Direito civil atual

Como a doutrina dos repetitivos impacta a vinculatividade das decisões judiciais

Autor

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

9 de agosto de 2021, 12h03

O Direito brasileiro, por sua ligação à família romano-germânica, funda-se em um sistema organizado com base em lei escrita e em codificações [1], diferentemente de países como a Inglaterra que se fundam em um sistema de precedentes ou direito jurisprudencial [2]. Essa característica não retirou a relevância dos precedentes judiciais para o ordenamento jurídico nacional [3], o que Lenio Luiz Streck chama polemicamente de sincretismo de tradições jurídicas [4].

ConJur
Apesar da já consolidada relevância dos precedentes judiciais [5], a vinculatividade dos precedentes é tema recente no Direito brasileiro. O primeiro tipo de precedente vinculante passou a integrar o direito processual brasileiro a partir da Emenda Constitucional nº 45, regulamentada pela Lei nº 11.417/2006, que criou a súmula vinculante no Supremo Tribunal Federal (STF), a qual vincula todos os tribunais e a própria administração pública em questões constitucionais. Com uma percepção do legislador da necessidade de dar vinculatividade também às decisões envolvendo matérias infraconstitucionais, foi positivada pela Lei nº 11.672/2008, que criou a figura dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) [6].

No entanto, o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 repaginou o sistema de precedentes no direito brasileiro, criando um sistema de casos repetitivos, cuja organização fica clara na disposição do artigo 928 do CPC/2015. O r. artigo define que o julgamento de "casos repetitivos" se dá em duas hipóteses: 1) incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR); 2) recursos especial e extraordinário repetitivos (recursos repetitivos).

A principal diferença entre os institutos é que os recursos repetitivos são institutos restritos ao âmbito do STJ e do STF, enquanto o incidente de resolução de demandas repetitivas é forma de resolução de casos repetitivos nos demais tribunais [7].

O IRDR está regulado pelos artigos 976 a 987 do CPC/2015. Trata-se de incidente que pode ser instaurado pelo juiz, pelo relator, pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, devendo ser encaminhado diretamente ao presidente do tribunal (artigo 977, CPC/2015). Para que seja instaurado o incidente, deve-se preencher dois requisitos (artigo 976, CPC/2015): 1) repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; 2) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

No plano dos efeitos, o relator do incidente, ao admiti-lo, suspenderá todos os processos pendentes (individuais ou coletivos) que tramitam no Estado ou na região (artigo 982, I, CPC/2015). Há vinculatividade na decisão do incidente, tendo em vista que a tese jurídica firmada deverá ser aplicada não só a todos os processos individuais e coletivos que versem sobre questão idêntica no momento da decisão, mas também aos casos futuros (artigo 985, I e II, CPC/2015) [8], de modo que a ausência de observância da decisão enseja reclamação (artigos 985, §1º, e 988, IV, ambos do CPC/2015).

Os recursos repetitivos, por sua vez, são formas de afetação de recursos para o julgamento conjunto, exigindo-se dois requisitos (artigo 1.036, CPC/2015): 1) multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais; 2) fundamento em idêntica questão de direito. O legitimado a requerer a afetação é o presidente ou vice-presidente do tribunal de justiça ou do tribunal regional, que selecionará dois ou mais recursos representativos de controvérsia para afetação, determinando desde logo a suspensão da tramitação de todos os processos pendentes que tramitem no Estado ou na região (artigo 1.036, §1º, CPC/2015). O relator do tribunal superior (STJ ou STF) poderá acrescentar dois ou mais recursos a este rol (artigo 1.036, §5º, CPC/2015).

Caso o relator identifique a presença dos requisitos, delimitará a tese jurídica a ser apreciada, determinará a suspensão de todos os processos em âmbito nacional que versem sobre a questão suscitada e poderá requisitar aos presidentes de tribunais que apresentem ao menos um recurso representativo de controvérsia (artigo 1.037, CPC/2015). A decisão do recurso repetitivo tem caráter vinculativo, conforme artigo 1.039 do CPC/2015, de modo que os recursos que versem sobre a tese firmada serão declarados prejudicados ou julgados em conformidade com a tese firmada.

Há certa controvérsia acerca da constitucionalidade do IRDR apontada na doutrina, como Rosa Maria e Nelson Nery ou mesmo Luiz Guilherme Marioni [9][10], embora a mesma crítica não seja direcionada aos recursos repetitivos. De maneira geral, a disciplina dos julgamentos repetitivos se fundamenta em uma legítima preocupação do legislador  e da própria comunidade jurídica  em garantir maior previsibilidade das decisões judiciais e, portanto, maior segurança jurídica. Esta finalidade fica clara na leitura do "dworkiniano" artigo 926 do CPC [11]: "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente".

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] MORAES, Bernardo B. Queiroz de. Parte geral do Código Civil: gênese, difusão e conveniência de uma ideia. São Paulo: YK, 2018. p. 20 e ss.

[2] Conforme René David, o direito inglês seria, "de forma típica, um direito jurisprudencial (case law)", tendo em vista a baixa influência das universidades e da doutrina, bem como um uso secundário da lei (statute). Cf: DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo: direito comparado. 2.ed. Tradução de Hermínio A. Carvalho. Lisboa: Editora Meridiano, 1978. p. 386. Para uma visão sobre as relações entre o processo interpretativo dos precedentes no common law e da lei no civil law, ver: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e precedentes: civil law e common law. Revista dos Tribunais. v. 893, p. 33-45, mar.2010.

[3] LIMA, Tiago Asfor Rocha. Primeiras impressões sobre os precedentes judiciais no Projeto de Novo Código de Processo Civil. Revista de Informação Legislativa. ano. 48, n. 190, p. 279-291, abr-jun, 2011. p. 280.

[4] Tendo por base o livro "Juízes, legisladores e professores", de Raoul C. van Canegem, Lênio Streck fala de 3 grandes tradições, que "possuem como agentes centrais ora os juízes (como no caso da tradição anglo-saxã), ora os legisladores (no caso das experiências francesas, seguidas da Bélgica e da Suíça, que acabaram por adotar o modelo de direito imposto pela codificação), ora os eruditos/professores, que compõem a tradição acadêmica da ciência jurídica (ligada aos movimentos universitários vivenciados a partir de Bolonha e que encontrou seus maiores esforços de continuação no seio do ambiente universitário alemão)". Afirmando que todas estas tradições estão presentes no imaginário do ambiente jurídico brasileiro (v.g., "falamos o tempo todo de precedente, formalismo conceitual, ‘juiz boca da lei’"), sustenta que "sempre estivemos, portanto, às voltas com essa espécie complicada de sincretismo" (STRECK, Lenio Luiz. As várias faces da discricionaridade no Direito Civil brasileiro: o "reaparecimento" do Movimento do Direito Livre em terrae Brasilis. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 8, p. 02-23, jul-set, 2016)

[5] Tomar-se-á uma acepção genérica de precedente, como decisões proferidas por tribunais em caráter colegiado (acórdãos), sem adentrar no mérito de quais decisões seriam ou não precedentes ou se se pode dizer que existem precedentes no direito brasileiro.

[6] LIMA, Tiago Asfor Rocha. Primeiras impressões sobre os precedentes judiciais no Projeto de Novo Código de Processo Civil. Revista de Informação Legislativa. p. 281.

[7] Poder-se-ia suscitar também diferenças topológicas (de localização das disciplinas), bem como entre recurso e incidente. A primeira parece não ter pertinência e a segunda desfocaria o principal objeto do ensaio.

[8] Embora o termo "precedente" seja utilizado de forma genérica no texto, poder-se-ia pontuar, aqui, uma das críticas sobre a possibilidade de chamar tais mecanismos de "precedentes" (em sentido técnico), uma vez que, não só no caso do IRDR, mas também no dos recursos repetitivos, o precedente já "nasce" como um precedente. Isso, segundo setores críticos, viola a racionalidade dos precedentes "genuínos" que se tornam precedentes com o decorrer do tempo. Nesse sentido: "no Brasil, a doutrina precedentalista sustenta teses abstratas, prospectivas e generalizáveis, com força de lei, como se precedentes fossem; no common law, não apenas há diversas abordagens sobre o significado do precedente, é o tribunal subsequente que será responsável por determinar a norma jurídica em questão. Um precedente não nasce precedente. Torna-se". (STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil? Revista Jurídica Unicuritiba, p. 317-341, 2019)

[9] Conforme os autores, "a doutrina aponta quatro principais inconstitucionalidades de que padece o instituto do IRDR, criado pelo CPC 976: a) a ofensa à independência funcional dos juízes e separação funcional dos poderes; b) ofensa ao contraditório (CF 5.º LV) porque, por exemplo, não há previsão para que o interessado possa optar por excluir-se do incidente (opt-out); c) ofensa ao sistema constitucional dos juizados especiais, porque prevê vinculação dos juizados especiais à decisão proferida em IRDR (CPC 985 I), sendo que não há vínculo de subordinação entre juizado especial e TRF ou TJ (…). Outra inconstitucionalidade estaria no fato de que a CF concebeu os TJs e oTRFs como órgãos de exercício da jurisdição, mas que, com o advento do CPC/2015 e o IRDR, tornam-se órgãos com o papel de definir critérios para o exercício da jurisdição" (NERY-JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 18.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 2082).

[10] O autor fala de uma inconstitucionalidade evitável, tendo em vista que o incidente permitiria que se julgue "questão de muitos em processo de alguns", sugerindo que uma alternativa para esta inconstitucionalidade seria a participação dos legitimados à tutela dos direitos coletivos e individuais homogêneos, argumentando que "legitimados à tutela dos direitos dos membros do grupo jamais poderiam ter sido afastados do incidente sob pena não só de inconstitucionalidade por falta de participação dos litigantes individuais, mas também de negação da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor" (MARIONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas repetitivas e recursos repetitivos: entre precedente, coisa julgada sobre questão, direito subjetivo ao recurso especial e direito fundamental de participar. Revista dos Tribunais. v. 962, p. 02-16, Dez-2015).

[11] Sempre tendo em consideração que durante a tramitação do projeto do CPC, o artigo 926 foi reivindicado de lege ferenda por setores da doutrina com clara influência do teórico do direito Ronald Dworkin. Para as concepções de coerência e integridade em Dworkin, ver Dworkin, Ronald. Law's empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986. Passim.

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  • é advogado e mestrando em direito civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da FAPESP e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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