Opinião

Alteração da legitimidade ativa nas ações de improbidade à luz da teoria da asserção

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

11 de dezembro de 2021, 7h13

Entre as relevantes alterações advindas na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/2021, a limitação da legitimidade ativa ganhou recente destaque no noticiário jurídico a arguição pelo Ministério Público Federal no Paraná no sentido de que tal novel alteração não teria aplicabilidade nas ações em curso, conforme noticiado pela ConJur [1].

De acordo como a representante do Ministério Público Federal, avocou-se que, "pelo princípio constitucional da segurança jurídica e pela própria aplicação da Teoria da Asserção, a única interpretação viável aos dispositivos nesses casos é a de que, no mínimo, se estabelecerá uma legitimidade ativa concorrente, mantendo-se o ente autor da ação no polo ativo mesmo após o ingresso do Ministério Público".

De imediato, observamos que tal posicionamento vai na contramão da Orientação nº 12/2015, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão  Combate à Corrupção  do Ministério Público Federal, a qual, inclusive, orienta acerca "da Manifestação de Interesse do MP nas AIAs da Fazenda Pública".

Todavia, a invocação da teoria da asserção para tal situação nos parece equivocada.

Em primeiro plano, é necessário ter em mente que, a teor dos julgados do Superior Tribunal de Justiça invocados pelo MPF, tem-se de fácil compreensão que teoria da asserção reside na compreensão de que "a presença das condições da ação, entre elas a legitimidade ativa, deve ser apreciada à luz da narrativa contida na petição inicial" [2], o que implica dizer que tal análise de faz em caráter perfunctório e de forma abstrata no campo das possibilidades, a qual não se confunde com a análise do mérito.

Ou seja, trata-se de uma questão voltada ao juízo de admissibilidade da ação com base nas questões expostas na exordial, resultando na estabilização da demanda, de sorte que, uma vez recebida, a petição inicial não poderá será indeferida (CPC, artigos. 330 e 485, inciso I), posto que já superada tal fase, o que, todavia, não impede o reconhecimento da perda superveniente das “condições da ação”, de modo a resultar na extinção do feito sem resolução do mérito (CPC, artigo 485, incisos. IV e VI).

Esclarecido tal aspecto, é igualmente relevante compreender que a alteração promovida pela Lei nº 14.230/2021 acerca da legitimidade ativa para a propositura das ações de improbidade administrativa tem natureza heterotópica, posto que também implica em atribuir exclusivamente ao Ministério Público o poder-dever de tutela jurídica à orobidade administrativa, o qual consiste no bem jurídico abrigado pela Lei de Improbidade Administrativa.

Com isso, além de perderem tal capacidade postulatória, aqueles anteriormente legitimados também passaram a carecer de interesse jurídico na reparação da probidade administrativa, razão pela qual estes não poderão prosseguir com ações já em curso, aplicando à espécie o fenômeno processual da perda superveniente do interesse de agir [3], do modo a ensejar a necessidade de extinção de tais feitos sem resolução do mérito.

Outrossim, privilegiando o princípio da primazia do mérito (CPC, artigos 4º e 317), o artigo 3º, §2º, da Lei nº 14.230/2021 propôs uma sábia solução: a possibilidade de o Ministério Público assumir o polo ativo de tais demandas caso considere da pertinência destas e, em caso contrário, estas serão extintas.

Note-se que a alteração legislativa em debate resultou em um justo e necessário filtro extemporâneo de prosseguimento das ações de improbidade administrativa em curso, posto que seria um desserviço admitir o prosseguimento de ações e recursos avaliados como infundados.

Naturalmente que, a princípio, a análise pelo Ministério Público acerca da viabilidade das ações em curso também se faria em análise perfunctória, inclusive quanto à existência ou não de justa causa para o seu prosseguimento, o que não obsta uma análise mais aprofundada em razão das provas já contidas nos autos.

Não podemos perder de vista que a motivação de tal alteração legislativa decorreu de excessos e abusos no manejo da ação de improbidade administrativa, inclusive para fins de perseguição política, o que se desdobrou em recursos manifestadamente infundados.

Segundo levantamento divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2015 [4], verificou-se que, relativamente aos processos analisados: 1) não houve a instauração prévia de inquérito civil em 32,06% destes; 2) 74,02% foram iniciados pelo Ministério Público; 3) 18% das ações foram rejeitadas liminarmente; e 4) 45% dos processos submetidos à segunda instância resultaram na improcedência total dos pedidos.

Vale destacar mais que a possibilidade de alteração subjetiva do polo ativo em ações que versam de interesse público não é medida estranha ao nosso sistema processual, a exemplo do que sucede em relação às ações civis públicas (Lei 7.347/85, artigo 5º, §3º) e às ações populares (Lei nº 4.717/68, artigo 9º). Inclusive, tal possibilidade já era admissível na redação anterior da LIA, a qual admitia o ingresso extemporâneo de outros legitimados no polo ativo [5].

Apesar de a Lei nº 14.230/2021 não falar expressamente quanto à exclusão daqueles anteriormente legitimados nas ações em cursos, trata-se de conclusão lógica que se extrai a partir da própria redação do artigo 3º, §2º, da Lei nº 14.230/2021, bem como da consequente perda superveniente do interesse material na tutela da probidade administrativa, de modo que descabe a hipótese de "legitimidade concorrente".

Por fim, porém não menos importante, não há o que se cogitar em risco-ofensa à segurança jurídica processual, e tampouco ao interesse público envolvido, posto que, uma vez vislumbrada a pertinência pontual das ações em curso, o Ministério Público tem o missional poder-dever de encampar a titularidade de tais ações, preservando-se em tais situações os atos processuais já praticados, tudo em absoluta consonância com artigo 14 do CPC (teoria do isolamento dos atos processuais ou princípio "tempo rege o ato").

 


[2] AgInt no AgInt no AREsp 1302429/RJ, relator ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 27/08/2020.

[3] Vale destacar que tais entes assumem presumidamente a condição de Assistentes (LIA, artigo 17, §14), e preservação a legitimidade para requerer a liquidação e cumprimento da sentença na hipótese de dano ao erário e/ou perda ou reversão de bens e valores ilicitamente adquiridos (LIA, artigo18, caput e §1º).

[4] Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015.

[5] LIA, artigo 17, §3º  redação primitiva: "No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o disposto no §3º do artigo 6º da Lei no 4.717, de 29 de junho de 1965".

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