Opinião

Autorregulação na Lei Geral de Proteção de Dados e segurança jurídica

Autores

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

  • Rafael da Silva Alvim

    é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

27 de outubro de 2020, 15h09

A LGPD faculta, em seu artigo 50, aos controladores e operadores de dados pessoais (ou a associações a que eventualmente estejam vinculados) a formulação do que se pode denominar de regimento interno de gestão de dados, ou, ainda, de uma consolidação de boas práticas e de governança atinentes a diversos aspectos organizacionais relacionados ao tratamento de dados pessoais.

Intuitivo verificar que o artigo 50 contempla verdadeira hipótese de autorregulação, ao passo que comete ao próprio agente econômico (ou a associação) a possibilidade de editar normas que disciplinarão, em âmbito interno (ou, caso se trate de diretivas aprovadas por associação, naturalmente terão o condão de vincular todos os seus associados), a organização, o regime de funcionamento, normas de segurança, padrões técnicos etc. a respeito do tratamento de dados pessoais.

Portanto, o compliance, as diretivas internas para o estabelecimento de práticas que atendam aos fins colimados pela LGPD, não decorre tão somente da adequação das práticas internas às diretrizes normativas; bem se vê, no caso da LGPD, que subsiste espaço de liberdade para os agentes econômicos, que poderão disciplinar, da forma mais adequada à sua realidade e cultura organizacional, as práticas em consonância com o regime estabelecido pela lei.

Há de se falar, no mínimo, em uma repartição de competência normativa, dado que, no ambiente regulatório do tratamento de dados, o poder público compartilha a função normatizadora com os próprios agentes regulados, estabelecendo, por um lado, o quadro-geral regulatório a ensejar a conformação dos agentes de tratamentos de dados; e, por outro, a delegação legislativa ao próprio agente econômico para que, conjugando o atendimento às prescrições legais com os seus próprios contornos institucionais, delimite os mecanismos necessários e adequados à conformação legal.

Há de se considerar, nesse ponto, a existência de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, dotada de autonomia técnica e decisória (artigo 55-C da LGPD), a qual, dentre tantas outras competências (artigo 55-J), deve fiscalizar e aplicar sanções "em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação" (artigo 55-J, IV), além de realizar auditorias, ou determinar sua realização, "no âmbito da atividade de fiscalização de que trata o inciso IV e com a devida observância do disposto no inciso II do caput deste artigo, sobre o tratamento de dados pessoais efetuado pelos agentes de tratamento" (artigo 55-J, XVI).

Uma das desvantagens da autorregulação, por sua vez, é a existência de lacunas quanto aos limites estabelecidos para Administração Pública e particulares, bem como quanto aos poderes que podem ser exercidos por cada um, do que pode decorrer insegurança jurídica quanto às escolhas feitas neste processo. É dizer: sobretudo num ambiente de compliance, havido no bojo de uma disciplina legal inteiramente nova, que comina pesadas sanções aos particulares em caso de descumprimento, não há como se afastar inteiramente a insegurança jurídica dos agentes econômicos com base na invocação do preceito legal autorizador.

Ora, haverá um órgão regulador que exercerá graves competências fiscalizatórias e sancionatórias, e que "será o órgão central de interpretação" da LGPD (artigo 55-K, parágrafo único); poderá (e deverá), portanto, fixar diretrizes hermenêuticas a partir das controvérsias que envolvam a aplicação da lei — as quais podem ser, por intuitivo, conformes ou contrárias a eventuais previsões constantes daqueles regimentos internos relativos ao tratamento de dados pessoais. O desafio que se impõe, portanto, é compatibilizar o permissivo legal com a segurança jurídica, de sorte a que, bem delimitadas as competências da ANPD, possa a autorregulação ser exercida sem interferências, fomentando-se um ambiente de autonomia decisória dos agentes econômicos, livre das incertezas em relação a futura e possível responsabilização.

Com relação à segurança jurídica, é necessário destacar, de plano, o que dispõe o artigo 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a impor o dever de as autoridades públicas atuarem "para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas".

Com efeito, embora em doutrina o dispositivo seja majoritariamente observado pelo prisma da estabilização das relações jurídicas e pela uniformização da interpretação do direito pelas autoridades públicas (previsibilidade), cabe atentar para a cláusula geral (aberta) constante do mesmo dispositivo, a impor à Administração Pública um dever amplo de atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas (segurança como não interferência). Questionamentos poderia haver, portanto, quanto ao escopo de aplicabilidade do dispositivo, na medida em que a sua literalidade faz crer, à primeira vista, que o dever imposto aos agentes públicos se restringe e se limita à segurança jurídica na aplicação das normas.

Ou seja, o artigo 30 da LINDB deve ser lido estritamente (referindo-se unicamente à aplicação das normas) ou através de um prisma aberto (de sorte a que a segurança jurídica, em perspectiva ampla, seja erigida à condição de vetor do próprio agir administrativo)?

O caso da autorregulação na LINDB é, a propósito, um exemplo adequado do problema que ora se coloca. Não se cuida, aqui, de divergências interpretativas a serem pacificadas acerca do conteúdo normativo do artigo 50 da LGPD, ou mesmo de eventuais contradições em torno da aplicação deste dispositivo; trata-se, em verdade, da necessária adoção de postura, pela Administração Pública, que se revele comprometida com a proteção e com a preservação da segurança jurídica — essencial à plenitude do exercício do direito previsto na lei. Em resumo: a segurança jurídica, tal como contemplada pelo artigo 30 da LINDB, atinge os próprios atos administrativos (em perspectiva ampla — isto é, que devem estar direcionados à promoção da segurança jurídica dos administrados — elemento finalístico), ou, ao revés, reside o dever de observância da segurança jurídica tão-somente na coerência das condutas da Administração Pública (e, bem assim, de suas decisões quando investida de função judicante)?

Entendemos que a exegese ampliativa do conteúdo normativo do artigo 30 da LINDB nos afigura mais adequada. Se, por um lado, o dever de segurança jurídica se impõe na coerência do agir administrativo, de sorte prestigiar-se a previsibilidade da conduta em um determinado sentido, por outro, a segurança jurídica reside também na própria finalidade dos atos administrativos, na medida em que incumbe à Administração Pública, mais do que guardar coerência entre seus próprios atos (sejam eles decorrentes do exercício de função típica ou atípica), promover a segurança jurídica necessária ao exercício dos direitos dos administrados.

O exercício da autorregulação, como visto, envolve controvérsias importantes quanto aos limites e possibilidades dos poderes a serem desempenhados pelos atores público e privado. Isto é: o aprimoramento da autorregulação, sem prescindir da coerência do agir administrativo, também não dispensa um novo olhar sobre o próprio móvel do agente público (ou a finalidade dos atos administrativos). Isto é: sobretudo quando este dever de preservação e de proteção da segurança jurídica se mostra essencial ao exercício de um direito, incumbe ao legislador — ou ao administrador público — conceber mecanismos suficientes e adequados a assegurá-lo aos administrados.

E é exatamente neste sentido que o artigo 50, §3º, da LGPD dispõe que "(a)s regras de boas práticas e de governança deverão ser publicadas e atualizadas periodicamente e poderão ser reconhecidas e divulgadas pela autoridade nacional". Portanto, aqui também reside a segurança jurídica. Não se trata de pacificar divergências ou estabelecer orientações vinculantes, mas, sim, de viabilizar meios de chancela do próprio órgão regulador sobre as orientações traçadas pelos agentes econômicos a respeito do tratamento de dados. Em suma, longe de se cogitar de superação do âmbito de aplicabilidade da norma do artigo 30 da LINDB, o artigo 50, §3º, da LGDP, vem evidenciar que a segurança jurídica na aplicação da norma vai muito além de uma coerência intrínseca dos atos administrativos, para, dessa forma, incidir sobre a sua própria finalidade, que deve estar associada à promoção e efetivação de direitos assegurados aos agentes econômicos.

Autores

  • é sócio do escritório Silveira e Unes Advogados, presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados da OAB Federal, professor e coordenador do mestrado profissional do IDP-SP, doutor e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

  • é sócio do escritório Dutra e Associados Advocacia, membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-DF e e especialista em Direito Administrativo pelo IDP.

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