Limite Penal

Lei de Drogas: laudos de constatação podem prender sem amparo científico

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10 de dezembro de 2021, 8h00

"Pode-se de fato aplicar uma pena adiada, não se pode revogar a que foi aplicada." (Sêneca)

Spacca
Quando Paulino Gregório dos Santos saiu de casa para buscar o filho no aeroporto no dia 3 de agosto de 2017, ele não imaginava que retornaria para casa apenas 21 dias depois, oito quilos mais magro, e com a amarga experiência de ter ficado "preso em um lugar com capacidade para 25 pessoas e que estava com 98" [1]. O motivo de sua prisão foi o resultado positivo de um teste rápido usado pela polícia para "detectar" cocaína. O laudo pericial definitivo, elaborado pelo instituto de perícia e emitido três semanas após a prisão de Paulino, descartou a presença de cocaína na substância suspeita. A substância seria, na verdade, glifosato — simplesmente o herbicida mais usado em todo o mundo [2].

Embora seja intuitivo pensar que houve um erro jurídico por parte de algum dos atores envolvidos na prisão, o fato é que todos eles agiram conforme o previsto na legislação vigente. Com efeito, a Lei de Drogas determina a prisão cautelar de pessoa que traga consigo substância suspeita e cujo teste preliminar de constatação forneça resultado "positivo".

A proibição de drogas no país remonta das Ordenações Filipinas, e ao longo do tempo foram editadas várias outras normas acerca do tema (Decretos Nº 847/1890, 4.294/1921, 14.969/1921, 20.930/1932, 780/1936). No Código Penal de 1940, a matéria foi disciplinada no artigo 281, posteriormente revogado pela Lei 6.368/1976. Atualmente, encontra-se em vigor a Lei 11.343/2006, que revogou os dispositivos anteriores. A evolução da Lei brasileira foi motivada por diversos movimentos internacionais. Segundo a UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), o início do século 20 é considerado o marco do controle internacional sobre narcóticos e substâncias psicotrópicas, o que levou as Nações Unidas a organizar convenções sobre drogas que servem como referência legal para todos os países signatários. De acordo com a Lei 11.343/2006, o auto de lavratura da prisão em flagrante é condicionado ao resultado positivo em um "laudo de constatação da natureza e quantidade da droga" (Artigo 50, § 1º). Tal resultado deve ser confirmado por um laudo definitivo (Artigo 50, § 3º).

A avaliação jurídica sobre a legalidade da prisão de Paulino pode render longas discussões, mas para a maioria das pessoas é certamente incontroverso que se tratou de uma prisão injusta. Não se pode perder de vista, entretanto, que a prisão em flagrante por posse de substâncias suspeitas tem como elemento central uma análise química, e isso torna imprescindível uma abordagem científica da seguinte questão: como interpretar o resultado de um teste preliminar? Antes de tratarmos dessa questão, vejamos algumas características dos testes preliminares usados para "identificar" substâncias ilícitas.

O teste preliminar consiste em uma análise extremamente simples e, por isso, limitada. Os tipos mais usados por policiais e peritos em todo o mundo são os testes colorimétricos — reagentes químicos são adicionados a uma amostra suspeita e uma mudança de cor específica sugere a possível presença de substância proscrita. Para cada classe de substância proscrita existem um ou mais testes. Quando há suspeita de se tratar de cocaína, por exemplo, usa-se o teste de Scott, no qual um líquido de cor rosa torna-se azul na presença de cocaína (e de várias outras substâncias lícitas). Este tipo de exame não é capaz de revelar a estrutura química de uma molécula; a mudança de cor sinaliza apenas a presença de estruturas moleculares menores, chamadas de grupos funcionais, que podem estar presentes em diferentes substâncias – proscritas ou não.

Testes preliminares produzem resultados "falso positivo" e "falso negativo". São erros comuns em testes dessa natureza. O falso positivo ocorre quando se obtém um resultado positivo indicando a presença de uma droga de abuso que não está presente na amostra, enquanto o falso negativo ocorre quando se obtém um resultado negativo mas a substância investigada está presente na amostra. Várias situações podem produzir falsos positivos e falsos negativos: as propriedades químicas da substância suspeita, a temperatura em que se realiza o exame, a quantidade de amostra utilizada, a presença de substâncias que causam interferência nas reações químicas envolvidas no teste etc.

Testes preliminares estão sujeitos a interferências de substâncias contaminantes e aditivos. É bastante comum que drogas ilícitas contenham substâncias contaminantes (devido a métodos de fabricação improvisados) ou aditivos (acrescentados intencionalmente para aumentar o volume, modificar propriedades ou a própria coloração da droga). Tais substâncias podem causar interferências nos exames preliminares, levando a falsos positivos ou falsos negativos. Não é possível saber, a priori, se um material suspeito contém aditivos ou contaminantes.

Neste ponto, é importante frisar que o resultado de um teste preliminar, seja ele "positivo" ou "negativo", é meramente analítico. Como vimos, estamos falando de uma análise química extremamente simples e sujeita à ocorrência de erros. É necessário, portanto, que o resultado analítico seja interpretado, levando-se em consideração as propriedades do teste e as informações relevantes disponíveis sobre o caso concreto. Enquanto o resultado analítico pode ser obtido por qualquer pessoa treinada para a etapa de análise, a etapa de interpretação requer conhecimento técnico-científico adequado.

Assim como ocorre em outros tipos de testes rápidos, como testes de HIV, gravidez e Covid-19, a interpretação do resultado de um teste preliminar de drogas requer o conhecimento de três informações e a capacidade de combiná-las corretamente.

As duas primeiras informações dizem respeito ao teste: a sensibilidade e a especificidade. A sensibilidade de um teste é a probabilidade de ele fornecer um resultado positivo quando a característica analítica de interesse está presente (no nosso caso, a substância ilícita). A especificidade é a probabilidade de o teste fornecer um resultado negativo quando a característica de interesse está ausente. Para o teste de Scott, por exemplo, encontramos na literatura científica os valores de 68% e 75%, respectivamente [3]. Note-se que tais probabilidades se referem à probabilidade de se obter resultados corretos quando testamos amostras cuja natureza já é conhecida, o que claramente não é o caso nas situações onde os testes são de fato utilizados. Em outras palavras, a sensibilidade e a especificidade são informações sobre o teste, e não sobre as amostras.

A terceira informação está relacionada à nossa crença inicial quanto à natureza da amostra. A avaliação quanto à probabilidade de uma amostra suspeita conter substância ilícita após observarmos um resultado positivo depende, fundamentalmente, da nossa avaliação para essa mesma probabilidade antes de realizarmos o teste; ou seja, o valor da nossa probabilidade a posteriori (após o teste) depende do valor da probabilidade a priori (antes do teste).

Dois exemplos ajudam a ilustrar a importância das probabilidades a priori.

Situação 1. Em uma abordagem na estrada, a polícia encontra 500 tabletes contendo substância sólida na forma de pó branco escondidos em compartimento oculto de um caminhão. Como há suspeita de se tratar de cocaína, é usado o teste de Scott. Obtém-se então um resultado positivo. A polícia consulta um banco de dados de apreensões anteriores de "tabletes contendo substância sólida na forma de pó branco", e verifica que em 90% dos casos o laudo pericial definitivo confirmou se tratar de cocaína. Adotando-se essa proporção como a probabilidade a priori de o material apreendido se tratar de cocaína, e considerando os valores de sensibilidade (68%) e especificidade (75%) do teste, a aplicação das regras matemáticas adequadas nos fornece, para a probabilidade a posteriori, o valor de 96%.

Situação 2. Após notar o nervosismo de uma passageira na fila do raio X para um voo internacional, a polícia decide revistar sua bagagem e encontra 50 frascos de xampu em uma mala. O teste de Scott é aplicado em uma amostra retirada de um dos frascos e fornece um resultado positivo. A polícia novamente consulta seu banco de dados e verifica que em 25% das apreensões anteriores de "frascos de xampu" houve confirmação da presença de cocaína no laudo pericial definitivo. Adotando essa proporção como probabilidade a priori de o material analisado conter cocaína e procedendo como na Situação 1, obtém-se para a probabilidade a posteriori o valor de 48%. Note-se que, quando consideramos apenas duas hipóteses (contém/não contém cocaína), probabilidades em torno de 50% caracterizam um estado de máxima incerteza.

Como se vê, a correta interpretação do resultado de um teste preliminar está longe de ser trivial. A abordagem científica dessa questão leva a uma conclusão inevitável: o laudo de constatação previsto na Lei de Drogas nada constata. O resultado positivo apenas aumenta a probabilidade de a substância suspeita conter droga ilícita, e em hipótese alguma seria possível alcançar uma probabilidade a posteriori de 100% apenas com esse teste. Raciocínio análogo aplica-se à interpretação do resultado negativo.

Ao estabelecer que a prisão em flagrante por porte de drogas ilícitas pode se fundamentar apenas no resultado analítico do teste preliminar, a legislação, na prática, transfere para o destinatário do laudo de constatação a tarefa de interpretar o comportamento de uma reação química e seu aspecto visual. Ao mesmo tempo, permite a prisão cautelar de pessoas inocentes até que os sobrecarregados institutos de perícia constatem a natureza do material e emitam o laudo definitivo.

Há quem argumente que os falsos positivos são raros, mas não dispomos de estatísticas sobre a frequência com que eles ocorrem no dia a dia policial e qualquer afirmação nesse sentido seria mera conjectura. Nos Estados Unidos, por exemplo, centenas de pessoas já foram presas por causa de testes preliminares que apresentaram falsos positivos diante de substâncias das mais diversas. No Brasil, o caso mais famoso de prisão envolvendo um falso positivo é, provavelmente, o de Daniele Toledo do Prado, acusada de matar a própria filha colocando cocaína em sua mamadeira. Ela foi brutalmente torturada pelas companheiras de cela nos 37 dias em que ficou presa aguardando o laudo definitivo. Outros casos menos famosos também ganharam a imprensa: Wellington e Patrícia ficaram presos por 69 dias ao transportarem cera automotiva; Paulino Gregório dos Santos ficou preso por 21 dias ao transportar o herbicida glifosato; e Patrícia de Barros Silva foi presa ao tentar viajar com frascos de xampu. Mesmo em situações onde não ocorre prisão em flagrante, falsos positivos podem levar ao desperdício de tempo e de recursos tanto da pessoa considerada suspeita, como das instituições do sistema de justiça.

Como se não bastassem os problemas de caráter técnico-científicos e terminológicos da Lei de Drogas (v. artigo 50, 1º), a jurisprudência vem se consolidando ao longo dos anos no sentido de dispensar a elaboração do laudo definitivo em "situações excepcionais". O próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse sentido em sua Jurisprudência em Teses. A edição nº 111, de título Provas no Processo Penal-II, dispõe o seguinte em suas teses 10 e 11:

"10) O laudo toxicológico definitivo é imprescindível para a configuração do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sob pena de se ter por incerta a materialidade do delito e, por conseguinte, ensejar a absolvição do acusado.
11) É possível, em situações excepcionais, a comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas pelo laudo de constatação provisório, desde que esteja dotado de certeza idêntica à do laudo definitivo e que tenha sido elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes".

Enquanto a tese 10 define como regra a imprescindibilidade do laudo definitivo, a tese 11 estabelece uma exceção condicionada a situações excepcionais nas quais [1] o laudo de constatação provisório "esteja dotado de certeza idêntica" à do laudo definitivo e [2] o procedimento e as conclusões de um e outro sejam equivalentes. A condição [1] provavelmente se refere a uma comparação entre incertezas, uma vez que certeza implica ausência absoluta de incertezas — um estado de conhecimento impossível de ser alcançado por meio da aplicação do método científico. Independente deste aspecto terminológico, o atendimento da condição [1] depende crucialmente da equivalência de procedimentos prevista na condição [2], algo igualmente impossível diante dos protocolos de exame adotados em todo o mundo atualmente [4].

Trocando em miúdos, se avaliada com o devido rigor científico, a excepcionalidade prevista na tese 11 não é atingível. Afastado o rigor científico, entretanto, nos vemos diante de uma jurisprudência que aumenta o peso do laudo de constatação no sistema jurídico brasileiro, enquanto em outras partes do mundo já se caminha no sentido de reduzir seu peso ou até de rejeitá-lo como prova [5]. Não é demais lembrar que podemos "avançar" para situações ainda mais questionáveis, como a que poderia se estabelecer caso fosse aprovado o PL 2339/2019.

Como já publicado neste site em 2019, "[…] em sua grande maioria, os presos por drogas no Brasil, estivessem em um país europeu, livrar-se-iam soltos, no máximo perdendo a droga com eles encontrada e respondendo a processos que não teriam como consequência o encarceramento em penitenciária". Se a Lei de Drogas de 2006 contribuiu para a explosão da população carcerária no país, é seguro afirmar que os laudos de constatação que nada constatam contribuíram com um número significativo de encarcerados inocentes. Para essas pessoas, é urgente que se revejam entendimentos jurídicos e a legislação pertinente ao tema. Resta saber quando os legisladores e atores do sistema de justiça serão tomados pelo mesmo sentido de urgência.

P.S.: O leitor interessado em testar outros valores de sensibilidade, especificidade e probabilidade a priori para os exemplos usados no texto pode usar esta ferramenta gráfica.


[2] Benbrook, C.M. Trends in glyphosate herbicide use in the United States and globally. Environ Sci Eur 28, 3, 2016.

[3] Maskell, PD, Jackson, G. Presumptive drug testing—The importance of considering prior probabilities. WIREs Forensic Sci. 2020; 2:e1371. Ver Seção 1.6.

[4] Scientific Working Group For The Analysis Of Seized Drugs (SWGDRUG) Recommendations, Versão 8.0, 2019. Ver seção IIIB.2, em especial os itens IIIB.3.1 e IIIB.3.2, observando que o teste preliminar colorimétrico é um teste de Categoria C.

[5] Ver, por exemplo, esta decisão no caso People v. Chacon, proferida em 2018 pela Superior Court of California, nos Estados Unidos.

Autores

  • é perito criminal federal.

  • é professora do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP. É doutora em Ciências, formada em Direito e ex-presidente da SBCF.

  • é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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