Observatório constitucional

A fixação de teses pelo STF e a "sumulização" dos precedentes constitucionais

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

1 de agosto de 2020, 8h00

No dia 3 de junho de 2020, o Pleno do STF iniciou o julgamento da ADI 2.167, em que se discutiu a constitucionalidade de dispositivos da Emenda nº 7, de 1999, à Constituição do Estado de Roraima que condicionavam a nomeação de agentes públicos pelo Poder Executivo (entre eles o Defensor Público Geral, Procurador-Geral do Estado e titulares de entidades da administração pública indireta) à prévia aprovação do Poder Legislativo estadual. Após formar-se maioria pelo provimento parcial da ação, o Relator, Min. Alexandre de Moraes, sugeriu a adoção de uma “tese” em suas palavras, o “extrato do que foi julgado”, no sentido de que: “É vedado à legislação estadual submeter à aprovação prévia da Assembleia Legislativa a nomeação de dirigentes das autarquias, fundações públicas, presidentes das empresas de economia mista, interventores de municípios, bem como os titulares de Defensoria Pública e da Procuradoria-Geral do Estado.” A principal justificativa para a necessidade da fixação de uma tese foi o constante desrespeito aos entendimentos do STF pelos demais órgãos do Poder Judiciário, que, por vezes, “simplesmente ignoram” a posição da Corte.

Contudo, houve questionamentos no sentido da fixação de tese em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Segundo o Min. Ricardo Lewandowski, a fixação de tese seria uma alteração da praxe de décadas do controle abstrato no STF. Em suas palavras: “corremos o risco de deixarmos aquela tradicional posição do STF de sermos apenas legisladores negativos. Há um perigo na fixação de tese de avançarmos na competência do Legislativo.” Em razão da ausência do Presidente, Min. Dias Toffoli, o Plenário entendeu por bem postergar a decisão sobre o cabimento da fixação de tese ou não.

A questão que parece ter sido óbice para a fixação da tese na ocasião foi: poderia o Tribunal atuar dessa forma? A verdade é que o faz e já há algum tempo.

No caso do controle concreto de constitucionalidade, após a criação do requisito de admissibilidade da repercussão geral pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, o Tribunal começou a firmar teses em recursos extraordinários a partir de 2008, ao fixar a Tese nº 15 (RE 570.177, j. 30/04/2008): “Não viola a Constituição o estabelecimento de remuneração inferior ao salário mínimo para as praças prestadoras de serviço militar inicial”. Seu teor é idêntico ao da Súmula Vinculante nº 6, de modo que se destaca a identidade não só textual, mas também da função desempenhada pelos dois tipos de enunciado, conforme será abordado. Exemplo recente de tese – em classe processual diferente dos recursos extraordinários – foi aquela fixada no RHC nº 163.334 (j. 18/12/2019), constando do dispositivo decisório que “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990".

No caso das ações de controle abstrato, o site do Tribunal indica que já foram fixadas 30 teses.1 A primeira delas data de 2015 na ADI 2.699 (j. 20/05/2015), em que se declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 11.404, de 19 de dezembro de 1996, do Estado de Pernambuco, que fixava valor de depósito prévio recursal no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis do Estado. No dispositivo do acórdão consta a seguinte tese: “A previsão em lei estadual de depósito prévio para interposição de recursos nos Juizados Especiais Cíveis viola a competência legislativa privativa da União para tratar de direito processual (art. 22, I, da Constituição)”.

O CPC de 2015, de modo lacônico, prevê a existência de “teses” no julgamento de recursos repetitivos (art. 927, §§ 2º e 4º), no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 979, § 2º, nas Súmulas Vinculantes, decisões de controle concentrado de constitucionalidade ou incidente de assunção de competência (art. 988, incisos III e IV, e § 4º). Contudo, não há definição legal de sua natureza ou regime jurídico.

Para avaliar o significado das teses nos precedentes do STF, há, pelo menos, três problemas a serem investigados: 1º) natureza jurídica das teses, 2º) o cabimento de sua fixação no ordenamento constitucional brasileiro e 3º) as razões da utilização cada vez mais frequente da fixação de teses pelo STF.

1º problema: seriam as teses um enunciado prescritivo semelhante à lei, no sentido da discussão posta na ADI 2.167? A resposta é negativa. As “teses” nada mais são do que enunciados prescritivos sintéticos nos quais se encontra o entendimento do Tribunal sobre a questão discutida. As semelhanças aqui não são mera coincidência: trata-se, na verdade, de enunciados cuja expressão textual se assemelha, em ordem cronológica, aos assentos da antiga Casa de Suplicação de Lisboa, recepcionados pelo direito brasileiro mediante o Decreto nº 2.684, de 1875,2 aos enunciados da Súmula da Jurisprudência Dominante (criada em 1963, tendo como um de seus idealizadores o Min. Victor Nunes Leal) e aos enunciados da Súmula Vinculante (criada pela EC 45/2004). Nesse sentido, pode-se falar em uma tendência de “sumulização” dos precedentes constitucionais na prática recente do STF.

As teses são expressão da razão de decidir (ratio decidendi) comum à maioria dos membros do Tribunal, também denominada fundamentos determinantes (na terminologia do art. 489, § 1º, inciso V, do CPC/2015). As teses não são as rationes decidendi, mas apontam para elas. Isso significa que, independentemente da parte textual da decisão em que sejam expressadas (ementa, fundamentação ou, até mesmo, dispositivo decisório), as teses são razões utilizadas pelo Tribunal para resolver questões prévias ao julgamento da questão principal do caso sob análise e, desse modo, do ponto de vista da teoria da decisão judicial, sempre são parte de sua fundamentação. Isso é primordial para reconhecer que o regime jurídico das teses é, na verdade, o mesmo regime jurídico dos fundamentos determinantes das decisões do Tribunal, inclusive para fins de cabimento de recursos e meios de impugnação autônomo (como a reclamação constitucional). Considerando-se a jurisprudência recente do STF para as teses em recursos extraordinários, pode-se afirmar que as teses definidas em Plenário – independentemente da classe processual em que fixadas – são vinculantes para as demais instâncias do Poder Judiciário, nos termos do art. 927, inciso V, CPC/2015.3

2º problema: a fixação de teses é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive no julgamento de ações de controle abstrato de constitucionalidade? A resposta é sim, desde que elas sejam compreendidas de maneira correta. As teses jamais podem ser consideradas proposições legislativas, uma vez que, ao contrário dessas, as razões expostas pelos julgadores para a sua enunciação são decisivas e condicionam sua interpretação. Trata-se de observação já feita por Castanheira Neves a respeito dos criticáveis assentos imutáveis do direito português, declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 810/1993.4 No mesmo sentido, Lênio Luiz Streck já apontava, em relação às Súmulas Vinculantes, que elas não poderiam ser compreendidas de modo abstrato e desvinculado dos casos concretos em que tiveram origem.5

Esses autores apontam o problema de se misturar a racionalidade de atividades essencialmente diferentes como jurisdição e legislação. Na mesma linha, Jeremy Waldron destaca que, desde o pensamento moderno sobre a separação de poderes, essas duas atividades estatais teriam “integridades” diferentes, ou seja, procedimentos, discursos, racionalidade e argumentos admissíveis diferentes para que cada uma possa ser exercida com base em seus valores e objetivos específicos.6 Não se pode esquecer que as teses (assim com as súmulas) são fruto de atividade jurisdicional e necessariamente dessa maneira devem ser compreendidas.

3º problema: se a adoção de teses nada mais significa do que a expressão de uma ratio decidendi comum à maioria do Tribunal, por que sua adoção é cada vez mais comum na prática do STF? Aqui é interessante retomar a razão do surgimento da Súmula da Jurisprudência Dominante do STF ainda na década de 1960.

Nas palavras do Min. Victor Nunes Leal, em artigo em que revisita o surgimento do instituto, havia a dificuldade de sistematizar os julgamentos do Tribunal, para se localizarem os precedentes com menor dificuldade. Prossegue Victor Nunes Leal: Veio, assim, a Súmula, na mesma linha da publicação em dia da Revista Trimestral de Jurisprudência, bem como da sua distribuição (até há pouco gratuita) aos membros dos tribunais do país e a todos os juízes de direito. Um passo adiante, em busca de solução mais perfeita, será inevitavelmente a computação eletrônica das decisões judiciais.7

A “computação eletrônica” hoje é realidade no STF e nos demais tribunais brasileiros, entretanto, a dificuldade de se “localizarem os precedentes” do Tribunal ainda permanece. Não há grandes obstáculos para se acompanhar os trabalhos da Corte pelos diversos veículos de informação e imprensa – inclusive do próprio Tribunal, como seu site. De modo diverso, as dificuldades de conhecimento das razões de decidir de seus julgados são relacionadas: (a) à grande quantidade de casos julgados todos os anos pela Corte e (b) a seu modelo deliberativo.

De um lado, há um volume de casos muito grande o que dificulta a tarefa de identificar o posicionamento do STF a respeito. Há situações em que se adotam entendimentos diferentes dentro da mesma Turma ou entre uma Turma e o Plenário. De outro lado, há o modelo deliberativo arraigado na prática do Tribunal da construção de acórdãos mediante a soma de manifestações orais e juntada de votos escritos, cujo teor, em alguns casos, somente é revelado para os demais ministros após a tomada da decisão. Deve ser lembrado que, desde seu surgimento, o STF já adotou diferentes estilos de redação de suas decisões, tendo utilizado modelos mais próximos do per curiam (decisão textualmente única da corte) em suas origens.8

Diante desse cenário, fica mais fácil construir uma hipótese explicativa para a tendência de “sumulização” dos precedentes constitucionais no Brasil, mediante a crescente adoção de teses pelo STF: diante de dificuldades de “localizarem os precedentes”, o Tribunal fixa teses para que suas razões de decidir possam efetivamente guiar as decisões dos demais juízos brasileiros. Há uma aproximação da função desempenhada pelos assentos, Súmulas tradicionais, Súmulas Vinculantes e teses no sentido de facilitar a identificação das posições colegiadas do Tribunal.

Reitera-se: não há uma identidade de regimes jurídicos entre esses teses e Súmulas Vinculantes, mas uma aproximação do papel que desempenham para interpretação e aplicação de precedentes. Entretanto, com a prática da adoção das teses, há uma tendência em se atribuir vinculatividade aos fundamentos determinantes das decisões do STF, com regras para edição e regime jurídico distinto das Súmulas Vinculantes. Nesse ponto, como ressalta Julia Cani, é necessário que o Tribunal enfrente com clareza o debate sobre a transcendência dos motivos determinantes e sua vinculatividade perante os demais órgãos do Poder Judiciário.9

Ocorre que a efetiva adoção de uma cultura de precedentes exige mais para que se tenha os almejados ganhos de isonomia e segurança jurídica de um tal sistema. Embora as teses (assim como as súmulas e os assentos) facilitem a identificação de uma ratio decidendi comum presente em votos individuais, elas não podem ser compreendidas como enunciados prescritivos abstratos e desvinculados das circunstâncias dos casos em julgamento e das razões de decidir efetivamente usadas pelo Tribunal. A dogmática dos precedentes requer que as razões de decidir efetivamente utilizadas (e não enunciados que podem ser mais ou menos abrangentes que as razões de decidir do caso) sejam parâmetros para decisões futuras. Entender o contrário, significa mesclar a divisão funcional entre jurisdição e legislação, justamente como questionou o Min. Ricardo Lewandowski na ADI 2.167.

Isso mostra que a prática de adoção de teses pelo STF pode ser entendida como uma etapa intermediária na implementação da cultura de precedentes no Brasil. Para que se possa avançar, é importante que o Tribunal dê passos decisivos para facilitar a disseminação dos entendimentos colegiados da Corte. Entre esses passos, é necessário que haja a forte valorização dos precedentes em sentido horizontal pela Corte, ou seja, que o próprio STF leve a sério seus precedentes de modo que qualquer distinguishing ou superação sejam claramente identificados e justificados.

É tempo de discutir a almejada reforma do modelo deliberativo do Tribunal (que não depende de reforma legislativas, mas apenas regimental) para que suas posições enquanto órgão colegiado sejam facilmente identificáveis pelo teor da decisão em si e não pela tentativa de formular um enunciado textual que retrate a razão de decidir comum. Possivelmente com algumas mudanças nesse sentido, a fixação de teses não será mais necessária enquanto etapa procedimental separada ao final de um julgamento, uma vez que as próprias razões de decidir efetivamente utilizadas no caso poderão ser identificadas nas decisões do Tribunal – o que trará mais simplicidade procedimental, segurança jurídica e isonomia para o sistema jurídico brasileiro.

Agradeço ao Prof. Roger Stiefelmann Leal e à Profa. Nina Pencak pelas críticas e sugestões a versões anteriores do texto.


1 http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuTese.asp?tese=TCC

2 O Supremo Tribunal de Justiça do Império, entretanto, não proferiu assentos até sua extinção em 1890. Cf. Paulo Macedo Garcia Neto. “O Judiciário no crepúsculo do Império (1871-1889)”, in José Reinaldo de Lima Lopes (org.), O Supremo Tribunal de Justiça do Império 1828-1889, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 105-137, p. 126.

3 Ver, por exemplo, Rcl-AgR 27.939 (j. 14/08/2018).

4 Antônio Castanheira Neves. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. Coimbra: Coimbra, 1983, p. 640, nota 1584.

5 Lenio Luiz Streck, “Súmulas vinculantes em terrae brasilis: necessitamos de uma 'teoria para a elaboração de precedentes'?”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 78 (2009), 284-319, p. 301: “quem transforma a Súmula vinculante em um mal em si são as suas equivocadas compreensão e aplicação. Explico: pensa-se, cada vez mais, que, com a edição de uma súmula, o enunciado se autonomiza da faticidade que lhe deu origem. É como se, na própria common law, a ratio decidendi pudesse ser exclusivamente uma proposição de direito, abstraída da questão de fato. Se isso é crível, então realmente a súmula e qualquer enunciado ou verbete (e como gostamos de verbetes, não?) será um problema. E dos grandes.”

6 Jeremy Waldron, Political Political Theory, Oxford: Harvard University Press, 2016, p. 70.

7 CF.Victor Nunes Leal. “Passado e futuro da Súmula no STF”, Revista de Direito Administrativo 145 (1981), pp. 1-20, p. 14.

8 Cf. Guilherme Klafke, Continuidade e mudanças no atual modelo de acórdãos do STF: a prática, as razões para sua manutenção e caminhos para aperfeiçoamento, Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2019, p. 114.

9 https://www.jota.info/stf/supra/teses-juridicas-em-adi-proposta-para-expansao-do-efeito-vinculante-11062020

Autores

  • Brave

    é doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Visiting Scholar na Universidade de Columbia (EUA); consultor Legislativo do Senado Federal e sócio do Trindade, Camara, Retes, Barbosa, Magalhães, Pinheiro – Advogados Associados. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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