Opinião

Novo Marco do Gás Natural: inovações regulatórias à reestruturação tributária

Autores

  • é advogado sócio do escritório Bento Muniz procurador do Distrito Federal pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em parceria Público-Privada e Concessões (Fesp-SP e FSE) e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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  • é advogado sócio da Bento Muniz Advocacia procurador do Distrito Federal mestre em Direito Público pela UFPE e professor de Direito.

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  • é advogado do escritório Bento Muniz Advocacia.

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10 de setembro de 2020, 17h13

"Se a Petrobras é eficiente, ela não precisa do monopólio, se é ineficiente, não o merece", é o que se pode aproveitar das palavras do general Castelo Branco.

Embora se reconheça a necessidade inicial de um agente dominante para estruturação do mercado, atualmente, passados quase 25 anos desde o início do processo de flexibilização do monopólio da Petrobras por meio da Emenda Constitucional nº 9/1995 e, posteriormente, a Lei do Petróleo (9.478/97), é questionável a sua eficiência, pois não parece ser natural — e tampouco meritório ainda ser detentora de 81% da produção do gás nacional e praticamente 100% do seu escoamento. Trata-se de um fenômeno resultado de uma sucessão de políticas públicas que ainda insistem em defender "o Petróleo é nosso!" [1], em tom verde e amarelo desde a década de 50.

Nos últimos anos, contudo, a partir da publicação da Lei do Gás (11.909/09), em 2009, percebe-se uma tentativa conjunta de dar maior racionalidade à indústria do gás natural, especialmente para impulsionar a competitividade do mercado por meio de investimentos privados e um processo transparente entre os agentes setoriais.

Em 2016, foi instituída a iniciativa Gás para Crescer coordenada pelo MME, que retomou as discussões em ampliar a participação do gás natural na matriz energética brasileira. Em 2019, também foi inaugurado o projeto Novo Mercado de Gás, com o objetivo de instituir medidas para quebrar o monopólio estatal e estimular a competitividade. Também em 2019, foi editada a Resolução nº 16 pelo CNPE, que estabelece diretrizes para o aperfeiçoamento de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural, bem como foi celebrado o Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) com o Cade, oportunidade em que a Petrobras se comprometeu a dar início a uma série de desinvestimentos em gás natural.

A Câmara dos Deputados finalmente aprovou o Novo Marco Legal do Gás Natural (PLs nº 6407/2013), que seguirá para votação no Senado e substituirá a Lei do Gás de 2009, sendo um enorme passo para a desejada abertura do mercado e uma das grandes apostas para a retomada da economia pós-pandemia. Abaixo serão tratadas as principais alterações regulatórias e os desafios tributários que poderão ser inaugurados pelo Novo Marco Legal do Gás Natural (NMGN).

Inovações regulatórias
Primeiramente, o NMGN institui o regime de autorização, com possibilidade de contestação por transportadoras interessadas, para o transporte e estocagem de gás natural, abrangendo toda a cadeia operacional, o que certamente é mais atraente para investidores que o atual regime de concessão previsto na lei vigente, em razão de sua maior simplicidade administrativa. Não é por outra razão que desde a sua promulgação, há mais de dez anos, nenhuma concessão para o transporte de gás foi formalizada pelo Ministério de Minas e Energia. A autorização, por sua vez, só poderá ser revogada se precedida do devido processo administrativo e cumpridos os requisitos impostos no NMGN, dando maior segurança jurídica às partes.

O NMGN também prevê mecanismos de independência da atividade de gás natural e redução da concentração na oferta como medida de desverticalização do mercado. Nesse sentido, além de expressamente determinar a observância à independência e autonomia das transportadoras em relação aos demais agentes que exerçam atividades concorrenciais no setor, impedindo relações societárias entre eles e a intersecção entre cargos de conselho ou direção, também determina que empresas que obtiveram autorização antes de sua publicação devem obter um certificado de independência expedido pela ANP. Essa medida impede que as transportadoras acabem dominando outros segmentos do mercado, como a produção ou a comercialização e vice-versa, prática já presente em outros setores regulados.

Embora inicialmente tenha previsto a criação do Operador Nacional de Transporte de Gás (ONGÁS), que seria o agente setorial responsável pelo controle operacional da movimentação e escoação da produção, semelhante ao ONS no setor elétrico, a medida foi retirada pela Comissão de Minas e Energia por ser ainda incipiente a extensão dos gasodutos no Brasil. Por outro lado, o NMGN cria os gestores de área de mercado que serão os responsáveis por coordenar e dar confiabilidade à operação das transportadoras que operem em uma mesma área.

O NMGN também institui o regime de contratação por entrada e saída que desvincula o fluxo contratual do fluxo físico da molécula de gás, o que aumenta o leque de escolha de supridores e dá maior liquidez aos participantes por intermédio de contratos de curto prazo. O modelo atual, denominado Ponto a Ponto, vincula o contrato aos pontos físicos de recebimento até o de entrega, limitando a competitividade e a possibilidade de escolha dos supridores e majoritariamente por meio de contratos de longo prazo. As tarifas agora também serão estruturadas pelas próprias transportadoras, respeitando a regulação da ANP, mas a eximindo de sua prévia autorização, como é previsto na legislação vigente.

Além de facilitar o acesso de terceiros a gasodutos, o NMGN assegura também o acesso livre às infraestruturas essenciais (escoamento, processamento, terminais de Gás Natural Liquefeito GNL e instalações de estocagem subterrânea), de forma onerosa, evidentemente, mas sempre pautado pelas boas práticas da indústria e as diretrizes da ANP, assim como a publicidade e a transparência.

O NMGN também dá melhor tratamento aos consumidores cativos, permitindo que os contratos entre eles e as distribuidoras de gás canalizado sejam celebrados sem a necessidade de prévio registro na ANP, facilitando e estimulando o consumo de gás por esses consumidores de menor porte. Os contratos padronizados, por sua vez, aplicar-se-ão apenas aos que forem comercializados no mercado organizado, como a bolsa de valores, que será administrado por uma entidade administradora através da celebração de um acordo de cooperação técnica com a ANP. Dessa forma, ao tempo que prevê expressamente a possibilidade de negociação dos contratos de gás por investidores na Bolsa de Valores, o NMGN também permite que os demais contratos sejam celebrados livremente pelas partes e customizados caso a caso, desde que respeitados padrões mínimos a serem estabelecidos pela ANP.

Finalmente, o NMGN expande as competências delegadas à ANP previstas na Lei nº 9.478/97, como a promoção de medidas para ampliar a concorrência e certificar a independência dos agentes setoriais, o que dará maior eficiência regulatória ao setor que contará com uma agência proativa e dotada das prerrogativas necessárias para o estimular. A delegação de competências a ANP pelo MME se assemelha a sua delegação a Aneel em 2002, por meio da Lei nº 10.848, oportunidade em que o setor elétrico também passou por uma grandiosa reformulação, que se revelou eficaz e profícua olhando agora, 18 anos depois. A esperança é que o mesmo ocorra com a indústria do gás.

Desafios tributários
Embora atualmente, do ponto de vista operacional, a tributação da indústria de gás não seja um desafio, haja vista a tributação concentrada em um único agente, com a desverticalização do mercado e a sua abertura para novos agentes, ela deverá passar por uma reestruturação fiscal e que não possui ainda uma legislação consolidada, nem mesmo no NMGN.

A redução a zero das alíquotas do PIS/Pasep e da Cofins sobre a importação e a venda no mercado interno de gás natural, única remissão à tributação que estava presente no texto inicial do NMGN, foi retirada pela Comissão de Minas e Energia, uma vez que não foi realizada a estimativa do impacto orçamentário-financeiro, condição imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal para a concessão de incentivos fiscais.

Há, portanto, insegurança quanto à futura tributação do setor do gás, especialmente com a implantação do novo modelo tarifário de entradas e saídas, o qual foge da incidência usual do ICMS que obedece ao fluxo físico da mercadoria, enquanto a nova regra obedece ao fluxo jurídico, especialmente porque os novos carregadores poderão contratar o ponto de entrada e o ponto de saída de forma autônoma. Atualmente, os Ajustes Sinief nº 3/2018 e nº 17/2019 já regulamentam um modelo de tributação adaptado ao modelo de entradas e saídas, mas cuja eficácia só será realmente testada quando o modelo for implementado.

Entretanto, essa ausência de vínculo entre o fluxo físico e o contratual também poderá ocasionar conflitos de competência de arrecadação entre Estados, uma vez que não há consenso se é o destinatário físico ou o jurídico que irá arcar com o ICMS, os quais poderão estar situados em estados distintos. Tampouco há uniformidade entre as legislações estaduais para a incidência do ICMS, haja vista a divergência das cargas tributárias, dos regimes especiais concedidos em situações específicas e a responsabilidade de substituição tributária.

A possibilidade de acesso oneroso a infraestruturas essenciais por terceiros instituída pelo NMGN, como as Usinas de Processamento de Gás Natural (UPGNs) e os Terminas de Regaseificação de Gás Natural Liquefeito (TRGNL), poderá gerar dupla tributação de ICMS e ISS sobre o mesmo bem ou serviço. Isso porque os Estados podem entender que o uso dessas estruturas é, na realidade, um tipo de industrialização e, portanto, fato gerador do ICMS, enquanto os municípios podem julgar ser apenas uma prestação de serviço, gerando o ISS. A natureza da obrigação, portanto, deve estar bem delimitada no contrato celebrado entre os carregadores e os proprietários dessas estruturas.

Outra questão problemática é também a cumulatividade do ICMS na utilização do gás natural como insumo para geração de energia nas termelétricas. Isso porque, diferentemente do setor elétrico, que possui imunidade tributária interestadual por força da Constituição (artigo 155, §2º, inciso X, "b"), incidindo o tributo no destino, confirmada por recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto no Recurso Extraordinário 748543, com repercussão geral reconhecida (Tema 689), o ICMS sobre o gás natural (GNV) incide na origem, o que não raras as vezes acarreta situações de acúmulo ou estorno de créditos fiscais, o encarecimento da energia elétrica proveniente das termelétricas movidas a gás natural e, ao fim e ao cabo, o desestímulo a investimentos em projetos dessa natureza.

Esse embaraço tributário é especialmente grave, pois as termelétricas são as âncoras da indústria de gás natural no Brasil. Se se permite uma analogia simplória, porém didática, porque conforma-se ao nosso cotidiano, seria o mesmo que inaugurar um shopping center e não contar na praça de alimentação com marcas conhecidas como McDonalds, ou uma loja de departamentos como a C&A. A indústria do gás precisa de investimentos dos consumidores de grande porte, logo no seu nascedouro, e as termelétricas são indispensáveis neste horizonte de evolução.

O Novo Marco Legal do Gás Natural, a um só tempo, institui um modelo regulatório para o setor voltado a dar maior competitividade e atrair novos agentes, mas com isso também impõe a necessidade de adequação do regime tributário à nova realidade, ainda mais com a reforma tributária que se avizinha. Por isso, será necessária uma atuação conjunta entre os agentes setoriais, os players e os entes federativos de modo a dar transparência e racionalidade à tributação da indústria do gás, a fim de que as inovações regulatórias não se tornem ineficazes em razão de eventuais óbices fiscais.

 


[1] 80% da produção de gás natural se refere a gás natural associada ao petróleo.

Autores

  • é advogado, procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, pós-graduado pela PUC-SP e MBA em PPP e Concessões pela Fesp-SP e presidente do Conselho de Administração da DF Gestão de Ativos.

  • é advogado, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, mestre em Direito Público pela UFPE e procurador do DF. Foi procurador da Fazenda Nacional com atuação no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça.

  • é advogado no escritório BENTO MUNIZ — Advocacia, em Brasília.

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