Ambiente Jurídico

Litigância climática: o 'caso Leghari v. Paquistão' e suas lições para o Brasil

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7 de novembro de 2020, 8h01

O Supremo Tribunal de Lahore, no Paquistão, julgou procedente o pedido de Ashgar Leghari, um agricultor paquistanês, que demandou o governo nacional por falhas e omissões na execução da Política Nacional de Mudanças Climáticas de 2012 e no plano governamental denominado Estrutura para Implementação da Política de Mudanças Climáticas (2014-2030) (CLIMATE CASE CHART, 2019).

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Em 4 de setembro de 2015, a corte, invocando princípios de Direito Constitucional e Internacional, declarou que "o atraso e a letargia do Estado na implementação destas normas violam os direitos fundamentais dos cidadãos". O tribunal, em sua decisão, determinou: 1) que os ministérios do governo do Paquistão nomeassem uma pessoa focal especializada no tema, mudanças climáticas, para auxiliar e garantir a implementação de uma lista de pontos de ação até 31 de dezembro de 2015; e 2) a criação de uma Comissão de Mudanças Climáticas composta por representantes dos principais ministérios, organizações não governamentais e experts para monitorar e fiscalizar o progresso das ações governamentais (CLIMATE CASE CHART, 2019).

Em 14 de setembro do mesmo ano, o tribunal prolatou uma decisão suplementar nomeando 21 membros para uma comissão que foi investida de vários poderes e competências para a tomada de decisões referentes à política climática nacional (CLIMATE CASE CHART, 2019).

Em 25 de janeiro de 2018, o tribunal emitiu uma nota sobre o relatório do Comitê de Mudanças Climáticas, observando que, no período de setembro de 2015 a janeiro de 2017, 66% das ações prioritárias da Estrutura de Implementação da Política de Mudanças Climáticas foram implementadas. Esse fato significou, nesta era de aquecimento global e de desastres causados por fatores antrópicos, sem dúvida, um grande avanço (CLIMATE CASE CHART, 2019). Essa, portanto, foi uma das consequências positivas do caso climático ora analisado.

De acordo com a corte, portanto, o fracasso das autoridades governamentais paquistanesas em implementar, em tempo, o Quadro Nacional de Política Climática "violou os direitos fundamentais dos cidadãos que precisam ser salvaguardados".  Na fundamentação da decisão, a corte citou a incidência direta dos seguintes direitos fundamentais e princípios constitucionais para o deslinde do feito:

a) Direito à vida (artigo 9), que inclui o direito a um ambiente saudável e limpo;

b) O direito à dignidade humana (artigo 14);

c) Os princípios constitucionais de democracia, da igualdade, da justiça social, da justiça econômica e da justiça política, que incluem no seu âmbito e compromisso os princípios ambientais internacionais do desenvolvimento sustentável, da precaução, da avaliação do impacto ambiental, da equidade intergeracional e intrageracional e a doutrina da confiança pública(public trust doctrine) (LAHORE HIGH COURT GREEN BENCH,2015).

A corte, portanto, aplicou, no caso, de modo mais abrangente e aprofundado, os direitos fundamentais e os princípios constitucionais se comparado o mesmo com célebres e exitosos litígios climáticos, como o caso Urgenda na Holanda (STEIN, CASTERMANS, 2017, p.304-324). Prevaleceu em Leghari o princípio da justiça ambiental, acompanhado do entendimento quase universalizado da necessidade imediata de combate ao aquecimento global. A referida tradição da justiça ambiental, consubstanciada em ações locais, de acordo com a decisão da corte, precisa alcançar, em caráter urgente,  uma dimensão globalizada.  O tribunal, portanto, na decisão, concretizou direitos fundamentais com base na Constituição paquistanesa.

Referida abordagem holística, imbuída de ativismo, aliás, é uma característica não apenas da jurisprudência consolidada pelo Poder Judiciário do Paquistão, mas também está enraizada nos precedentes das vizinhas cortes indianas, em especial nesta era de mudanças climáticas (WEDY, 2018). O Supremo Tribunal de Lahore, além de declarar, na decisão, a violação de direitos fundamentais, emitiu ordem, portanto, com a finalidade de reparar e de minorar os efeitos das referidas ações e omissões inconstitucionais (RAJAMANI, GHOSH, 2012, p. 139-177).

De acordo com a corte, especificamente:

"O direito à vida, o direito à dignidade humana, o direito à propriedade e o direito à informação, nos termos dos artigos 9, 14, 23 e 19A, da Constituição, lidos em conjunto com os valores constitucionais da justiça política, econômica e social, fornecem o conjunto de instrumentos judiciais necessários para abordar e monitorar a resposta do Governo às alterações climáticas" (LAHORE HIGH COURT GREEN BENCH,2015).

Referida decisão possui um significado importante para o Brasil, que avança na análise de litígios climáticos, próprios e impróprios, pelos tribunais superiores (BORGES, LEHMEN, 2020; SETZER, FABBRI, CUNHA, 2019; WEDY, 2020). Indica o precedente que uma ordem judicial pode determinar que o Estado (União, Estados, municípios e Distrito Federal) cumpra as diretrizes Lei 12.187/09, que estabelece a Política Nacional da Mudança do Clima. É preciso implementá-la onde for possível, suprindo as suas evidentes omissões, complementando-a. Também poderia haver, em algum litígio climático brasileiro, entre as dezenas que já foram ajuizadas nos últimos dez anos, uma decisão, de cunho mandamental, no sentido da implementação dos instrumentos jurídicos reconhecidamente mais eficazes para o combate às mudanças climáticas: a tributação sobre o carbono e o cap-and-trade (previstos no Acordo de Paris, que, aliás, já faz parte da normativa supraconstitucional e infraconstitucional vigente no Brasil) (WEDY, 2018).

Aliás, a Lei 12.187/2009 estabelece os princípios, os objetivos, as diretrizes e os instrumentos da PNMC (artigo 1º), todos passíveis de concretização por decisão judicial. No diploma, também, restam eleitos os instrumentos da PNMC, passíveis de estruturação por ordem judicial, entre as quais o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e, em especial, a avaliação de impactos ambientais sobre o microclima e o macroclima (artigo 6º, inciso I ao XVIII). Importante medida, a ser concretizada, é o disposto no artigo 8º, que dispõe que as instituições financeiras oficiais disponibilizarão linhas de crédito e de financiamento específicas para desenvolver ações e atividades que atendam aos objetivos da lei e, concomitantemente, estejam voltadas à indução da conduta dos agentes privados à observância e à execução da PNMC no âmbito de suas ações e responsabilidades sociais. Observa-se que a legislação oferece mecanismos de financiamento e crédito para a produção de energia limpa (RUSCUS, EDENS, GRAY, 2011, p.117-138).

Princípios, objetivos, diretrizes, instrumentos das políticas públicas e programas governamentais precisam ser compatibilizados, ainda que por intermédio do Poder Judiciário, com os princípios, os objetivos, as diretrizes e os instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Resta previsto na lei que decreto do Poder Executivo estabelecerá e ordem judicial pode ser necessária para implementá-lo —, em consonância com a Política Nacional sobre Mudança do Clima, a implantação de planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas, visando à consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono, na geração e distribuição de energia elétrica, no transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros, na indústria de transformação e na de bens de consumo duráveis, nas indústrias químicas, fina e de base, na indústria de papel e celulose, na mineração, na indústria da construção civil, nos serviços de saúde e na agropecuária (REDICK, ENDRESS, 2011), com vistas em atender metas gradativas de redução de emissões antrópicas quantificáveis e verificáveis, considerando as especificidades de cada setor, inclusive por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e das Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas (Namas) (artigo 11, parágrafo único).

Outrossim, é intuitivo que, após o decidido em Leghari, litígio climático, em sentido lato, busque a concretização e o reconhecimento de um direito constitucional fundamental ao clima estável no âmbito do Supremo Tribunal Federal, forte no artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (WEDY, 2019; SARLET, FENSTERSEIFER, 2020). 

No Brasil todos possuem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos da Constituição Federal, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e as futuras gerações (artigo 225, caput). O Constituinte adotou a concepção de um antropocentrismo alargado, com uma perspectiva intrageracional e, além dessa, intergeracional ao prever a tutela do bem ambiental para as gerações que estão por vir (MACHADO, 2020, p.116). Nesse sentido, nesta era de aquecimento global, é imperativo o reconhecimento pelo hermeneuta constitucional de uma visão ampliada do artigo 225 da Magna Carta, compatível com Laudato Sì, com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e com o Acordo de Paris, para a consagração do direito fundamental ao clima estável. 

 

Referências bibliográficas
BORGES, Caio; LEHMEN, Alessandra. Climate Fund Case reaches the Brazilian Supreme Court. Oxford Human Rights Hub, 24 de julho de 2020. Disponível em: <https://ohrh.law.ox.ac.uk/climate-fund-case-climate-litigation-reaches-the-brazilian-supreme-court/>.

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Autores

  • é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.

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