Tribunal do Júri

Outra abordagem sobre a Lei Mariana Ferrer: aspectos práticos no júri

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Mayara Tachy

    é defensora pública do Distrito Federal titular do Tribunal do Júri mestranda em Direito pela UnB pós-graduada em Direito Público e professora de Processo Penal e Direito Penal.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

4 de dezembro de 2021, 8h00

Na coluna da semana passada  "Reflexos no júri da Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021)" fizemos diversas considerações sobre a novel legislação, principalmente demonstrando os empecilhos para sua efetividade.

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Na coluna desta semana, enfrentaremos mais alguns aspectos práticos. Para isso, faz-se necessário lembrar qual a intenção do legislador na criação da lei. E isso fica claro na própria proposta, que visa a impedir que mulheres vítimas de violência sexual sejam expostas e tenham suas integridades psicológicas violadas com a chancela do ato oficial da audiência.

A vontade da lei, todavia, foi ampliada pelo texto legal, que não restringiu sua aplicabilidade apenas para hipóteses de violência sexual, aplicando-se a toda e qualquer instrução criminal.

O problema surge porque a lei, ao buscar essa proteção em todos os procedimentos, traz uma redação que pode (frisamos pode, eis que os "bem-intencionados" são capazes de qualquer coisa para inverter a ordem do sistema acusatório democrático) viabilizar a ingerência da atuação das partes de maneira indevida, desnaturando o efetivo contraditório.

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Rememoramos a criação do artigo 474-A com a seguinte redação: "Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas".

Primeiro ponto. No caput do dispositivo em alusão aponta que "todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima". Como dito, o tratamento com respeito a dignidade está em todas as normativas deontológicas das carreiras jurídicas, inclusive da própria magistratura. Entretanto, tal ponto resta sedimentado pela novel redação fazendo menção ao juiz presidente como controlador desse ato.

Aliás, esta já é a redação do artigo 212 do CPP, que determina que "as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida". No artigo 497 do mesmo código, ainda, atribui ao juiz presidente as funções de "regular a polícia das sessões e prender os desobedientes" e "dirigir os debates, intervindo em caso de abuso, excesso de linguagem ou mediante requerimento de uma das partes".

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Também relembremos que: "1) O artigo 1º do Código de Ética da Magistratura determina que o exercício da magistratura seja norteada pelos princípios da 'independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro'; 2) o artigo 43 da Lei Orgânica do Ministério Público exige que os promotores mantenham conduta pública e particular ilibada, bem como que tratem as partes, testemunhas, funcionários e auxiliares da Justiça com urbanidade; 3) o Código de Ética e Disciplina da OAB assinala que os membros devem observar 'nas suas relações com os colegas de profissão, agentes políticos, autoridades, servidores públicos e terceiros em geral, o dever de urbanidade, tratando a todos com respeito e consideração'. O Código ainda prevê que o advogado tem de atuar com decoro, lealdade, dignidade, boa-fé, defendendo os direitos humanos e as garantias fundamentais. Diversas leis complementares que regulamentam a Defensoria Pública nos estados determinam como dever institucional 'respeitar as partes e tratá-las com urbanidade'" [1].

Em suma, a lei, nesse ponto, em nada inova no ordenamento jurídico.

Segundo ponto. Cabe ao juiz presidente garantir o cumprimento da expressão normativa vedando "a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos". Dessa forma, não se poderá, em tese, maldizer ou expor a vida pregressa da vítima, quando isso não estiver diretamente correlacionado aos fatos objetos do julgamento. Isto é, se tiver conexão com os fatos objetos do julgamento ou com hipóteses defensivas, não será possível fazer qualquer controle. Como se trata de uma restrição à atuação defensiva, a interpretação legal deve ser restritiva (jamais ampliativa).

Pode surgir a dúvida: quando a vida pregressa da vítima ou da testemunha pode estar ligada aos fatos sob julgamento? Quando a credibilidade da versão apresentada por esta ou por aquela for fundamental para definir a dinâmica dos fatos. E essa credibilidade está intimamente ligada à sua honra objetiva e à forma como esta é vista na sociedade. Os antecedentes do acusado são recorrentemente utilizados, por exemplo, para demonstrar um perfil violento ou mesmo para colocá-lo na posição do outro, do inimigo. Sejamos, portanto, coerentes.

Terceiro ponto. É de se notar que a inclusão do artigo 474-A, CPP, está endereçado na Seção XI referente à instrução em plenário. Assim, perceba-se que não estamos falando em qualquer vedação de manifestação, eis que os debates ainda não se iniciaram (caso houvesse intenção do legislador em restringir os debates, dever-se-ia alterar o artigo 478 do CPP, o que não é o caso).

Estamos falando de instrução probatória. Nesse diapasão, a acusação já delimitou o objeto de apuração dos fatos — a imputação — vinculando, inclusive, a prestação jurisdicional, conforme impõe o princípio acusatório. Ainda que teoricamente não se torna necessária à acusação (e estaria vedado também ao juiz presidente) ir além daquilo que já foi delimitado como "objeto do processo", isso não se adequa à defesa. Pelo contrário, o princípio constitucional da plenitude de defesa (CF, artigo 5º., XXXVIII, "a") não só autoriza como exige que o acusado seja efetivamente defendido. E isso inclui a participação na produção probatória, levantando informações que ainda não estavam presentes no caso.

Quarto ponto. Quem efetivamente atua no Tribunal do Júri conhece os percalços das questões que envolvem os personagens e a ligação direta entre acusado e vítima. Isso resvala, em muitos dos casos, em pontos atinentes à motivação do crime. Um dispositivo legal que impeça ou limite que as partes utilizem as informações, elementos ou documentos sobre aspectos pessoais de testemunhas e ofendido poderá afetar o direito à prova e, consequentemente, a atuação de comprovação dos aspectos objetivos e subjetivos sobre o mote fático. Como já exemplificamos anteriormente, discussões sobre qualificadoras subjetivas, ou sobre o homicídio privilegiado ou mesmo pedidos de absolvição por conta de uma conduta que partiu da vítima, fazem parte da discussão do júri. Nesses casos, independentemente de já ter havido menção às causas ou não, a restrição às partes, e em especial à defesa, caracteriza-se como ofensiva à garantia constitucional e, portanto, geradora de nulidade absoluta. O que já se aproxima do viés inconstitucional da norma alterada.

Quinto ponto. Pelo aspecto do Tribunal do Júri, mais um fato precisa ser destacado. Não obstante mereça encômios a intenção de proteção das mulheres vítimas de abusos sexuais, a redação deixa à mostra algo que há muito sustentamos: a necessidade de que os julgamentos pelo júri sejam alicerçados em provas produzidas perante os jurados — "A humanização e a imediatividade da prova no júri" — e que tenham relevância direta ao fato.

Isso significa dizer que elementos extrajurídicos e que não se adequem para elucidar o crime, como informações que sirvam exclusivamente para ofender a dignidade de vítimas e testemunhas, não deveriam ser utilizados em um Estado de Direito que preza pelo julgamento do fato e não, apenas, dos personagens envolvidos na questão fática. No entanto, assim como não devem ser admitidas tais informações (eis que não importam para o esclarecimento do fato que está sendo julgado), outras tantas se enquadram no mesmo gênero, como, a utilização de informações que sirvam exclusivamente para ofender a dignidade do acusado e sua garantia constitucional de inocência até a concreta comprovação da sua culpa, e que não fazem parte da discussão fática. Assim, até mesmo por uma questão de paridade de armas, nem a acusação e nem a defesa (nem o juiz presidente, ainda que supletivamente), podem utilizar fatos estranhos ao processo (como a fama da vítima, ou os antecedentes criminais do acusado).

Sexto ponto, sob o risco de parecer repetitivo. Como saber quais os elementos podem ou não ser utilizadas pelas partes e pelo juiz presidente? Aquela mesma interpretação do inciso I deve ser feita, ou seja, que poderão ser usadas pela acusação e pela defesa, aquelas circunstâncias que: a) estiverem diretamente relacionadas aos fatos em julgamento; b) sirvam para comprovação de fatos e condutas relacionadas ao fato; ou c) sirvam para desenvolver as teses defensivas.

Devemos, mais uma vez, chamar a atenção à limitação do princípio do constitucional do contraditório e, por óbvio, da plenitude de defesa (CF, Artigo 5º, XXXVIII, "a"), em que podem ser mitigados caso se interprete vedar a atuação, juntada de elementos ou mesmo a sustentação de argumentos que possam trazer à discussão em plenário matéria fática ou circunstâncias pessoais não expostas nos autos, como por exemplo, a real motivação do fato ou crime que não ainda estava efetivamente em discussão.

Último ponto. O texto constitucional impossibilita a limitação da atuação defensiva e possibilidade de se defender provando sobre aspectos alternativos à imputação. O que não pode ser interpretado como uma autorização para violar o "direito à dignidade" das vítimas. O dever de respeito e humanidade precisa ser observado pela defesa, pela acusação, pelo juiz; o dever de respeito e humanidade é para a vítima, para testemunha e, frise-se, também para o acusado.

Pelo viés positivo, em matéria do júri, a lei não apresenta nenhuma novidade. Parece estarmos diante de mais uma legislação simbólica. Pela esfera da proteção das mulheres vítimas de violência, o óbvio, porém, precisa ser dito muitas vezes.


[1] "O júri para além do que vemos nas redes sociais", publicado em 15 de maio de 2021.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam/RJ e professor de Processo Penal.

  • é defensora pública do Distrito Federal, titular no tribunal do júri, mestranda em Direito pela UnB, pós-graduada em Direito Público e professora de Processo Penal e Direito Penal.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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