Prática Trabalhista

Adequação à LGPD no recrutamento e seleção de candidatos a emprego

Autores

  • Célio Pereira Oliveira Neto

    é doutor mestre e especialista em Direito do Trabalho pela PUC-SP professor em cursos de pós-graduação membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ) da Comunidad para la Investigación y el Estudio Laboral y Ocupacional coordenador do Conselho de Relações do Trabalho da Associação Comercial do Paraná do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Paraná diretor jurídico da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades vice-presidente da Comissão da Agenda 2030 do IAB presidente do Instituto Mundo do Trabalho (IMT) e sócio fundador da Célio Neto Advogados.

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

24 de setembro de 2020, 8h00

ConJur
Numa sociedade em que os dados são mundialmente reconhecidos como o recurso mais valioso[1], entre idas e vindas, após período de vacância e quase intermináveis discussões legislativas quanto ao início de vigência, no dia 18 de setembro entrou em vigor[2] a Lei 13.709/18 — Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) —, que visa a proteger os direitos da liberdade e da privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Os episódios envolvendo a Cambridge Analytica na eleição americana e no Brexit bem mostraram a força do uso dos dados quando de modo dirigido. Trata-se de um processo de informação massiva, mas que consegue ser personalizada, que desnuda o indivíduo quanto aos seus interesses, gostos, preferências e, o pior, ódios.

Nesse contexto, ainda que represente mais uma obrigação a ser cumprida pelas pessoas jurídicas públicas e privadas ou pessoa que desenvolva atividade econômica, a LGPD vem em boa hora. Isso porque, além de proteger dados que se relacionam à personalidade de cada um, coloca o país num cenário de maior competitividade, pois confere ao Brasil ambiente mais seguro de negócios.

A proteção de dados no contexto laboral
Debruçar os olhares sobre o cenário europeu é salutar para indicar os primeiros passos. A um, porque a Europa possui diretiva desde 1995, sendo que em algumas nações[3] — tais como Alemanha, Suécia, Dinamarca e França, as primeiras leis são da década de 1970; a dois, porque aproximadamente 90% (noventa por cento) da LGPD toma por base o RGPD.

Pois bem, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em seu artigo 8º, enuncia a proteção de dados de caráter pessoal, disciplinando que eles devem ser objeto de tratamento legal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou outros fundamentos legítimos previstos por lei, dentre outras disposições[4].

A Convenção 108, do Conselho da Europa, trata da proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos no processamento automático dos dados pessoais, enquanto a Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet garante o direito de não ser vigiado, privacidade on line, criptografia e anonimato on line.

A Recomendação 89 (2), também do Conselho da Europa[5], ainda que sem caráter vinculativo aos Estados Membros, trata dos dados pessoais do empregado no ambiente de trabalho, indicando uma série de cuidados que se iniciam com a orientação de que o empregador deve informar os trabalhadores acerca dos dados da vida privada destes a serem inseridos em sistemas informatizados[6].

A Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho tutelava o tratamento de dados pessoais e a circulação desses dados, até que foi revogada pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), de 25.5.2018.

O artigo 88º do RGPD é dedicado exclusivamente ao tratamento de dados no contexto laboral, disciplinando que cabe aos Estados Membros estabelecer em seus ordenamentos, ou em convenções coletivas, normas mais específicas para garantir a defesa dos direitos e liberdades no tratamento de dados de trabalhadores para efeitos de recrutamento, execução do contrato, igualdade e diversidade, saúde e segurança e cessação contratual, dentre outros[7].

A Lei 13.709/18, no entanto, não possui dispositivo abordando expressamente do tratamento de dados no contexto das relações do trabalho, tal como o RGPD. Mas, se a LGPD não possui menção expressa quanto à essa aplicação, os contratos de emprego estariam “libertos” das “garras” da lei? A resposta é negativa, afinal, a Lei 13.709/18 possui aplicação geral, e como tal, representa fonte subsidiária do direito do trabalho, nem sequer se fazendo necessário o uso do artigo 8º da CLT ante a aplicação do método do diálogo das fontes.

Ademais, as relações de emprego não estão inseridas nas excludentes do artigo 4º da LGPD, sendo os fundamentos, princípios e bases legais da Lei 13.709/18 plenamente aplicáveis às relações de trabalho, até porque a norma constitucional enuncia como princípio maior a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), assim como garante a igualdade (artigo 5º, caput), a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem (artigo 5º, X), e o direito à livre expressão (artigo 5º, IX), dentre outros direitos expressamente previstos na Carta Maior e na legislação infraconstitucional – esta última com destaque para o artigo 20 e ss. do CC que elencam os direitos da personalidade -, sem olvidar da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet).

Como se nota, antes mesmo da Lei 13.709/18 (LGPD), a responsabilidade da empresa para com os dados do trabalhador já tinha amparo na legislação, inclusive merecia aplicação das cláusulas gerais, dentre as quais a boa-fé objetiva e seus deveres colaterais, tais como de cuidado e proteção para com as informações e dados pessoais do empregado[8].

Ademais, nas relações de emprego são coletados dados pessoais diretos (que identificam a pessoa, tais como CPF, RG) e indiretos (que tornam a pessoa identificável, tais como CEP), e, mesmo sensíveis (passíveis de gerar discriminação, tais como filiação sindical, dados relativo à saúde ou biométricos).

Portanto, indene de dúvidas que a proteção de dados prevista pela LGPD se aplica às relações do trabalho, desde a fase pré-contratual, o que enseja adequação dos processos de recrutamento e seleção.

Recrutamento e seleção de candidatos
Os princípios da LGPD são 10 (dez), que possuem caráter transversal, dialogam e se complementam. Podem parecer complexos, mas não o são. É salutar conhecê-los, pois indicam o caminho a ser seguido no tratamento, a começar pelo princípio da finalidade, pelo qual deve haver um propósito explícito, específico e informado que justifique o tratamento do dado pessoal.

O princípio da adequação é simples, pois requer compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas, ou seja, é necessária a existência de relação entre a informação solicitada e o fim à que se destina, ao passo que o da necessidade preconiza que a coleta deve ser limitada ao mínimo necessário para o alcance da finalidade, minimizando-se o uso de dados e o tempo de conservação.

Só pela leitura dos três primeiros princípios já se pode questionar: muda algo no processo de seleção de candidatos? Sim, a iniciar pela minimização da coleta de dados dos candidatos, especialmente no que se refere à vida privada ou mesmo passíveis de discriminação, passando pela necessidade de informação quanto à finalidade da coleta do dado e tempo de manutenção da informação.

Em outras palavras, o currículo não mais poderá adormecer em arquivos físicos ou digitais, pois tal procedimento, por si só, independente de vazamento, já representa desconformidade à LGPD[9].

Na abertura do processo de seleção já devem ser consignadas informações aos candidatos quanto à finalidade da coleta e tempo de manutenção do currículo, até mesmo em atendimento a outro princípio o da transparência, que enseja a garantia de informações claras, precisas e acessíveis, observados os segredos comercial e industrial.

Sem espaço para apreciação de todos os princípios, vale aqui tratar de mais um enunciado da LGPD, qual seja, o da não discriminação, que consiste na impossibilidade de tratamento de dados pessoais para fins discriminatórios, ilícitos ou abusivos, impondo ao empregador a adoção de medidas que eliminem a possibilidade de discriminação[10].

Por falar em discriminação, se a seleção for levada a efeito por meio de inteligência artificial (IA) há alguma cautela a ser adotada? Sem dúvida que sim, pois o princípio da transparência aplica-se com ainda mais ênfase, tal como previsto no artigo 20 da LGPD, que prevê a revisão da decisão tomada unicamente com base no tratamento automatizado de dados que afetem os interesses do titular, fazendo menção àquelas destinadas à definição de perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade.

E mais, o parágrafo 1º do artigo 20 prevê que o controlador (nas relações do trabalho, em regra leia-se empresa) deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial.

A questão é que se a decisão for tomada por algoritmo — diante da opacidade dos algoritmos, verdadeiras caixas pretas — muitas vezes nem sequer o programador conseguirá decifrar como se deu o processo decisório, ficando complexa a tarefa de atender ao princípio da transparência incrustado no dispositivo legal supra.

Ademais, a leitura adotada pelo algoritmo possivelmente adotará um padrão, que poderá ser discriminatório, se não observada igualdade de oportunidades em razão de raça, sexo e outros dados passíveis de discriminação, que a LGPD nomeia como sensíveis. Exemplo prático é o caso da Amazon, que com base no histórico de contratações levou à discriminação de mulheres na seleção pela ferramenta utilizada[11].

Vê-se, pois, a cautela que se deve adotar na tomada de decisões automatizadas, mormente quando assim o for por meio da inteligência artificial, o que desde logo faz recomendar a elaboração de Relatório de Impacto – não obrigatório em geral, mas imprescindível à medida em que aumenta o potencial de o algoritmo tomar decisões que possam violar a LGPD.

Por sinal, cumpre observar que a nossa legislação não prevê a revisão humana da decisão automatizada, diferentemente do RGPD, o que amplifica o desafio no uso de uma inteligência artificial ética, num cenário em que a IA pode ser usada para mapear as emoções do candidato ao emprego quando das entrevistas.

E terminado o processo seletivo, em caso de não contratação devo eliminar o currículo de imediato? Absolutamente não, dada a possibilidade de propositura de ações trabalhistas pleiteando indenização pela perda de uma chance ou alegação de procedimento discriminatório na contratação.

A recomendação, portanto, é manter o currículo pelo período determinado no programa (sugeridos 2 anos), utilizando-se para tanto da base legal exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral. Por sinal, essa é a base legal que autoriza a manutenção de documentos relativos ao contrato de emprego pós rescisão pelo período prescricional diante do risco de demanda judicial.

Como não há tempo para tratar de todas as bases legais é mais fácil usar o consentimento do trabalhador em todas as situações, certo? Nada pode ser mais temerário, pois com a revogação do consentimento, o controlador (no caso, empregador) terá de excluir todas as informações que possui, ficando sem documentos caso venha a enfrentar uma demanda.

Ademais, o consentimento deve ser manifestado de forma livre e inequívoca pelo trabalhador. E isso após o empregador ter dado ciência acerca da finalidade da coleta do dado, forma e duração do tratamento, contato do controlador, e se haverá compartilhamento e com qual finalidade, além das responsabilidades dos agentes de tratamentos, direitos do empregado como titular dos dados (v.g., acesso, atualização, revogação), isso fora os riscos e medidas adequadas – sempre observada a regra da granularidade, ou seja, o consentimento não deve ser geral, mas sim item a item.

Acresça-se que é necessário ter cautela diferenciada quando se trata do uso do consentimento em relações de desigualdade de poder, tal como na relação de emprego,[12] mas este é um tema para uma próxima oportunidade. 

Fechamento 
É salutar na coleta de dados se questionar quanto ao cumprimento dos princípios da LGPD, a iniciar pelos apresentados. Assim, devo perguntar: necessito deste dado? Para quê? Há informação em demasia? É necessário que todas essas pessoas tenham acesso a tais dados ou posso minimizar o acesso? Estou limitando o tempo de guarda do dado?

O recrutamento e a seleção de candidatos devem ser levados a efeito com base no programa de adequação à LGPD adotado pela empresa ou organização, na fase da governança, onde serão inseridas as diversas políticas e tratativas para os diferentes fluxos de dados.

Há muito a ser feito e o recrutamento e seleção representam somente uma pequena fatia, inserida na etapa da governança, que não deve vir divorciada das demais fases próprias de um processo de adequação à LGPD, ou data compliance, como queiram.


[2] com a sanção da Lei 14.058, fruto da conversão da MP 959.

[4] Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso em: set/20.

[5] ITALIA. Raccomandazione. Disponível em: <http://194.242.234.211/documents/10160/10704/Consiglio+UE+Raccomandazione+%2889%29+2.pdf>. Acesso em: set/20.

[6] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Trabalho em ambiente virtual: causas, efeitos e conformação. São Paulo: LTr, 2018.

[8] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Trabalho em ambiente virtual: causas, efeitos e conformação. São Paulo: LTr, 2018.

[9] Em que pese não deva ser descartado de imediato, consoante será adiante exposto.

[10] Como se sabe, no Brasil, o artigo 373-A da CLT procura evitar a discriminação no mercado de trabalho, desde o momento da fase de recrutamento, bem como para efeitos de promoção ou manutenção no emprego. De igual sorte, a Lei 9.029/95 proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, além de outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de manutenção do contrato.

[12] Nesse sentido, embora referindo-se ao desequilíbrio manifesto entre a autoridade pública e o titular de dados, o Considerando 43 do Working Party 29

Autores

  • é doutor, mestre e especialista em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor em cursos de pós-graduação, membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ), da Comunidad para la Investigación y el Estudio Laboral y Ocupacional, coordenador do Conselho de Relações do Trabalho da Associação Comercial do Paraná, do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Paraná, diretor jurídico da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades, vice-presidente da Comissão da Agenda 2030 do IAB, presidente do Instituto Mundo do Trabalho (IMT) e sócio fundador da Célio Neto Advogados.

  • é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital "Coronavírus e os Impactos Trabalhista" (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

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