Interesse Público

'The walking dead' na Administração Pública — Temporada 2 (Prescrição e STJ)

Autor

4 de fevereiro de 2021, 8h01

Previously in "The walking dead"…

Na última incursão que fiz nesta prestigiada coluna da ConJur, apresentei, em dois "episódios", a primeira temporada de "The walking dead na Administração Pública", uma paródia ao seriado norte-americano que mostra a luta de seres humanos contra zumbis supérstites do apocalipse terrestre.

Spacca
A primeira temporada tratou do dogma da imprescritibilidade do ressarcimento do dano erário no âmbito da jurisprudência dos Tribunais de Contas, que, mesmo depois dos Temas 897, 899 e 666 da repercussão geral, continua refratária à tese da prescrição, prenunciando novas disputas judiciais no STF.

Mas walking deads aparecem também em outros sítios… Eles ressuscitam…

Em recente decisão da Corte Especial do STJ, nos autos do REsp 1.159.598, relatora ministra Maria Thereza, a maioria dos julgadores (vencidos os ministros Napoleão Nunes Maia e Raul Araújo) deixou de declarar a prescrição da ação popular movida, após o quinquênio previsto no artigo 21 da Lei 4.717/65, contra ex-prefeito de Sorocaba (SP), confirmando decisões de primeiro e segundo graus que condenaram o réu ao ressarcimento da quantia de R$ 278,6 mil em razão de gastos com publicidade no ano de 1992.

A fundamentação do acórdão é inusitada. O voto condutor sustenta que o STF, ao apreciar o Tema 897, "não restringiu o meio processual adotado para definir a imprescritibilidade do ressarcimento", sendo, portanto, indiferente tratar-se de ação de ressarcimento, de ação civil pública, de ação popular ou mesmo de ação de improbidade administrativa. Isso porque o artigo 37, §5º, da Constituição tem o escopo de "elevar a um patamar constitucional a proteção da coisa pública, tornando imprescritível o direito da sociedade em reaver o prejuízo que lhe foi causado em razão da prática de ato de improbidade administrativa".

Em outras palavras, mercê de um sobrelevado sentido de proteção da "coisa pública" (= supremacia do interesse público?) [1] a decisão do STJ inoxida da prescrição qualquer ação judicial que cogite do ressarcimento ao erário, independentemente do seu objeto e da sua finalidade, mesmo quando a ação utilizada não se presta a imputar atos de improbidade administrativa aos réus; ressuscita, por vias reflexas, o mantra da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário, garantindo-se a persecução judicial de relevante fim por quaisquer meios.

A decisão do STJ, com as devidas vênias, desconsidera importantes aspectos de direito processual, tais como adequação da via eleita, natureza sancionatória das ações de improbidade administrativa, a legitimidade ativa na ação popular (exclusiva do cidadão), viabilizando discussões infinitas em processos judiciais, que, por escolha do legislador, encontram-se vocacionados a outros fins [2].

"(A) ação de improbidade administrativa tem natureza, contornos e regramento próprios, não se confundindo com aqueles específicos das ações civis públicas em geral (e também das ações populares). O fato de a ação ser civil (em oposição a uma ação penal), ou ser pública, num linguajar leigo (no sentido de proteger o patrimônio público, ou da legitimidade do Ministério Público para propô-la), não faz da ação de improbidade administrativa uma ação civil pública no senso jurídico do termo" [3].

Note-se que a literalidade do Tema 897 do STF pressupõe, para efeito de sacramentar a imprescritibilidade do ressarcimento ao erário, a tipificação da conduta hostilizada como dolosa na Lei 8.429/92, o que somente se pode dar no âmbito de ações específicas de improbidade administrativa e não como causa de pedir remota em ações populares ou civis públicas ordinárias: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa" [4].

Realmente, o conceito jurídico de tipicidade [5] encontra-se indiscutivelmente aderente às ações judiciais que traduzem o jus puniendi estatal a exemplo das ações penais e das ações de improbidade administrativa, mas não ampara ações de conteúdo predominantemente civil (v.g., ação popular), para as quais o STF editou o Tema 666 da repercussão geral, segundo o qual "é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

Nesse sentido, também em recente decisão, o próprio STJ registrou importante precedente fracionário (REsp nº 1.811.825/MG, relator ministro Napoleão Nunes Maia), em que os componentes da 1ª Turma, à unanimidade, afastaram óbices legais, regimentais e sumulares à apreciação do recurso, e declararam a prescrição/decadência [6] de uma ação popular idêntica à de Sorocaba [7], aplicando, contudo, em obséquio da segurança jurídica, a orientação constante dos Temas 897 e 666 da repercussão geral do STF, a ver:

"… A excelsa Suprema Corte, no julgamento do RE 669.069/MG, Rel. Min. Teori Zavascky, DJe 27.4.2016, fixou a tese de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil. Referida diretriz se vincula a condutas não enquadradas como ímprobas, uma vez que, em relação a estas práticas, a imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento de dano ao Erário foi proclamada em outro caso com Repercussão Geral reconhecida (RE 852.475/SP, Relator p/Acórdão Min. EDSON FACHIN, julgado em 8.8.2018, publicação pendente)" (REsp 1811825/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 28/06/2019) [8].

Acrescente-se que a jurisprudência do STJ é unânime em reconhecer a inviabilidade de aplicação retroativa da Lei 8.429/92, imunizando os atos praticados anteriormente à sua vigência da qualificação respectiva (cf., por todos, REsp 1.197.120/MG, 2ª T, relator ministro Herman Benjamin, 14.05.2013, Dje. 22.05.2013). Ora, se a qualificação dos atos como de improbidade administrativa somente se tornou possível com a vigência da Lei 8.429/92 de modo a afastar a prescrição do ressarcimento apenas dos atos tipificados materialmente como lesivos ao erário e dolosos de improbidade administrativa (é o entendimento uniformizado do STF) , não se compreende de que forma a disciplina do §5º do artigo 37 da Constituição possa registrar uma significação ontológica de imprescritibilidade, assentada numa superioridade axiológica de "coisa pública", que se apresenta em desconexão evidente com o objeto, a natureza e a finalidade discutidos em cada tipo de ação.

"…Não é adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo (a) conteúdo material da pretensão a ser exercida o ressarcimento ou (b) pela causa remota que deu origem ao desfalque no erário um ato ilícito em sentido amplo. O que se mostra mais consentâneo com o sistema de direito, inclusive o constitucional, que consagra a prescritibilidade como princípio, é atribuir um sentido estrito aos ilícitos de que trata o §5º do artigo 37 da Constituição Federal, afirmando como tese de repercussão geral a de que a imprescritibilidade a que se refere o mencionado dispositivo diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais" (Voto do ministro Teori Zavascki no RE 669.069/MG, que deu origem ao Tema 666 da repercussão geral do STF).

A prevalecer o entendimento externado pela maioria dos integrantes da Corte Especial do STJ, com o devido respeito, bastará que qualquer cidadão maneje uma ação popular, alegando a existência de ato doloso de improbidade administrativa que cause lesão ao erário, para que se afaste peremptoriamente os efeitos do verbete da repercussão geral do STF (Tema 897); e aí a imprescritiblidade passará a ser a regra e a prescritibilidade, a exceção.

Sigamos o seriado…

 


[1] A noção de “coisa pública”, tal como retratada no acórdão do STJ, apresenta-se bastante similar à costumeira – e nem sempre refletida – invocação do princípio da supremacia do interesse público como razão de decidir questões jurídicas em benefício da Fazenda Pública em juízo ou fora dele. Referido princípio, a despeito das críticas que tem recebido de estudos doutrinários mais recentes (cf., por todos, BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro, Renovar, 2006. p. 81 et seq.), tem origem, entre nós, na doutrina do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que, por sua vez, compreende ser essencial divisar-se o genuíno interesse público (primário) do interesse público secundário (= interesse fazendário). Porém, o mais interessante é registrar que o ilustrado professor, a partir da 26ª edição do seu livro Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 2009, passou a admitir a prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, com fundamento na perspectiva de violação do direito de defesa (artigo 5º, LV da Constituição), relevando-se convencido pelos argumentos lançados pelo professor Emerson Gabardo (UFPR/PUC-PR). Evidentemente, não considera o professor que o reconhecimento da prescrição do ressarcimento ao erário seja algo que abalroe aquilo que ele efetivamente compreende como sendo revelador do interesse público primário.

[2] Na seara eleitoral, há precedente do TSE que aponta essa diversidade de fins entre a ação popular a ação de improbidade administrativa. Destaca-se o seguinte trecho da ementa: “2. O objeto da ação popular é a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, bem como a condenação do responsável pelo ato ao pagamento de perdas e danos (arts. 1º e 11 da Lei nº 4.717/65). Dessa maneira, não se inclui, entre as finalidades da ação popular, a cominação de sanção de suspensão de direitos políticos, por ato de improbidade administrativa. Por conseguinte, condenação a ressarcimento do erário em ação popular não conduz, por si só, à inelegibilidade. 3. A ação popular e a ação por improbidade administrativa são institutos diversos”. […] (Recurso Especial Eleitoral nº 23347, Acórdão de Relator(a) Min. Caputo Bastos, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 22/09/2004).

[3] WALD, Arnold. FONSECA, Rogério Garcia da. A ação de improbidade administrativa. http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2002/arti_arnold_rodrigo.pdf.

[4] A questão discussão processual acerca do cometimento de atos de improbidade administrativa exclusivamente nas ações próprias, encontra-se esclarecida no julgamento dos embargos de declaração oposto e decididos nos autos do Recurso Extraordinário nº 852.475/SP, do qual se originou o Tema 897 do STF, especialmente pelo voto do Ministro Alexandre Moraes.

[5] Nos termos de valiosa doutrina: “Qualquer parcela de jus puniendi estatal pressupõe, na lei, a descrição formal da conduta proibida e a fixação explícita da medida sancionatória, cuja imputação jurídica se perfaz uma vez subsumidos os fatos à hipótese legal. Isso significa que o Estado de Direito abomina a ideia de ausência de previsibilidade no exercício de potestades sancionatórias, porque este vício é sinal seguro de arbitrariedade. Impõe-se, pois, não apenas a legalidade como sinônimo de autorização legal, mas tipicidade legal, no sentido exato de que a competência pública encontre na lei a categorização dos fatos e das sanções passíveis de serem infligidas aos infratores da norma jurídica” (OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade Administrativa: e sua autonomia constitucional, Belo Horizonte: Forum, 2009. p. 204).

[6] De acordo com esse julgado do STJ, para além da orientação do STF, existe um aspecto processual importante nas ações populares relativamente à natureza jurídica do prazo previsto no artigo 21 da Lei 4.717/65 – que seria decadencial quanto à declaração de nulidade do ato administrativo e prescricional quanto ao ressarcimento ao erário. Destaca o conteúdo do julgado ser “verdade que a ação popular encarta pretensão dual (desconstituição do ato e condenação reparatória), porém, trata-se de dualidade dependente do anterior desfazimento de ato tido por ilegal e lesivo”. Bem por isso, “não há lugar para a existência de pretensão de ressarcimento aos cofres públicos, uma vez que essa postulação condenatória depende, como pressuposto fático e lógico, da declaração constitutiva negativa do ato, o que já não mais é alcançável, pois o pedido anulatório decaiu.” (REsp 1811825/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 28/06/2019). No mesmo sentido, ver REsp. 258.122/PR, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ 5.6.2007.

[7] Tratava-se de ação popular ajuizada por cidadãos em desfavor de ex-Prefeita do Município de São Sebastião do Paraíso/MG, Vice-Prefeito, Deputado Federal, Vereador e Empresa, por alegada prática de ato ilegal e lesivo aos cofres públicos, uma vez que teriam sido contratados e executados serviços publicitários que guardariam intuito de promoção pessoal do Chefe do Poder Executivo Municipal. No primeiro grau, houve sentença extintiva da lide por pronúncia de decadência, porém a decisão foi reformada pelo TJMG, sob a compreensão de que o ressarcimento aos cofres públicos não ficou adstrito a qualquer prazo prescricional, independentemente de se tratar de ação baseada na lei de improbidade ou não (artigo 37, §5º da Constituição).

[8] E assim se passa não só porque o artigo 5º, LXXIII da Constituição delimita, sem se referir à improbidade administrativa, o objeto da ação popular ao prescrever que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, como também porque o artigo 11 da Lei 4.717/65 dispõe que a sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado (efeito desconstitutivo ou constitutivo negativo principal), condenará ao pagamento de perdas e danos (efeito condenatório acessório) os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa. Nesse sentido, “a ação popular busca diretamente provimento jurisdicional de cunho constitutivo negativo. A Lei 4.717/1965, no artigo 1º, faz referência à anulação ou declaração de nulidade. Os efeitos do provimento deverão ser fixados em vista do princípio da proporcionalidade. Mas a sentença de procedência do pedido pode apresentar efeito condenatório acessório, impondo à parte passiva o dever de indenizar perdas e danos ou de repor a situação no estado anterior.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 13. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 1195). Além do mais, não é automática a condenação ao ressarcimento dos responsáveis pela prática do ato, pois “é perfeitamente possível que se verifique a ausência de prejuízo a ser indenizado, sendo bastante o desfazimento do ato.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 13. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 1203). Por fim, cabe registrar que “a só invalidação do ato impugnado não acarreta a condenação de todos os que o subscreveram, ou dele participaram com manifestações técnicas ou administrativas, em razão do cargo ou da função que exerciam. Necessário é que tenham agido com dolo ou culpa (rectius = culpa grave depois da edição do artigo 28 da LINDB), pois os que cumpriram ordens superiores, ou atuaram no desempenho regular de suas atribuições funcionais, não ficam sujeitos a indenizações ou reparações pela ato invalidado”. (MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 23. ed., atualizada por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes, São Paulo, 2001. p. 144).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!