Opinião

'Desenvolvimento nacional sustentável' e aspectos ambientais na Lei de Licitações

Autores

  • Alexandre Burmann

    é advogado professor especialista em Direito Ambiental mestre em avaliação de impactos ambientais doutorando em Direito Ambiental presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e autor do livro: Fiscalização Ambiental (Editora Thoth 2022).

  • Felipe Pires M. De Brito

    é advogado atualmente trabalhando no Apoio Jurídico da Procuradoria do ICMBio mestre em Ciências Jurídico-Ambientais pela Universidade Lisboa e especialista em Direito Ambiental pela PUC-Rio em Direito Ambiental pela UFPR em Direito Minerário pelo CEDIN em Direito do Estado e da Regulação pela FGV-RJ e em Estado e Direito pela UCAM autor do livro “Contratações Públicas Sustentáveis” (Lumen Juris 2020) e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ e da UBAA.

15 de abril de 2021, 10h35

No último dia 1º, foi publicada no Diário Oficial a Lei nº 14.133/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que, além de reafirmar o "desenvolvimento nacional sustentável" como um dos princípios a serem seguidos nos procedimentos licitatórios, trouxe algumas referências importantes e mais específicas nos aspectos sustentáveis para as contratações de obras e fornecimento de bens/serviços pela Administração Pública.

A nova legislação é parte de um processo de inserção da perspectiva sustentável nas licitações públicas no Brasil em consonância com o texto constitucional, marcadamente a determinação do equilíbrio necessário entre esses pontos (artigo 170, inciso VI, CRFB/88), com a legislação nacional (artigo 4º, inciso I, Lei nº 6.938/1981) e com legislações internacionais (Diretivas 2014/23/EU, 2014/24/EU e 2014/25/EU).

Aliás, esse processo foi iniciado em 2010, com a alteração da Lei nº 8.666/93, que inseriu no artigo 3º, caput, a previsão de que as licitações "destinam-se a garantir a observância" do desenvolvimento nacional sustentável. Acertadamente, a redação acabou por ser ratificada no artigo 5º da Lei nº 14.133/2021.

Em outro momento, a legislação brasileira também abordou as licitações sustentáveis através do Regime Diferenciado de Contratação (Lei nº 12.462/11). Porém, a abrangência era menor, na medida em que o RDC era aplicado para um espaço temporal específico (artigo 10 da Lei nº 12.462/2011). Como referido, para as situações ordinárias, o artigo 3º da Lei nº 8.666/93 apenas indica de forma genérica que as licitações deveriam garantir o desenvolvimento nacional sustentável [1].

Nesse quadro, a nova legislação deu um passo adiante no processo de inclusão da sustentabilidade nas licitações públicas, mas de forma mais específica e para além das excepcionalidades do RDC. Trazemos aqui um panorama geral em relação aos aspectos ambientais trazidos pela nova lei.

A licitação obedecerá a uma sequência de fases (artigo 17), sendo iniciada pela fase preparatória, onde ocorrerá o planejamento da licitação. Nesse momento, deverá ser elaborado estudo técnico que descreva a necessidade da contratação, de forma a caracterizar o interesse público e permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação. O referido estudo técnico conterá, entre outros elementos importantes, a "descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável".

Já no artigo 25, §5º, há previsão expressa da possibilidade de que a Administração Pública, ao publicar o edital de licitação, preveja a responsabilidade do contratado pela obtenção das licenças ambientais necessárias para a execução da obra/serviço. Em tese, haverá um maior controle ambiental no processo, considerando que a empresa vencedora da licitação terá o ônus de promover o licenciamento junto ao órgão ambiental competente, diminuindo a probabilidade de autolicenciamento quando o próprio ente federado chancela os seus estudos. Nesse mesmo artigo (§6º) está estabelecida a prioridade na tramitação dos processos de licenciamentos ambientais de obras e serviços de engenharia licitados e contratados nos termos da lei, sendo orientados pelos "princípios da celeridade, da cooperação, da economicidade e da eficiência".

Outro ponto relevante sobre licitações sustentáveis trazido pela nova legislação é a inclusão da possibilidade de utilização do critério do "melhor preço sustentável" em detrimento do "menor preço", o que, certamente, é um marco para nortear profissionais que trabalham no setor. Ao tratar dos critérios de julgamento, especialmente o "do menor preço", o artigo 34 da Lei nº 14.133/2021 estabelece a possibilidade de avaliação de custos indiretos, relacionados com depreciação e impacto ambiental do objeto licitado, entre outros fatores vinculados ciclo de vida do produto [2], desde que objetivamente mensuráveis [3]. Essa avaliação, a ser definida em regulamento, poderá justificar a aquisição de bens mais caros, em tese, mas que durem mais ou que tenham menor impacto ambiental no processo produtivo, como através de políticas de reciclagem ou uso de energias renováveis.

Nota-se que a proposta sustentavelmente mais vantajosa busca excluir ou ao menos mitigar as "externalidades ambientais negativas" com uma visão de todo o ciclo de vida do produto e não apenas do preço final, como é realizado pela escolha com base no menor preço. Nesse sentido, Marçal Justen Filho indica:

"Menor preço não envolve apenas uma consideração a valores absolutos. O melhor preço configura-se em função da avaliação dos valores globais que a Administração desembolsará para fruição do objeto licitado. Não há defeito em se examinar questões técnicas para definir o melhor preço. Assim, o exame do rendimento e a apuração das qualidades propostas, enquanto meio de definir o melhor preço, não desnaturam a licitação. Trata-se de apurar o menor preço real — aquele que acarretará o menor desembolso (custo) para a Administração" [4].

Em Portugal, Carla Amado, ao abordar as licitações sustentáveis, enunciou:

"Deve sublinhar-se, de resto, que a introdução de critérios de contratação ecológica na contratação pública se insere numa lógica mais vasta de actuação da União Europeia no sentido da forma(ta)ção de mentalidades dos operadores e consumidores dos Estados-membros: a designada Política de produção e consumo sustentáveis (Integrated Product Policy), assim nomeada pela Comissão Europeia no Livro Verde sobre a produção e consumo sustentáveis, de 2014. Esta 'política', que na verdade já vinha sendo desenvolvida embrionariamente desde os anos 1990, com as Directivas sobre reciclagem de pilhas e embalagens, envolve um mix normativo bastante heterogéneo mas cujo epicentro se circunscreve à formação do produtor e à educação do consumidor para o reconhecimento das vantagens de identificar os produtos com menor pegada ecológica, ou seja, através da análise do seu ciclo de vida na relação com o desgaste de componentes ambientais (custo de energia; custo de água; custo de emissões de gases de efeito de estufa; custo de reciclagem" [5].

Em outro ponto, a preocupação da nova Lei de Licitações com o meio ambiente é verificada quando o artigo 45 da Lei nº 14.133/2021 expressamente indica que as "obras e serviços de engenharia" deverão respeitar: 1) disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas; 2) mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão definidas no procedimento de licenciamento ambiental; 3) utilização de produtos, de equipamentos e de serviços que, comprovadamente, favoreçam a redução do consumo de energia e de recursos naturais; 4) avaliação de impacto de vizinhança, na forma da legislação urbanística; 5) proteção do patrimônio histórico, cultural, arqueológico e imaterial, inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas. Um rol de requisitos amplo e completo, consolidando o respeito ao meio ambiente natural, artificial e cultural na contratação das obras e serviços de engenharia.

Nas contratações diretas (artigo 72), se estabelece a inexigibilidade de licitação (artigo 74) para "serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização", como no caso dos advogados ambientais (patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas), dos cursos de qualificação para os servidores públicos (treinamento e aperfeiçoamento de pessoal) e empresas de consultoria ambiental que realizem "controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente". Na mesma linha, o artigo 75 da Lei nº 14.133/2021 repete a redação do texto anterior, ao propiciar a dispensa de licitação para os serviços de coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de lixo, realizados por associações ou cooperativas formadas exclusivamente de pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis. Uma forma de estimular a contratação, pela Administração Pública, de cooperativas de catadores de recicláveis, mediante procedimento de dispensa de licitação.

Para eventuais problemas que possam ocorrer nos processos de licenciamento ambiental e que atrapalhem a execução da obra ou serviço contratados foram editadas normas para adequação ou extinção dos contratos firmados pela Administração. Em um primeiro momento, a possibilidade de alteração, em comum acordo entre as partes, do contrato firmado nas obras e serviços de engenharia, quando a execução for ocasionada pelo atraso nos procedimentos de licenciamento ambiental, por circunstâncias alheias ao contratado, conforme artigo 124; temos a repactuação do contrato, especialmente no que tange aos seus prazos de execução, considerando a realidade de alguns órgãos ambientais e a morosidade na análise dos processos de licenciamento. Nos casos extremos, a extinção do contrato, nos termos do artigo 137, em razão do atraso na obtenção da licença ambiental ou impossibilidade de obtê-la; ou ainda, quando ocorrer alteração substancial do anteprojeto em razão desta licença obtida. Veja-se que aqui, na mesma linha da possibilidade de repactuação do contrato por motivos alheios às partes, quando ocorrer demora na concessão de licenças ambientais, possibilita-se o encerramento do contrato. Inclui-se aqui as situações nas quais há a negativa da concessão de licença ou quando a licença é concedida e isso signifique alterações consideráveis no anteprojeto por exemplo, em caso de avaliação de alternativa locacional de uma obra. 

Outro ponto de destaque, no artigo 144, §1º, da Lei nº 14.133/2021, está  o aponte de que "na contratação de obras, fornecimentos e serviços, inclusive de engenharia, poderá ser estabelecida remuneração variável vinculada ao desempenho do contratado, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazos de entrega definidos no edital de licitação e no contrato". Nesse campo, cumpre salientar que tais critérios sustentáveis devem ser pautados por critérios técnicos e preestabelecidos, o que deve ser observado pelo poder público na avaliação do ciclo de vida dos produtos.

Conclui-se que a nova Lei de Licitações possui o mérito de avançar no processo de inclusão da sustentabilidade nas licitações públicas — ainda que demande eventual regulamentação para eventual aplicação. Premia o princípio constitucional da eficiência (artigo 37, CRFB) e a ordem econômica (artigo 170, caput e I a VI, CRFB) e insere aspectos ambientais — aqui citados — em várias fases do processo licitatório. E, finalmente, reafirma o "desenvolvimento nacional sustentável" como um dos princípios a serem seguidos nos procedimentos licitatórios, de forma a qualificar ambientalmente os processos de contratação de bens e serviços da Administração Pública.

 


[1] NIEBUHR, Pedro. As licitações sustentáveis na nova Lei de Licitações. Observatório da Nova Lei de Licitações. Disponível em http://www.novaleilicitacao.com.br/2019/12/04/as-licitacoes-sustentaveis-na-nova-lei-de-licitacoes/. Acesso em 07 abr. 2021.

[2] "O instrumento-chave de implementação da noção de consumo sustentável é a "análise do ciclo de vida" dos produtos (ACV). Trata-se de uma noção utilizada, tanto nos documentos internacionais referidos, como pela União Europeia, cuja Política de produção e consumo sustentáveis tem nela o seu principal apoio. (…). O que a estratégia de produção e consumo e sustentáveis preconiza é a "neutralização" dos índices de consumo através da análise do ciclo de vida, um instrumento que recomendavelmente será aplicado a todas as fases de produção, utilização e descarte do produto/serviço, para que o consumidor tenha a informação do ónus ambiental, que todas cada uma delas provoca-desde o berço até à cova (from cradle to grave)". AMADO GOMES, Carla. Introdução ao Direito do Ambiente. 4. ed. Lisboa: AAFDUL, 2018. pp. 74.

[3] BRITO, Felipe Pires M. de. Contratações Públicas Sustentáveis e Proteção Ambiental: (Re)leitura verde da atuação do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 47-61.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed. São Paulo, Dialética, 2012, p. 712.

[5] AMADO GOMES, Carla; CALDEIRA, Marco. Contratação Pública "Verde": Uma Evolução (Eco)lógica. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 04, p. 43-80, out./dez. 2017.  p. 78.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito pela UCS, mestre em Avaliação de Impactos Ambientais pela Unilasalle, especialista em Direito Ambiental pela PUC-RS, secretário nacional da União Brasileira da Advovacia Ambiental (UBAA), membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS, sócio de Burmann Advocacia Ambiental, membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS e professor em cursos de extensão, qualificação e pós-graduação.

  • é advogado, mestre em Ciências Jurídico-Ambientais na Faculdade de Direito de Lisboa (FDUL, Portugal), pesquisador no Erasmus Program na Università degli Studi di Roma Sapienza, Facoltà di Giurisprudenza, Itália, pós-graduado em Direito Ambiental na PUC-Rio, em Direito e Meio Ambiente Sustentável na UFPR, em Estado e Direito na Ucam e em Direito Minerário no Cedin. LLM em Direito do Estado e da Regulação na FGV-RJ, membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ, da União Brasileira de Advogados Ambientais - UBAA, da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade - Raps e do Apoio Jurídico Especializado da PFE ICMBio. Autor do livro "Contratações Públicas Sustentáveis".

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