Opinião

Boa-fé objetiva e legitimação do segurador sub-rogado no litígio de ressarcimento

Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    é advogado sócio fundador de Machado Cremoneze Lima e Gotas Advogados Associados mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos especialista em Direito dos Seguros em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca professor de Direito dos Seguros membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) da Ius Civile Salmanticense (Espanha) vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil) membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist) autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

10 de fevereiro de 2021, 9h12

A boa-fé objetiva é um princípio do negócio de seguro que, de tão importante, foi incorporado pela teoria geral dos contratos. Hoje, consta expressamente no Código Civil [1].

Agora, aqui, o que interessa não é a relação segurado-segurador, mas a busca do ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado contra o causador do dano. E, ao se falar em causador de dano, fala-se notadamente no transportador de carga [2].

A inspiração é a mesma: a ideia de que a boa-fé é sempre uma via de mão dupla, nas palavras do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Um pleito de ressarcimento em regresso não é relação contratual em sentido estrito, mas remete muitas vezes a alguma, nutrindo-se de elementos que lhe são próprios. Normalmente quando se fala em boa-fé no contrato de seguro, fala-se do dever que têm o segurado, de prestar informações verídicas, e o segurador, de não criar imbróglios para pagar a indenização. Pouco se fala do exercício do ressarcimento em regresso e de um ponto em especial: a legitimidade ativa do segurador sub-rogado.

O direito do segurador não exsurge do contrato de transporte — que pouco lhe importa, até por não ser parte dele —, mas da sub-rogação que se opera por lei e em vigência da apólice de seguro. Alguns aspectos da infidelidade contratual do transportador, todavia, podem e devem ser aproveitados.

Fala-se, por exemplo, da responsabilidade objetiva do transportador por causa da sua condição de devedor de obrigação de resultado, equiparada à de depositário, que é marcada pelos deveres de guarda, conservação e restituição. Também porque o transportador, protagonista de atividade de risco, submete-se a um sistema jurídico-normativo mais rigoroso, conforme o artigo 927 do Código Civil [3].

De todo modo, ainda que não houvesse em favor do segurador a possibilidade de alegar a responsabilidade objetiva, seu direito poderia ser alinhavado pela regra geral da responsabilidade civil de que trata o artigo 186 do Código Civil: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

Invariavelmente, o dano que causa o transportador autoriza a ideia de concorrência de responsabilidades, objetiva e subjetiva, sendo certa a presença de alguma conduta especialmente inidônea, desenhada pela ideia de falha operacional. Aqui se avulta o espectro legal do segurador sub-rogado no efetivo acionamento do seu direito-dever de regresso contra o transportador.

Normalmente, o contexto factual é muito favorável ao segurador sub-rogado, até por causa da dinâmica da responsabilidade civil. Imputá-la não costuma ser difícil, muito pelo contrário. Já a possibilidade de o transportador se defender bem — insisto, relativamente aos fatos e à imputação de responsabilidade — costuma ser menor e, mesmo, penosa.

Por isso, não sem certa habilidade, advogados de transportadores muito se valem de questões preliminares, dos temas puramente formais ou de estratégias que escanteiam as verdades fenomênicas, os fatos propriamente ditos, e não raro obtêm êxito só a partir disso. Mas é uma estratégia. E, como tal, não se pode dizer que seja indevida ou menos digna.

Entre estratégias e estratégias, fala-se aqui da deslegitimação ativa da seguradora.

Ocorrido o sinistro de transporte, o segurador lhe faz a regulação. Superpondo-se o clausulado ao ato-fato, procede, assim, ao pagamento da indenização de seguro, sub-rogando-se nos direitos e ações do segurado (beneficiário) contra o transportador.

É pela sub-rogação que se exerce o ressarcimento. E é pelo ressarcimento que se garante a higidez do seguro, se protegem os legítimos interesses dos segurados e da sociedade em geral e se obriga o causador do dano a reparar integralmente o que deve.

Sabe-se que a sub-rogação é "típica dos seguros de coisas e seguros financeiros, ou seja, aqueles seguros em que o objetivo é o pagamento de uma indenização proporcional ao dano ou ao prejuízo do segurado. (…) O titular de um bem deve escolher entre reivindicar a reparação do dano diretamente a reparação do dano diretamente ao causador ou optar pelo recebimento da reparação de seu segurador" [4].

Disso ninguém duvida. O que de vez em quando se tem posto em dúvida é a prova da sub-rogação, a comprovação da legitimidade ativa para a causa do segurador. E isso é um erro.

Tradicionalmente, a comprovação se dava por meio do recibo de quitação, também conhecido como recibo de pagamento de indenização de seguro. Um instrumento físico, datado, assinado por representante do beneficiário da indenização (segurado) e, em caso de pessoa jurídica, até mesmo carimbado.

Ocorre que o antigo recibo se encontra em desuso. Faz tempo. Até por praticidade, e para beneficiar os segurados, passaram os seguradores a transferir os valores das indenizações diretamente para a respectivas contas-correntes. Tudo rápido, eficaz, direto, econômico e simplificado; tempos modernos, métodos modernos.

Acabam os seguradores punidos, em vez de elogiados. Seduzidos pela argumentação dos réus, órgãos monocráticos e colegiados do Poder Judiciário têm entendido em certos casos que essas transferências não bastam a comprovar a sub-rogação. Assim enxergando, desqualificam a legitimidade ativa, ferem de morte a pretensão e premiam o formalismo pelo formalismo.

Nessa impunidade geral, o único punido acaba sendo a vítima do dano.

Avoluma-se a sensação de injustiça, e o lesador é anistiado porque não se considera válida e eficaz a tecnologia de informação, praticamente onipresente. É exatamente aí que entra em cena o que se advoga nestas linhas: o fortalecimento da boa-fé objetiva e a compreensão contextual do sub-rogação atualmente.

Perfeitamente possível invocar a boa-fé objetiva para afirmar que nenhum segurador demanda ressarcimento em juízo sem para isso estar legitimado. É impossível para um segurador pleitear ressarcimento do causador do dano se antes não tiver efetuado o devido pagamento a quem cabia recebê-lo.

Posta em dúvida a transferência bancária como meio hábil para comprovar a sub-rogação, acaba-se questionando (e em erro) a idoneidade do mercado segurador e a higidez do negócio de seguro.

Nenhum setor da economia é mais regulado. Regras e atenções especiais, extremamente rigorosas, ortodoxas, inflexíveis, justamente por conta da função social do negócio, da sua natureza estratégico-econômica e da elevada carga de proteção de atividades em geral que nele se encerra.

O negócio de seguro, aliás, não é apenas marcado pela função social; caracteriza-o ainda o múnus público. Evidentemente que toda atividade empresarial, econômica, financeira, possui alguma regulação, com algum nível de interesse público; nenhuma, porém, tanto como a de seguro.

Direta ou indiretamente, seguradores são fiscalizados por segurados, corretores de seguros, acionistas, órgãos públicos, privados ou mistos de regulação, resseguradores, autoridades públicas em geral e, também, as do próprio mercado.

O grau de fiscalização é tamanho que não poucas vozes importantes do setor reclamam de certo exagero e do embotamento da atividade, da inibição injustificada de avanços que a todos poderiam beneficiar.

Pois, ainda que, por hipótese, algum segurador fosse tomado de uma prodigiosa má-fé, ousando pleitear judicialmente direito a ele vedado, seriam tantas e tamanhas as punições que seu desejo seria de imediato afastado — senão por índole, ao menos por cálculo. Pode o segurador que o fizer ser até mesmo descredenciado, depois de pagar multas pesadíssimas.

O fato de a tecnologia atual gerar, sabe-se lá por qual razão, alguma dúvida quanto à efetividade de um pagamento de indenização de seguro, não quer dizer que o pagamento não se fez. A transferência bancária haveria de ser mais do que bastante para comprová-lo. Do contrário, não só a razão, a tecnologia digital, a dinâmica dos fatos e dos negócios são desprezadas, mas a própria substância do direito.

O mercado segurador deveria entabular um estudo e encaminhar aos tribunais do país algum documento oficial atestando a impossibilidade de que um segurador demande em juízo ressarcimento contra causador de dano sem a devida permissão legal.

As decisões que afirmaram a ilegitimidade por suposta deficiência documental-probatória nesses termos foram todas, sem exceção, equivocadas.

Afirma-se isso com profundo respeito e alguma dor. Todo o mundo sabe que o que não está nos autos não está no mundo. Isso não se discute. Surge o problema quando o elemento probatório está nos autos e no mundo, apenas em uma forma que talvez se pensa não ser a adequada, mas nem por isso dotada de menos existência concreta.

A mesma boa-fé que informou o mercado segurador a dispensar o uso do oneroso recibo de indenização, facilitando a vida dos segurados e protegendo a natureza com o desuso de toneladas de papel, há de socorrer os segurados sub-rogados em casos de subsistência de dúvidas maliciosamente plantadas pelos réus.

Talvez nem isso fosse necessário se, quando necessário, os juízes — em nome da boa vontade, irmã mais velha da boa-fé — deferissem requerimentos de ofício, levando segurados a confirmar se receberam tal o qual indenização. Como permiti-lo é prática que se tem tornado de uma raridade incompreensível, o fortalecimento da boa-fé seria a solução.

Em verdade, se a boa-fé fosse mesmo observada na urbanidade que devem as partes manter nos litígios, jamais ser poria em dúvida a sub-rogação dos seguradores; de forma prévia, sabem os réus da indenização paga às vítimas originais, já que a esmagadora maioria dos litígios se vê precedida de intensas reclamações extrajudiciais.

O reconhecimento da boa-fé em diferentes momentos é o melhor meio para se prestigiar um documento que não poderia jamais ser posto em dúvida, uma condição sempre presente.

Note-se que a lei processual civil brasileira [5] fala em interesse e legitimidade para postular em juízo, não tratando da forma supostamente ideal para a comprovação de ambas.

Nasce da sub-rogação o direito do segurador, e não possui uma forma específica de comprovação. Qualquer meio idôneo, portanto, é válido e eficaz. Sendo assim, não é idôneo a transferência bancária, agora ainda mais simplificada pela instituição do PIX?

Desconsiderar a validade e a eficácia da transferência bancária é desconsiderar o direito de regresso e beneficiar intoleravelmente o causador do dano.

O causador do dano é liberado do dever não porque provou inocência ou, se submetido ao regime da presunção legal de responsabilidade, por ter demonstrado a existência de alguma causa legal excludente, e sim porque soube plantar uma falsa dúvida e induziu o juiz a erro, ao desprestígio de um instituto bancário utilizado por milhões de brasileiros todos os dias e que, no caso específico do mercado segurador, foi abraçado para facilitar e melhorar as vidas de segurados e/ou beneficiários.

Ficam os seguradores sobejamente prejudicados por sua proatividade e punidos por sua boa-fé.

O artigo 77, I, do CPC [6] pode e deve ser interpretado e aplicado à luz do que ora se advoga. O direito de defesa é amplo, até porque derivado de um princípio maior, o due process of law, e tem a natureza jurídica de garantia fundamental constitucional. É amplo, mas não tolera nada que não se ajuste ao que se pode chamar de componente de lealdade do processo.

Privilegiando a boa-fé e consciente de que o segurador jamais litiga senão plenamente investido das características previstas no artigo 17 do CPC, o juiz há de punir o réu que busca o falso incidente processual sobre a legitimidade, fazendo-o no modo previsto no rol do artigo 77.

Mudanças significativas da mentalidade e da prática advirão das questões que aqui se puseram, evitando a nada gloriosa primazia da forma sobre a substância, valorizando a modernidade do mundo e respeitando os direitos da sociedade.

O antigo Direito Romano e o Direito Canônico previam e preveem a força condicionante da boa-fé, sua objetividade. A boa-fé fé se presume sempre, a menos que se prove a má (Dino: Commentaria in regulas iuris Pontificii, reg. 82, 5): "Bona fider semper presumatur, nisi mala adesse probetur".

Essa boa-fé salvará o Direito das injustiças do formalismo.

 


[1] "Art. 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

[2] Nota: a atenção deste artigo são os litígios envolvendo o ressarcimento da carteira de seguros de transportes. O segurador indeniza o dono da carga por faltas e/ou avarias ocorridas no curso de um determinado transporte (qualquer que seja o modo). Sub-roga-se e tem o direito-dever de buscar o ressarcimento integral. Seu direito nasce da sub-rogação e seu dever é um ato de lealdade ao mútuo. O transportador – que responde objetivamente pelos danos e prejuízos – tem o dever de reembolsar a indenização de seguro.

[3] "Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

[4] Direito do Seguro, 8ª. ed. – Rio de Janeiro: Funenseg, 2006, p. 58

[5] "Art. 17 – Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade" (CPC).

[6] "Art. 77 – Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade".

Autores

  • é sócio fundador do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas — Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência (Ansp), autor de livros jurídicos, membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e da Associação Internacional de Direito do Seguro (Aida), diretor jurídico do Clube Internacional de Seguro de Transporte (Cist), membro da Ius Civile Salmanticense (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, professor convidado da Escola Nacional de Seguros (ENS) e colunista do Caderno Porto & Mar do jornal A Tribuna (de Santos).

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