Violência patrimonial contra a mulher: uma crítica à imunidade penal do agressor
30 de setembro de 2020, 10h10
Na esteira dessa evolução, nos idos de 1940, a promulgação do Código Penal fez valer uma série de tipificações que tutelam o patrimônio como bem jurídico, mas abriu exceção por meio da escusa absolutória descrita no artigo 181, que prevê isenção de pena para os crimes previstos naquele capítulo, quando praticados por cônjuges, ascendentes e descendentes.
Chama a atenção que a sociedade (ainda mais) patriarcal da época tenha optado por deixar de tutelar as condutas que se relacionam com questões patrimoniais familiares, ao passo que outros bens jurídicos não tenham recebido o mesmo tratamento.
Para explicar essa estranha situação, poder-se-ia conjecturar hipóteses diversas a justificar a política criminal adotada com fins de proteger a família, eis que silente a Exposição de Motivos do Código Penal.
Ao escolher tutelar tanto a conduta do chefe da família, quanto da mulher e dos filhos, não se olvida que o sistema patriarcal que ensejou essa criação legal foi pautado pelo que Simone de Beauvoir1 chama de técnicas que existem concretamente para beneficiar o homem, na medida em que o apreende dentro da perspectiva global de sua existência, ou seja, na medida em que o beneficia.
Deixadas de lado quaisquer ilações em sentido contrário, já que a evolução histórica nos leva a concluir que há milênios o homem permanece em situação privilegiada em relação à mulher, há de haver alguma razão que justifique a opção legislativa, estudo que merece profundidade na pesquisa para que se apure de forma concreta as circunstâncias econômicas, políticas, históricas, coadunadas a outras ciências, e se chegue a conclusão adequada.
Contudo, ainda que não se pretenda nestas breves linhas alcançar esse aprofundamento, não haveria como se cogitar estar a motivação do legislador dissociada do machismo estrutural tão imbricado na sociedade da época, na qual divórcio e anticoncepcionais estavam longe de existir.
Com a evolução legislativa e a criação da Lei 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, se consignou a violência patrimonial dentre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, e diversos questionamentos surgiram a partir de então.
Parte da doutrina entende que teria havido a revogação tácita do dispositivo que prevê a escusa absolutória, eis que lei nova revogaria lei anterior, ainda que sem referência direta.
Outra parcela defende que a revogação haveria de ser expressa, como o fez o Estatuto do Idoso, ao prever a inaplicabilidade das imunidades penais em se tratando de vítimas maiores de 60 anos. Argumenta-se, ainda, que mesmo tendo a Lei 11.340/06 previsto a aplicação subsidiária daquele Estatuto, se o legislador quisesse de fato revogar a escusa absolutória, precisaria fazê-lo sem deixar dúvidas.
Esta subscritora acredita que a segunda linha, que trata da necessidade de revogação expressa da imunidade prevista no ordenamento jurídico penal para que subsista, encontra maior respaldo na técnica jurídica penal.
No entanto, não nos parece que essa linha argumentativa seria óbice a instauração de instância criminal para apurar a conduta delituosa do homem contra a mulher, na constância do casamento.
Isto porque o artigo 183 do Código Penal é expresso ao indicar quais as hipóteses em que as escusas absolutórias não se aplicariam, mencionando, no inciso I, além dos crimes de roubo e extorsão, aqueles praticados com emprego de grave ameaça ou violência à pessoa.
Assim, se compreende que a violência ou grave ameaça não precisam ser elementares do tipo penal patrimonial, podendo se tratar de crime autônomo, praticado na forma das hipóteses de concurso de crimes.
Nesta coluna já se tratou da possibilidade de reconhecer o dano psíquico à vítima como espécie de lesão corporal à saúde da mulher2, em conformidade com o previsto na própria Exposição de Motivos do Código Penal, razão pela qual essa hipótese delituosa não deveria trazer grande espanto aos operadores do direito quando se comprove o nexo causal havido entre o resultado (dano psíquico) e a conduta do agressor.
Dessa forma, não haveria porque deixar de vislumbrar o dano psíquico como forma de violência psicológica à mulher, hipótese que poderia figurar como causa excludente da escusa absolutória em tela, eis que rotineiramente a busca pelo controle da vida da mulher, em especial no tocante ao patrimônio, pode resultar em graves alterações psíquicas.
Pensar de outra forma seria o mesmo que ignorar a realidade de tantas mulheres que passam a vida devotadas ao casamento, sendo proibidas de trabalhar, dedicando-se exclusivamente aos filhos – muitas vezes por exigência (ainda que silenciosa) do marido – e no curso do processo de divórcio sofrem todo tipo de tentativa de controle patrimonial, com emprego de fraudes na partilha, deixadas à míngua de subsistência, acabam desenvolvendo quadros de stress pós-traumático.
Não há como dissociar, na maioria das conjecturas que se faça, o controle exercido pela violência patrimonial do resultado dano psíquico, ou o contrário.
É importante que se lembre, como dito nas linhas iniciais, que a cada dia as relações empresariais se sofisticam, e esse reflexo é sentido diretamente por muitas mulheres, em muitos casos por aquelas que são sócias de seus maridos, que como forma de manter o controle sobre elas, praticam a asfixia financeira em ações de divórcio, realizando complexas manobras empresariais, muitas vezes difíceis de serem enxergadas como violência patrimonial em razão da problemática exposta ao longo destas linhas.
Lembremos que a Lei Maria da Penha não criou tipos penais, mas também não limitou as medidas cautelares ao rol exemplificativo previsto — e seria inconstitucional se assim o fizesse, eis que o poder geral de cautela possui assento constitucional — razão pela qual, na hipótese de ocorrência do dano psíquico como forma de violência a ensejar a exclusão da imunidade penal impeditiva da instauração das instâncias criminais, há que se cogitar a possibilidade de concessão de cautelares até mesmo para afastar o cônjuge agressor da administração da empresa que venha sendo utilizada para perpetrar as agressões na hipótese de haver sociedade empresarial com a vítima, por se estar diante de conduta que se poderia amoldar aos ditames que definem o furto de coisa comum, ou a apropriação indébita, por exemplo.
Em construção parecida com a que se pretende nestes escritos, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de processar um filho que furtou o pai, sob o argumento de que a violência ou grave ameaça não precisa ser elementar do tipo penal patrimonial, podendo constituir-se em delito autônomo, praticado sob alguma das modalidades previstas de concurso de crimes. In casu, pai e filho haviam discutido antes do furto, momento em que o filho ameaçou a vida do pai3.
Fechar os olhos para possibilidade de investigação e responsabilização criminal do agressor que comete crimes patrimoniais contra a mulher não deve ser o melhor caminho para o enfrentamento de prática que tem se tornado mais comum a cada dia.
Seja pelo reconhecimento do dano à saúde psíquica da vítima — que o cenário de pandemia nos tem revelado a importância de se preservar a psique — ou até pela ocorrência de ameaças, há que se pensar em formas de garantir a saúde integral da mulher.
Um passo importante nesse caminho é reconhecer a necessária releitura do Código Penal à luz da Constituição Federal e da Lei Maria da Penha, buscando formas de tutelar violências patrimoniais sofisticadas, que têm como consequência danos gravíssimos na vida da mulher submetida ao controle masculino.
1 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
2 https://www.conjur.com.br/2020-jun-10/escritos-mulher-violencia-psicologica-lesao-psiquica-saude-mulher
3 Aresp 613121, DJE 9.12.14, Relator Ministro Walter Guilherme (desembargador convocado TJSP).
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