a tese dworkiniana em grande medida, como mostra Gilberto Morbach em livro que saiu após pesquisa sob minha orientação —, seria interessante falar em um advogado Hércules. Bingo, Waldron. (Isso que ele não conhece o Brasil…!)

Assim, por tudo isso, é possível — e necessário — falar de um modelo que conjumina o "Fator Stoic Mujic", do advogado Donavan no filme A Ponte dos Espiões, (estrelado por Tom Hanks), com o "Fator Stevenson", do Filme A Luta por Justiça (estrelado por Michael B. Jordan).

Não é um filme para Oscar. Mas, para quem é advogado, é simbólico: representa o sofrimento dos réus pobres diante do sistema de justiça — e reforça a necessidade de preservarmos as garantias processuais. E traça o modo como advogados devem agir diante do arbítrio.

Já escrevi bastante sobre o Fator Stoic Mujic (ver aqui). O nome do advogado é Donavan, que é designado para defender um espião russo no auge da Guerra Fria. Julgamento de fachada. Donavan sabe que isso lhe trará antipatias. Até a sua mulher e seu filho são contra a que ele "pegue" a causa. A empresa diz que seria bom para o país que Donavan fizesse a defesa.

Donavan aceita. Luta. O juiz é solipsista ao máximo. Donavan alega garantias. Esgrime a 5ª. Emenda. Pressionado pela CIA, cujo agente lhe diz que, nesses casos, não se seguia nenhum livrinho de regras, Donavan responde:

"Você é descendente de alemães e eu de irlandeses. Sabe o que faz de nós, americanos? Só uma coisa: uma, uma, uma — o livro de regras. Chamamos a isso de Constituição. Concordamos com as regras e é isso que nos faz americanos. E não me perturbe mais, seu filho da mãe."

Ele não disse "bingo". Mas digo eu.

Donavan recorre à Suprema Corte. É vaiado nas ruas. Sua casa é atingida por disparos. Sua família se vira contra ele. Seu filho de 10 anos lhe pergunta: "Por que você está defendendo um comunista? Você é comunista"? E Donavan responde: "Apenas estou fazendo meu trabalho". Hoje em Pindorama está assim: você defende alguém acusado de corrupção? Então é corrupto.

Há um momento em que, falando com o cliente (espião), este estranha que Donavan nunca lhe tenha perguntado se era inocente. Donavan respondeu: não me importa. O que importa é que o Estado é que deve provar isso. E não o contrário. Permito-me mais um bingo. Presunção da inocência!

Para coroar isso, há uma cena que é o exemplo que confirma o conceito de princípio. Ao visitar seu cliente na prisão, este lhe conta a seguinte história:

Quando menino, na Rússia, seu pai tinha um amigo. Seu pai dizia: preste atenção nesse homem. Ele não tinha nada de especial. Mas um dia agentes invadiram sua casa, quando lá estava esse amigo. Bateram na sua mãe, no seu pai e no amigo. Que cada vez que caia, surrado e chutado, levantava-se. E lhe batiam de novo. Caía e se levantava. E disse o espião: "E por isso sobreviveu". O espião fez entender, então, que Donavan lembrava a ele esse amigo de seu pai.

E disse porque: aquele homem, amigo de seu pai, era um stoic mujic, que quer dizer "o homem que fica em pé" (ou o homem estoico, que sofre, mas não cai).

Eis o Fator Stoic Mujic. Apanhamos e nos levantamos. Apanhamos e nos levantamos. E por isso sobrevivemos.

Já o filme "A luta por Justiça" (Just Mercy) é a, digamos assim, complementação do Fator Stoic Mujic. O advogado Stevenson, negro, formado em Harvard, vai morar no Alabama, com o propósito de defender pessoas mal defendidas e/ou julgadas à meia-boca. O caso que dá azo ao filme é o do também negro Walter McMilian, condenado “sumariamente” à morte pela morte de uma jovem. A prova é fragilíssima. Um testemunho — forjado — "suficiente". Stevenson revisa o caso e descobre várias testemunhas que comprovam a falsidade do testius unus. É mesmo essa testemunha confessa que mentiu. Stevenson é atacado. Discriminado. Xingado. O caso é objeto do famoso programa 60 Minutos. Com a pressão, pede novo julgamento. A testemunha confirma que mentiu. Porém, o juiz nega o pedido, mesmo com a alegação do precedente Brady v. Maryland (o Promotor omitiu provas). (O mesmo precedente que uso, diga-se, para sustentar o Projeto de Lei 5.282/2019, apresentado pelo senador Anastasia, que ficou conhecido como projeto Anastasia-Fokus-Streck — ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). É negado. Vai à Suprema Corte do Estado. Consegue novo julgamento. No novo julgamento, o Promotor concorda com a absolvição. Eis o que aqui passo a denominar de Fator Stevenson, que, ao lado Fator Stoic Mujic, devem iluminar a advocacia brasileira.

“Sei que a desesperança é inimiga da justiça. A esperança nos permite ficar de pé quando nos mandam sentar; e falar, quando nos mandar calar. O oposto da pobreza não é a riqueza; é a justiça. O caráter de uma nação não se reflete em como se trata os ricos e privilegiados, mas em como tratamos os pobres e os condenados. Nosso sistema de justiça tirou mais desse homem inocente do que pode devolver a ele. Talvez todos nós precisemos de compaixão”.

Há mais de 30 anos Brian Stevenson luta para reverter resultados de pessoas condenadas injustamente. Já conseguiu a reversão de mais de 140 casos de corredor da morte. Desnuda dia a dia as falhas do sistema.

Divulgação
Reprodução

Há uma cena do filme que fotografei. O corredor da morte e as mãos — todas negras — para fora das grades, despedindo-se de McMillian. Vejam:                                   

Quando vejo o modo como são violados direitos cotidianamente e o modo como advogados são tratados neste Brasil a fora, penso em Donavan e Stevenson. Penso no Fator Stoic Mujic e no Fator Stevenson. Advogados: não esqueçam disso! Sem advogados,  não há Direito; sem Direito, só há tirania.

Quando lhe mandarem sentar, levante; quando lhe mandarem calar, tome a palavra. Pela ordem. Se não tiver nada a dizer, diga apenas: Stoic Mujic! Indigne-se!

Talvez tenhamos que, com certa urgência, incluir na legislação (talvez no Estatuto da OAB) o dever de indignação (duty of outrage) do Advogado. Meu brilhante ex-aluno Diogo Malan trata muito bem desse assunto  aqui mesmo na ConJur.

Numa palavra: O advogado não tem só o direito de se indignar; tem até mesmo o dever de se indignar.

Stoik Mujic!

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