Empresa de economia mista que coordena trânsito pode aplicar multas, diz STF
24 de outubro de 2020, 12h02
É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.
Essa foi a tese fixada pelo Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, ao reformar decisão do Superior Tribunal de Justiça para permitir que a Empresa de Transporte de Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans) possa aplicar multas de trânsito na capital mineira.
Em 2009, o STJ havia entendido que somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, já que os de sanção derivam do poder de coerção do Poder Público, este indelegável às pessoas jurídicas de direito privado.
"É temerário afirmar que o trânsito de uma metrópole pode ser considerado atividade econômica ou empreendimento", disse o ministro Herman Benjamin, da 2ª Turma do STJ, na ocasião.
No STF, prevaleceu o voto do ministro Luiz Fux, segundo o qual a tese da indelegabilidade do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado não possui caráter absoluto e pode ser ultrapassada quando se tratar de entidades da administração pública indireta que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado de capital social majoritariamente público, sem o objetivo de lucro, em regime não concorrencial.
É o caso da BHTrans, cuja composição acionária pertence 98% à Prefeitura de Belo Horizonte, sendo os outros 2% distribuídos entre a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), que é uma autarquia municipal, e a Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte (Prodabel), esta de economia mista dependente e de capital fechado.
Critérios
De acordo o ministro Fux, a indelegabilidade do poder de polícia ao ente de direito privado se baseia em quatro pilares argumentativos, nenhum dos quais se aplica ao caso da BHTrans.
Primeiro porque a restrição constitucional à descentralização do desempenho de atividades relacionadas a serviços públicos alude apenas, exatamente, serviços públicos, deixando de fora a delegação da atividade de polícia administrativa.
Segundo, não se sustenta a tese de que a estabilidade de que goza o servidor público é requisito indispensável ao exercício do poder de polícia. Nem todos possuem essa prerrogativa, o que não deslegitima a prática atos derivados do poder de polícia pelos mesmos.
Terceiro, ainda que a coercibilidade seja um dos atributos do poder de polícia caracterizado pela aptidão que o ato de polícia possui de criar unilateralmente uma obrigação a ser adimplida pelo seu destinatário, em se tratando do exercício do poder de polícia em relação a outros valores, a exemplo da ordenação do trânsito, não há exclusividade constitucional consagrada.
E, finalmente, o ministro Fux rechaçou incompatibilidade da função de polícia com a finalidade lucrativa, sob o receio da chamada "indústria da multa". "A atuação típica do Estado não se dirige precipuamente ao lucro. É dizer, se a entidade exerce função pública típica, a obtenção de lucro não é o seu fim principal", apontou.
Esse entendimento foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
"Os órgãos ou entidades executivos de trânsito não se confundem com os órgão de segurança pública, tampouco há qualquer obrigatoriedade de aqueles serem integrantes da administração pública direta", destacou o ministro Gilmar Mendes, em voto colocado no sistema.
"Ora, se ao particular é possível, em hipóteses específicas, o exercício do poder de polícia, com muito mais razão pode uma sociedade de economia mista fiscalizar o trânsito e aplicar multa aos que desobedeceram à norma, desde que não haja finalidade de lucro", concordou o ministro Alexandre de Moraes.
Divergência
Ficaram vencidos os ministros Luiz Edson Fachin e Marco Aurélio Mello. Para Fachin, por se tratar de limitações ao exercício de direitos e liberdades pelos cidadãos, é necessário que todos os elementos referentes às sanções venham previstos em lei formal, inclusive quanto a delegação do poder sancionatório para aplicação de multas.
Com isso, incluiu essa ressalva. É possível a delegação da atividade de fiscalização e aplicação de multas de trânsito a sociedades de economia mista, por meio da regular descentralização administrativa, mas desde que todos os seus contornos estejam previstos por lei.
Já o decano do STF classificou a atribuição da competência de aplicar multas à sociedade de economia mista como "passo demasiado largo, que não encontra amparo no ditame maior". E citou o ministro Sepúlveda Pertence: "a onda neoliberal, ou qual nome tenha, ainda não chegou ao ponto de privatizar o poder de polícia".
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RE 633.782
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