Opinião

Uma adequada compreensão do dever de reavaliação da prisão preventiva

Autores

  • Murilo Alan Volpi

    é promotor substituto no estado do Paraná (MP-PR) doutorando e mestre em Direito Político Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) especialista em Direito Tributário pela FDRP-USP ex-advogado e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e ex-delegado de polícia no estado de Minas Gerais (PC-MG).

  • Matheus Tauan Volpi

    é delegado de polícia no estado de Minas Gerais (PC-MG) doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre e especialista em Direito Tributário pela USP professor de Direito Penal e Processo Penal na Unip-São José do Rio Preto (SP) e ex-advogado e analista jurídico do Ministério Público (MP-SP).

24 de novembro de 2020, 21h56

A Lei "anticrime" (Lei nº 13.964/19) introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o dever de reavaliação das prisões preventivas a cada 90 dias, conforme artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, segundo o qual, uma vez "decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal".

Referido dispositivo legal, contudo, deve ser adequadamente compreendido, a fim de reconhecer que a aplicabilidade do dever de reavaliação da prisão preventiva se restringe apenas à fase de conhecimento das ações penais. Isso porque, conforme ensina Carlos Maximiliano, "deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis" [1].

Primeiramente, é preciso destacar que outorgar aos tribunais o dever de reavaliar a cada 90 dias as prisões preventivas decretadas em todos os processos em que atuam como órgãos revisores (grau recursal) é providência que, além de inviabilizar sobremaneira o trabalho desses órgãos jurisdicionais, seria inócua. Isso porque os tribunais, diversamente dos juízos de primeiro grau, não têm à sua disposição os elementos fáticos necessários para verificar a necessidade de manutenção ou revogação da segregação cautelar.

Outrossim, a finalidade última do artigo 316, parágrafo único, do Código Penal, é evitar o prolongamento da prisão cautelar sem formação da culpa. Como bem destacado pela ministra Laurita Vaz, em decisão monocrática proferida no HC nº 589544-SC (STJ, 2020/0144047-4), "a inovação legislativa se apresenta como uma forma de evitar o prolongamento da medida cautelar extrema, por prazo indeterminado, sem formação da culpa. Daí o dever de ofício de o juiz ou o tribunal processantes declinarem fundamentos relevantes para manter a segregação provisória. No entanto, depois de exercido o contraditório e a ampla defesa, com a prolação da sentença penal condenatória, a mesma Lei Processual Penal prevê que 'o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta'(§ 1.º do art. 387 do Código de Processo Penal), a partir de outra perspectiva acerca da culpa do réu e da necessidade da custódia cautelar" (grifo dos autores).

Reforçando a assertiva de que o dever de reavaliação de ofício das prisões preventivas se estende apenas até a fase de conhecimento, o caput do artigo 316 do Código de Processo Penal, ao normatizar o tema relativo à decretação e revogação de prisões preventivas, expressamente estabeleceu o limite temporal da providência judicial de reavaliação empregando a expressão "no correr da investigação ou do processo". Dessa forma, "seja diante de uma interpretação sistemática do CPP, seja porque a lei ‘não contém palavras inúteis’, conclui-se que a aplicação dos referidos dispositivos restringe-se tão somente à fase de conhecimento da ação penal" (STJ, AgRg no HC 569.701/SP, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 9/6/2020, DJe 17/6/2020).

Dessa forma, a reavaliação de ofício das prisões preventivas a cada 90 dias deve ser feita da fase investigatória até o fim da instrução criminal. Após a prolação da sentença condenatória — e a obtenção de um juízo de certeza, ainda que provisório, sobre a culpa do réu —, cessa referida obrigação.

Como bem pontua Guilherme de Souza Nucci, "a novel norma do artigo 316, parágrafo único, do CPP, volta-se a garantir uma instrução célere em primeiro grau, quando houver réu preso (…) Não se volta o comando legislativo a processos em grau de recurso, porque o magistrado de primeira instância cessou a sua atividade e o tribunal para o qual foi encaminhado o recurso precisa atuar com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. E são aspectos totalmente diferentes. O órgão emissor da decisão — maioria absoluta dos casos — é o juiz de primeiro grau e ele é o único que pode saber se, a cada 90 dias, durante a instrução do processo, a segregação cautelar continua indispensável. Nenhum outro órgão jurisdicional, quando o processo não mais estiver em primeiro grau, terá condições de fazer essa avaliação. Aliás, o objetivo das superiores instâncias, dentro de prazo razoável (mais não fixado em lei) é avaliar o acerto ou erro do magistrado de primeiro grau até chegar à decisão final, quando se iniciará a execução da pena" [2].

Assim, a reanálise de ofício da prisão cautelar (artigo 316, parágrafo único, do CPP) deve ser feita apenas no período compreendido entre a fase policial e o fim da instrução criminal, quando ainda não se tem um juízo de certeza sobre a culpa do réu. Referida interpretação não resulta em prejuízo ao acusado. Isso porque o sistema processual penal prevê meios de impugnação próprios a serem dirigidos aos tribunais nos casos de coação ilegal à liberdade de locomoção do réu. Nada impede, por exemplo, que a defesa renove nos tribunais a cada 90 dias, em tempo maior ou menor, o pedido de relaxamento da prisão cautelar por excesso de prazo, tampouco que requeria, ante o surgimento de fatos novos, a revogação da prisão preventiva.

 


[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6ª ed., Freitas Bastos, 1957, n. 178, p. 209.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. A revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-17/nucci-revisao-necessidade-manutencao-preventiva.

Autores

  • é mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela USP e promotor de Justiça (MP/PR).

  • é mestre e especialista em Direito Tributário pela USP, professor de Direito Penal e Processo Penal na UNIP-São José do Rio Preto/SP e analista jurídico do Ministério Público (MP/SP).

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