Observatório Constitucional

A teoria dos precedentes e o julgamento sobre o direito ao esquecimento no STF

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

13 de fevereiro de 2021, 8h01

Nesta quinta-feira (11/2), o STF finalizou o julgamento do caso em que se debateu a existência de um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro. Tratou-se do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.010.606, em que se discutiu se esse direito é albergado expressa ou implicitamente pela Constituição Federal ou se pode ser inferido a partir das diversas disposições legais de natureza civil ou penal já existentes no Direito brasileiro. Na origem, foi ajuizada uma ação indenizatória por danos morais em razão da veiculação de programa de televisão sobre crime chocante ocorrido há décadas, que, segundo a argumentação dos autores da inicial, irmãos da vítima, teria gerado danos emocionais e psicológicos pelo fato de relembrar a tragédia familiar. Em seu voto, o ministro Relator, Dias Toffoli, após profundo exame da legislação e jurisprudência do direito comparado, demarcou o que entendeu estar sob exame perante o tribunal [1].

De um lado, o ministro expressamente limitou a discussão à medida em que afastou do debate o possível direito à desindexação de entradas dos mecanismos de busca da internet, deixando claro que a questão a ser resolvida diz respeito exclusivamente ao direito ao esquecimento [2]. De outro lado, o ministro estendeu o debate ao afirmar que o caso não versava apenas sobre programas de televisão, abarcando também a veiculação de informações por outras formas, inclusive as digitais [3]. Seu entendimento, acompanhado pela maioria do tribunal, foi consubstanciado na seguinte de tese:

"É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível" [4].

Partindo do pressuposto de que a maioria do tribunal concordou com as razões de decidir apresentadas pelo relator conforme os votos orais proferidos em plenário, qual será a regra jurídica vinculante (ratio decidendi) para os demais órgãos do Poder Judiciário? Pode o tribunal "recortar" aspectos do caso concreto para ampliar ou restringir as razões de decidir que utiliza? Aliás, se a "tese" já é formulada de modo abstrato, qual é a relevância de se identificar o caso concreto para fins de aplicação desse entendimento?

Antes de responder a essas perguntas, é necessário que se estabeleçam algumas premissas. Em artigo anterior nesta coluna "Observatório Constitucional", tratei da diferenciação entre ratio decidendi e as "teses" fixadas pelo STF [5]. De forma sintética, as ratio decidendi são as regras jurídicas efetivamente utilizadas para a resolução das questões em uma decisão judicial; já as teses nada mais são do que o enunciado textual que deve espelhar fielmente a ratio. Para que se respeite a separação funcional entre jurisdição e legislação, o elemento vinculante de uma decisão é sua ratio decidendi, e não a "tese" que a descreve. Entretanto, como encontrar essa ratio decidendi?

No Direito Comparado, há várias propostas para a definição do que é uma ratio decidendi [6]. Uma das propostas mais difundidas na prática dos precedentes no common law é a que entende que a ratio decidendi é a regra de direito necessária para o julgamento de um caso; ou seja, na hipótese de se inverter o sentido da regra de direito, inverte-se o sentido do julgamento. Embora essa proposta seja de relativa simplicidade, ela pode levar a equívocos, pois pode haver mais de uma regra utilizada em um caso concreto para obtenção do mesmo resultado, ou seja, mais de uma ratio decidendi que justifica a tomada de decisão (basta pensar em um exemplo de inconstitucionalidade de uma norma jurídica por um vício formal e por um vício material: aqui as duas regras utilizadas são rationes decidendi, ainda que a inversão de seus sentidos individualmente não altere o resultado do julgamento).

Uma visão mais adequada de ratio decidendi é apresentada por MacCormick quando aponta que ela é uma regra de direito suficiente para a resolução de uma questão que deve ser julgada pelo órgão judicial.[7] Em outras palavras, a resolução de questões postas em juízo exige a utilização de regras jurídicas com suporte fático e consequência jurídica que servirão de parâmetro para casos futuros.

É importante relembrar que não há texto autointerpretável ou norma jurídica autoaplicável. Adotar a ideia de que a ratio decidendi é uma regra jurídica não é pressupor um automatismo na interpretação jurídica do direito vigente por parte do tribunal que edita o procedente ou do juízo que deve interpretá-lo e aplicá-lo em casos futuros. Isso porque a construção jurídica do suporte fático e da consequência jurídica de uma ratio é o produto da hermenêutica jurídica, permeável aos mais variados tipos de argumentos admitidos no discurso jurídico, inclusive os argumentos fundados nos princípios constitucionais.

Do ponto de vista da interpretação e aplicação de precedentes, o "caso concreto", na verdade, aponta para o suporte fático da regra de direito utilizada como ratio decidendi para resolver uma questão jurídica. Aqui é primordial avaliar toda a fundamentação da decisão judicial para depreender quais elementos foram considerados relevantes pela corte no precedente e quais categorias foram utilizadas para descrever esses fatos. Isso porque os elementos fáticos dos casos julgados podem ser submetidos a categorias de diversos graus de abstração e, logicamente, quanto maior for a abstração das categorias utilizadas, mais abrangente será o suporte fático da ratio decidendi. É na fundamentação da própria decisão judicial que se encontram as categorias utilizadas para construção do suporte fático da ratio decidendi e, assim, reitera-se que elas não são criadas a posteriori no momento de interpretação e aplicação do precedente.

Deixa-se registrado que a discussão sobre o melhor "modelo" ou "conceito" de ratio decidendi não é uma questão semântica ou nominalista (como, aliás, nunca são as questões de interpretação jurídica). As posições acima são propostas fundadas em diferentes valores normativos, que são em maior ou menor medida concretizados por elas. Quais as vantagens do modelo de ratio decidendi como regra de direito suficiente para a resolução de questões a serem resolvidas em um processo judicial? De um lado, ela evita que os tribunais resolvam questões jurídicas desnecessárias muito além das questões postas em juízo, preservando as exigências de inércia, imparcialidade e contraditório que são marcas do exercício do poder judicial. De outro lado, alcança-se elevado grau de segurança jurídica e isonomia, uma vez que casos semelhantes (ou seja, situações futuras em que haja incidência do suporte fático da ratio decidendi) sejam efetivamente regidos pela mesma razão de decidir do precedente.

Em fechamento a essa incursão na teoria dos precedentes, é possível afirmar que: a) é o tribunal que edita o precedente — frise-se: a partir da interpretação do direito vigente e não de uma atitude voluntarista pré-jurídica que define o grau de abstração das regras de direito que devem ser utilizadas para resolver as questões necessárias; b) é a ratio decidendi que condiciona o conteúdo da "tese" fixada pelos tribunais e não o contrário; e c) eventual distinguishing (afastamento de uma ratio decidendi mediante a criação de uma cláusula de exceção pela corte que deve aplicar o precedente) deve ser feito tendo em vista o suporte fático da ratio decidendi na forma como entendido pela corte que julgou o precedente, ou seja, não basta apontar qualquer dessemelhança fática entre os casos, mas justificar o porquê de as circunstâncias presentes não justificarem a incidência da ratio à luz dos argumentos utilizados no precedente.

Retornando ao caso do direito ao esquecimento perante o STF, pode o tribunal "recortar" elementos fáticos do caso para fins de definição da ratio decidendi? A resposta é afirmativa.

O ministro Dias Toffoli expressamente reconheceu que o "caso concreto" não versava sobre a desindexação de entradas de mecanismos de buscas na internet, uma vez que o suposto direito ao esquecimento teria âmbito de proteção mais restrito. Em outras palavras, na formulação da ratio decidendi de seu voto, o ministro efetivamente excluiu do suporte fático da regra utilizada elementos relativos aos mecanismos de busca. Isso significa que essa questão não foi examinada e, portanto, não há uma tomada de posição pelo tribunal sobre se existiria um direito à desindexação no ordenamento constitucional ou legal brasileiros. Trata-se de postura perfeitamente legítima considerando que cabe ao tribunal que fixa o precedente definir o grau de abstração exigido pelo direito vigente para a regra a ser utilizada na decisão.

Embora a ação judicial de origem tivesse por objeto o pedido de indenização por danos morais em razão da veiculação de programa na televisão, o "caso concreto", com base na argumentação do tribunal, versou sobre a divulgação por qualquer meio de informações sobre terceiros. A ratio decidendi utilizada pelo tribunal não trata apenas de "televisão", "documentário", "encenação artística"; os diversos argumentos apresentados apontam para um suporte fático bem mais amplo que abarca toda forma de veiculação de informações licitamente obtidas e originalmente divulgadas em qualquer suporte físico ou digital. Novamente, trata-se de postura legítima, pois o tribunal identificou qual o grau de abstração exigido pelo ordenamento jurídico para a regra jurídica aplicada.

Dessa forma, a tese proposta deve ser interpretada de acordo com sua ratio decidendi. Embora a proposta de tese mencione "meios de comunicação social", a fundamentação utilizada e, consequentemente, a ratio decidendi é mais ampla e abarca, em última análise, toda e qualquer manifestação de pensamento divulgadas publicamente por diversos meios. Em seu voto, o ministro relator apresenta argumentos que vão além do direito à liberdade de informação na imprensa e apoia-se no significado constitucional do direito à liberdade de expressão em geral, em contextos como passeatas para reivindicar mudanças legislativas (ADPF 187, DJe 29.05.2014), publicação de obras bibliográficas sem autorização do biografado (ADI nº 4.815, DJe. 01.02.2016), manifestação do pensamento em ambiente digital não restrito a atividades de imprensa [8]. Caso existam diferenças no grau de abstração utilizado na ratio decidendi e na "tese", é o primeiro que deve prevalecer.

Essas considerações são centrais para compreensão do que decidido no caso do direito ao esquecimento, tendo em vista a vinculatividade da ratio decidendi dos recursos extraordinários perante as demais instâncias do Poder Judiciário. Desse modo, a ratio decidendi do julgado (e não a "tese" que a descreve parcialmente) vinculará as demais instâncias do Poder Judiciário da seguinte maneira:

1) Em situações em que se tratar de pedido de desindexação de termos de mecanismos de busca pela internet, deverá haver o afastamento do precedente pela simples não incidência de sua ratio decidendi. Aqui não se trata da técnica do distinguishing, mas apenas afastamento da incidência de uma regra que nem preliminarmente incide sobre essa situação;

2) Quando houver pedido de proibição de veiculação de informação em qualquer meio com base no direito ao esquecimento, haverá a incidência da ratio decidendi e, salvo circunstâncias extraordinárias não antecipadas pela argumentação do tribunal, a pretensão deverá ser indeferida. Essa é a solução correta, inclusive em casos em que não estiverem envolvidos diretamente "meios de comunicação social" (basta pensar no exemplo de uma passeata ou uma postagem em rede social privada que reivindique combate à violência contra a mulher fazendo alusão ao crime que ensejou a discussão presente perante o STF). Nesse caso, não será admitido o distinguishing pelo fato de a "tese" referir-se especificamente a "meios de comunicação social", uma vez que toda a fundamentação do voto é bem mais abrangente do que isso.

E, naturalmente, como todo precedente judicial, a ratio decidendi do caso, em circunstâncias absolutamente excepcionais, pode ser afastada mediante a criação de uma regra de exceção, caso a ponderação dos princípios constitucionais envolvidos aponte nesse sentido (no caso do direito ao esquecimento, a liberdade de expressão e informação de um lado e a privacidade e honra do outro). De todo modo, a simples tentativa de interpretação a contrario sensu da "tese" é absolutamente insuficiente para se desincumbir do ônus argumentativo necessário para eventual distinguishing.

Como última consideração, em excelente artigo publicado na última edição deste Observatório Constitucional, André Rufino do Vale chama a atenção para diversos aspectos processuais que poderão ser aprimorados pela comissão de juristas nomeada pelo presidente da Câmara dos Deputados e presidida pelo ministro Gilmar Mendes para "elaborar anteprojeto de legislação que sistematiza as normas de processo constitucional brasileiro" [9].

No mesmo espírito de contribuir com o debate, seria interessante prever dois momentos distintos de votação nos casos em que se fixam "teses": o primeiro para julgamento do mérito do caso, o segundo para a fixação do enunciado da tese. Trata-se de prática adotada no caso do direito ao esquecimento, em que o ministro Edson Fachin, mesmo tendo ficado vencido no mérito, votou na formulação da tese [10].

Essa iniciativa é salutar, pois permite inclusive em julgamentos finalizados em ambiente virtual a participação da formulação do enunciado da "tese" dos ministros que ficaram vencidos no mérito. O objetivo é, conforme se tentou desenvolver neste artigo que examina o exemplo da decisão sobre o direito ao esquecimento, propiciar uma maior precisão da identificação da ratio decidendi vinculante do caso e possibilitar maior respeito aos precedentes da corte.

 


[2] Voto do Min. Rel. Dias Toffoli no RE 1.010.606, p. 19.

[3] Voto do Min. Rel. Dias Toffoli no RE 1.010.606, p. 43-49.

[4] Voto do Min. Rel. Dias Toffoli no RE 1.010.606, p. 62.

[6] Para uma discussão aprofundada das diferentes propostas, ver Victor Marcel Pinheiro, Decisões Vinculantes do STF: a cultura de precedentes, São Paulo, Almedina, 2021, pp. 175 e ss.

[7] Neil MacCormick, Rhetoric and the Rule of Law: a Theory of Legal Reasoning, Oxford, Oxford University, pp. 153-9.

[8] Voto do Min. Rel. Dias Toffoli no RE 1.010.606, p. 51-3.

[10] Veja-se, como outro exemplo, o julgado no RE 1.055.941, Rel. Min. Dias Tofolli, j. 04/12/2019, pp. 529 e seguintes, em que os Ministros Marco Aurélio e Celso de Melo, mesmo vencidos no mérito, votaram na formulação da tese a respeito da possibilidade de compartilhamento de dados entre administração tributária e financeira com órgãos de persecução penal sem autorização judicial.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Visiting Scholar na Universidade de Columbia (EUA); consultor Legislativo do Senado Federal e sócio do Trindade, Camara, Retes, Barbosa, Magalhães, Pinheiro – Advogados Associados. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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