Ambiente Jurídico

Reflexos da Súmula 652 do STJ na defesa do patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

11 de dezembro de 2021, 8h00

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, especializada em Direito Público, aprovou no último dia 2 dois novos enunciados sumulares.

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Como se sabe, as súmulas (do latim summa = síntese) são o resumo dos entendimentos consolidados nos julgamentos de um tribunal e servem para a orientação da comunidade jurídica a respeito da jurisprudência do órgão colegiado.

É de se destacar que as súmulas do Superior Tribunal de Justiça — guardião do ordenamento jurídico federal — são dotadas de especial relevância para a uniformização da jurisprudência nacional, servindo de relevante norte para a esperada cultura de precedentes em nosso país.

Na seara do Direito Ambiental foi editada a Súmula 652, cujo teor é o seguinte: "A responsabilidade da administração por dano ao meio ambiente decorrente de sua omissão no dever de fiscalização é de caráter solidário, mas de execução subsidiária".

A expressão "dano ao meio ambiente" não se refere aos danos causados tão somente aos bens naturais, mas, sim, a todas as dimensões do meio ambiente globalmente considerado, incluindo também as dimensões urbanística, laboral e cultural, como já reconhecido pelo STF [1] em consonância com a melhor doutrina sobre o tema.

Quanto ao âmbito do meio ambiente cultural, já tivemos a oportunidade de asseverar que o "dano ao patrimônio cultural pode ser conceituado como toda lesão causada por atividade positiva ou negativa, culposa ou não, que implique, direta ou indiretamente, em perda, privação, diminuição ou detrimento significativo, com repercussão negativa aos atributos e funções de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro" [2].

Os danos ao patrimônio cultural são, infelizmente, cotidianos e se revelam das mais variadas formas. Na maioria das vezes eles decorrem do uso nocivo da propriedade e de condutas (comissivas ou omissivas, dolosas ou culposas) do poder público e de particulares.

A destruição, deterioração, inutilização de prédios e documentos históricos; a descaracterização e o abandono de edificações tombadas; a demolição às pressas e às ocultas de bens inventariados ou em processo de tombamento; a pichação de sítios arqueológicos rupestres; a extração e o comércio clandestinos de fósseis e bens de valor arqueológico; a subtração e o comércio descontrolado de imagens sacras coloniais; a explosão de grutas que guardam vestígios arqueológicos e paleontológicos para exploração de recursos minerais; a pichação de monumentos urbanos; as construções em frontal desrespeito às normas de ordenamento urbano; a poluição visual em cidades históricas e turísticas; o descaso com bibliotecas, museus, teatros, cinemas e demais espaços destinados às manifestações culturais; a arbitrariedade lesiva a formas de fazer e viver tradicionais; e a privação da fruição de bens culturais em decorrência de subtração ou outra forma de privação do direito de acesso ao patrimônio cultural são apenas alguns exemplos da enorme e variada gama de ações lesivas ao patrimônio cultural brasileiro, que devem ser objeto de especial atenção dos operadores do Direito, a quem toca lançar mão dos meios preventivos e reparadores existentes no ordenamento jurídico vigente.

Em termos de responsabilidade por danos a direitos metaindividuais, entre os quais está o direito ao patrimônio cultural, aplica-se a regra da solidariedade pela reparação com amparo no artigo 942 do Código Civil [3], uma vez que a lesão a bens culturais é considerada fato único e indivisível, não sendo possível individualizar a contribuição de cada responsável para o mesmo dano.

Dessa forma, a reparação (cujo direito toca a toda a coletividade) será exigível de todos ou de qualquer um dos causadores do dano, podendo inclusive ser oposta ao agente degradador que se afigure como mais solvável e que, querendo, poderá exercer direito de regresso contra os demais responsáveis.

Essa possibilidade de responsabilização solidária em sede de danos causados a bens que integram o patrimônio cultural abre amplas perspectivas no que tange à viabilidade do chamamento do poder público, que tem o expresso dever constitucional de proteger tal bem jurídico (artigo 23, III, IV e VI, 30, IX e 216, §1º), ao polo passivo de ações que objetivam a reparação de lesões causadas em decorrência de omissão na vigilância sobre tais coisas.

Com efeito, a proteção do patrimônio cultural não está entregue à livre disposição da vontade da Administração Pública. Pelo contrário. A ela toca o dever indeclinável de protegê-lo, fazendo uso de todo o instrumental que o ordenamento jurídico lhe confere para tanto, sob pena de responsabilização.

Incide sobre o poder público, no que tange ao patrimônio cultural, o princípio da intervenção estatal obrigatória, de sorte que não se reconhece discricionariedade administrativa quanto ao cumprimento do dever — estabelecido constitucionalmente — relacionado à tomada de medidas que propiciem a preservação de nossos bens culturais.

Consoante já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, responde pelo dano ambiental a Administração (e o administrador) que, ao se comportar como Pôncio Pilatos, lava as mãos atua apenas cosmeticamente, para salvar aparências, diante de degradação em via de acontecer, que está acontecendo ou que já aconteceu [4].

Assim, no caso de ruína de um casarão colonial de reconhecido valor histórico em decorrência do abandono deliberado por parte de seu proprietário e da omissão do poder público municipal no que tange ao exercício do poder de polícia sobre o patrimônio cultural, por exemplo, tanto o proprietário quanto a municipalidade serão civilmente responsáveis, de maneira objetiva e solidária, pela restauração do imóvel.

Em casos tais, tanto o dono quanto o poder público se enquadram no conceito jurídico de poluidor (artigo 3º, IV, da Lei 6.938/81 [5]), sendo de se destacar que, para o fim de apuração do nexo de causalidade em tal matéria, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem [6].

A nova súmula do STJ consolida o entendimento de que é objetiva, solidária e ilimitada a responsabilidade ambiental do Estado em caso de omissão do dever-poder de zelar pelo patrimônio cultural.

A inovação consiste na fixação do entendimento segundo o qual, quando da execução de eventual condenação, a responsabilidade do poder público é de natureza subsidiária.

Dessa sorte, a responsabilidade solidária e de execução subsidiária atribuída ao poder público significa que o Estado integra o título executivo sob a condição de, como devedor-reserva, ser chamado quando o degradador original (devedor principal) não quitar a dívida, "seja por total ou parcial exaurimento patrimonial ou insolvência, seja por impossibilidade ou incapacidade, por qualquer razão, inclusive técnica, de cumprimento da prestação judicialmente imposta, assegurado, sempre, o direito de regresso (artigo 934 do Código Civil), com a desconsideração da personalidade jurídica, conforme preceitua o artigo 50 do Código Civil" [7].

A subsidiariedade, segundo entendimentos do STJ, deixa de fazer sentido jurídico ou prático se o devedor principal não mais existir ou não for facilmente identificável ou encontrável.

O objetivo da nova súmula é evitar que o Estado responda, na linha de frente, pela degradação causada por terceiro e que só a este beneficia ou aproveita, pois "aos cofres públicos não se impinge a função de garante ou de segurador universal dos poluidores".

Destarte, nosso Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula 652, consolidou o entendimento — a fim de preservar a própria sociedade, representada pelo Estado — de que a reparação de danos ao patrimônio cultural é obrigação primária do poluidor.

O poder público omisso, conquanto solidariamente responsável, responde subsidiariamente, podendo ser executado quando o degradador direto não cumprir a obrigação, ou não puder por ela responder.


[1] ADI 3.540 – MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno.

[2] Introdução do Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i editora. 2021. p. 229.

[3] "Artigo 942 — Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação."

[4] REsp nº 1.071.741 – SP (2008/0146043-5).

[5] "Artigo 3º  — Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental."

[6] STJ – REsp 650.728/SC.

[7] REsp 1.071.741/SP, 2ª Turma, Min. Herman Benjamin, DJe 16/12/2010.

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