Opinião

A revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva

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17 de novembro de 2020, 20h37

Como interpretar o disposto pelo artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, após a edição da Lei 13.964/2019? A necessidade de revisão a cada 90 dias é incumbência apenas do juiz de primeira instância ou atinge órgãos jurisdicionais superiores?

Após o advento da Lei 13.964/2019, o artigo 316 do Código de Processo Penal tem a seguinte redação: "o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal".

De maneira inédita, incluiu-se na legislação processual penal a indispensabilidade de reavaliar, a cada 90 dias, a necessidade da prisão cautelar. Impõe-se, assim, a reanálise de ofício (sem requerimento das partes), com fundamentação (baseado nas provas concretas) a mantença da prisão preventiva decretada. Lembre-se: se isso não for realizado, a prisão se torna ilegal e é caso de soltura do preso, como regra. Entretanto, há fatores relevantes a considerar.

Em primeiro lugar, o prazo de 90 dias não pode ser peremptório, a ser analisado de modo absoluto, vale dizer, quando ultrapassado gera a imediata soltura do preso. Se o prazo total da prisão preventiva não é estabelecido em lei para a maioria dos casos criminais, pois inexiste previsão no Código de Processo Penal, baseando-se na análise dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, não é possível que um singelo prazo para reavaliar a necessidade da custódia cautelar seja soberano. Há de existir flexibilidade, inclusive para se saber qual a razão pela qual o magistrado, que emitiu a decisão de prisão, não fez a revisão no prazo fixado no artigo 316, parágrafo único. Por outro lado, é preciso verificar, no caso concreto, se a validade da prisão cautelar se mantém, quanto ao seu mérito, independentemente da formalidade de revisão pelo órgão emissor. Assim sendo, quando o tribunal receber um pedido de Habeas Corpus, lastreado na ausência de avaliação do juiz em relação à manutenção da prisão preventiva em 90 dias, deve preocupar-se tanto quanto à carência dessa revisão quanto no tocante à prisão em si e sua razão de ser. O direito não é e nunca foi mera formalidade; por certo, faz parte da garantia dos direitos individuais o respeito às formas do processo, mas essas formas não podem ser fins em si mesmas. Foi-se o tempo — para quem se lembra dessa fase — em que, ultrapassados os 81 dias (criados pela jurisprudência), para o término da instrução de réu preso, soltava-se o detido imediatamente.

A previsão formulada no parágrafo único do artigo 316 é importante, pois há casos de réus presos preventivamente esquecidos na cadeia, sem que os seus processos cheguem ao término em tempo razoável. Essa exceção não pode transformar-se em regra, a ponto de justificar a soltura automática de presos perigosos somente porque o órgão emissor da decretação da cautelar não se pronunciou em 90 dias. O ideal é que o juiz, prolator da decisão de segregação, seja imediatamente cobrado, quando o Habeas Corpus chegar ao tribunal. Se não houver motivo plausível nem para a sua falta de revisão nem mesmo para a continuidade da prisão, torna-se essencial que o tribunal conceda a ordem de HC para soltar o preso. Por outro lado, o objetivo principal desse parágrafo se liga ao juízo de primeiro grau, buscando-se garantir que o processo, com réu preso, tenha uma rápida instrução para um término breve.

Retirando-se o cenário da instrução de primeiro grau, pode-se transferir esse dever de rever a prisão a cada 90 dias, quando se tratar de segregação cautelar decretada em tribunal, nos casos de competência originária, ao relator do processo.

Sob outro aspecto, quando a prisão preventiva for decretada em primeiro grau, ocorrendo a sentença condenatória e havendo recurso dirigido ao tribunal estadual ou regional, o magistrado prolator da decisão cessou a sua atividade jurisdicional. Não lhe cabe mais emitir juízos no processo, que, ademais, nem mais acompanha. Exigir que ele faça a tal revisão da prisão cautelar a cada 90 dias, quando nem mais o processo está na Vara, mas no Tribunal, cuidar-se-ia de pura formalidade. O magistrado poderia repetir automaticamente a decisão (pró-forma), sem ter novos elementos em suas mãos.

Caberia ao relator do processo em grau de recurso rever essa prisão a cada 90 dias? É uma hipótese, mas ele também não teria elementos novos, pois o processo está aguardando apenas a revisão do julgamento de primeiro grau, não se voltando diretamente à prisão cautelar. De qualquer forma, mais adequado seria o relator rever a prisão do que o juiz de primeiro grau.

Se o feito se transferir a Tribunais Superiores, por força dos recursos especial e extraordinário, caberia, então, ao relator desses feitos proceder a essa revisão. Em face de todas essas complexidades, caberia ao STF modular o alcance dessa novel norma.

Entretanto, segundo nos parece, a previsão feita no parágrafo único do artigo 316 do CPP destina-se essencialmente, apenas ao órgão emissor da decisão de prisão cautelar, enquanto o feito estiver sob sua competência. Sendo o juiz de primeiro grau, deve fazer isso até a sentença condenatória. Sendo o feito de competência originária, ao relator. Fora disso, não deveria ter nenhuma aplicação o disposto nessa norma, pois seria exigir uma formalidade inócua. Demandar do magistrado de primeira instância, que impôs a preventiva, ratificá-la, por pura formalidade, a cada 90 dias, depois que o processo saiu de sua jurisdição, já estando em grau recursal, é privilegiar a forma em detrimento da essência. Note-se o seguinte: se o tribunal estadual (ou regional) demorar muito tempo para resolver um caso de réu preso, a defesa, como regra, impetra HC em tribunal superior, alegando excesso de prazo e falta de razoabilidade. Aliás, até mesmo quando o STJ demora para julgar um caso de réu preso, a defesa impetra HC junto ao STF. Logo, o que se acompanha, na prática, é o correto: quando o feito está em grau recursal, o responsável pela demora (em qualquer prazo) é o juiz do feito, seja ele o colegiado de 2º grau, seja o Superior Tribunal de Justiça, seja o próprio Supremo Tribunal Federal. Quem tem o processo em sua competência é o responsável por justificar a prisão processual a cada 90 dias, se o entendimento se conduzir à sua indispensabilidade em qualquer estágio do processo.

Em nosso entendimento, no entanto, o objetivo da norma é destinado à primeira instância: a cada 90 dias, o juiz que decretou a prisão preventiva deve justificá-la, até o final da instrução e a prolação da decisão condenatória. A partir daí, não há mais aplicação ao disposto no parágrafo único ao artigo 316 do CPP. E, se houver, não cabe ao juiz de primeira instância, que não mais tem o processo sob sua competência.

A novel norma do artigo 316, parágrafo único, do CPP, volta-se a garantir uma instrução célere em primeiro grau, quando houver réu preso; ao menos, demanda-se que o juiz justifique a prisão a cada 90 dias. Não se volta o comando legislativo a processos em grau de recurso, porque o magistrado de primeira instância cessou a sua atividade e o tribunal para o qual foi encaminhado o recurso precisa atuar com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. E são aspectos totalmente diferentes. O órgão emissor da decisão — maioria absoluta dos casos — é o juiz de primeiro grau e ele é o único que pode saber se, a cada 90 dias, durante a instrução do processo, a segregação cautelar continua indispensável. Nenhum outro órgão jurisdicional, quando o processo não mais estiver em primeiro grau, terá condições de fazer essa avaliação. Aliás, o objetivo das superiores instâncias, dentro de prazo razoável (mais não fixado em lei) é avaliar o acerto ou erro do magistrado de primeiro grau até chegar à decisão final, quando se iniciará a execução da pena.

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