Direitos fundamentais

Litigância climática, proteção do ambiente e a ADPF 708

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25 de setembro de 2020, 8h00

Amplamente divulgada e ansiosamente aguardada, a audiência pública convocada no bojo da ADPF 708/DF, relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, realizou-se alguns dias atrás, precisamente na segunda e terça-feira passadas (21 e 22), com a participação de um significativo e plural número de expositores, representando a esfera governamental, a sociedade civil organizada — mediante a presença de ONGs de expressão na seara ambiental —, integrantes das carreiras jurídicas, especialistas de diversas áreas afins, setores da economia e acadêmicos. Em pauta esteve (e segue estando) o problema das mudanças climáticas e o controle das ações e omissões governamentais nessa seara, em especial a utilização correta dos recursos do assim chamado "fundo clima".

Tendo em conta que os signatários desta coluna foram agraciados com a oportunidade de participar da referida audiência, manifestando-se pela academia jurídica e — caso do autor Tiago Fensterseifer — pela Defensoria Pública Estadual de São Paulo, bem como à vista da relevância do evento e do tema, aproveita-se a oportunidade para divulgar aqui o integral teor da exposição feita na manhã de terça-feira, na ocasião dividida em duas partes aqui reunidas.

Note-se que se trata do mesmo teor, apenas ajustado e revisto para o formato da coluna, de modo que também referências à doutrina mencionam apenas os nomes dos respectivos autores. Mas, dado o espaço limitado do qual se dispõe, desde logo passamos ao texto propriamente dito.

A Constituição Federal de 1988 (CF) — inclusive qualificada como Constituição "Ecológica" ou "Constituição Verde" — expressão esta utilizada pelo ministro Luiz Fux no julgamento da ADC 42/DF sobre Novo Código Florestal de 2012 — estabeleceu o que se pode denominar de um Estado não apenas Democrático e Social, mas também Ecológico de Direito.

No Brasil, contamos com aproximadamente 40 décadas de uma trajetória e consolidação progressiva do marco jurídico ecológico, iniciada na década de 1980 pela Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), quando então se consagrou um novo bem-jurídico ecológico autônomo, um microssistema legislativo especializado e uma política pública ambiental de âmbito nacional (em todos os planos federativos).

A CF representa o ápice desse desenvolvimento, com a proteção ecológica tomando assento definitivo no núcleo normativo-axiológico do nosso sistema constitucional, mediante a consagração tanto de deveres de proteção ecológica atribuídos ao Estado e a particulares, quanto de um novo direito fundamental assegurando a  todos viver em um meio ambiente sadio e equilibrado — tal como expresso no seu artigo 225.

A Constituição igualmente estabelece um Estado Constitucional aberto e cooperativo, que tem a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios regentes das suas relações internacionais (artigo 4º, II), estimulando o que se pode denominar de um Diálogos de Fontes Normativas e mesmo de um Diálogo de Cortes de Justiça, o que pode ser exemplificado com a referência expressa feita pelo Ministro Barroso à Opinião Consultiva n. 23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre "Meio Ambiente e Direitos Humanos" na decisão convocatória da presente audiência pública.

Esse cenário constitucional é reforçado na jurisprudência do STF, com o reconhecimento do status supralegal dos tratados internacionais versando sobre o meio ambiente, como destacado em voto-relator da Ministra Rosa Weber na ADI 4066/DF (Caso Amianto), especificamente naquela ocasião em relação à Convenção da Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito (1989).

Por tal razão, também a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima e a Convenção-Quadro sobre a Biodiversidade, ambas celebrados por ocasião da Conferência do Rio de 1992, e o Acordo de Paris 2015 -, devem ser tomados como parâmetro normativo para o controle de convencionalidade por parte de Juízes e Tribunais nacionais (inclusive ex oficio, como já decidido pela Corte IDH) da legislação infraconstitucional e ações e omissões de órgãos públicos e particulares.

O novo status atribuído ao direito humano ao meio ambiente pelo Corte IDH, foi consagrado na já referida  OC 23/2017 e, mais recentemente, já no âmbito da sua jurisdição contenciosa, no Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Tierra Nuestra) vs. Argentina de 2020. Isso, por certo, reforça a responsabilidade internacional do Estado brasileiro em relação à proteção da Floresta Amazônica.

No tocante ao direito fundamental ao meio ambiente, a jurisprudência do STF reconhece uma dimensão ecológica inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana, exigindo-se, nesse sentido, um patamar mínimo de qualidade e integridade ecológica como premissa a uma vida digna e ao exercício dos demais direitos fundamentais, inclusive com base na interdependência e indivisibilidade de tais direitos.

Dito isso, entendemos possível também falar da configuração de um direito fundamental à integridade do sistema climático ou direito fundamental a um clima estável e seguro, como refere em sede doutrinária, o magistrado Federal e professor Gabriel Wedy. De tal sorte, a integridade e estabilidade climática integra tanto o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente quanto o conteúdo do chamado mínimo existencial ecológico, podendo-se falar, inclusive, de um mínimo existencial climático, como indispensável a assegurar uma vida humana digna.

É imperioso, por essa ótica, o reconhecimento de deveres estatais específicos de proteção do sistema climático, derivados diretamente da previsão do inciso I no § 1º do artigo 225, que dispõe sobre a proteção dos "processos ecológicos essenciais". O sistema climático, nesse sentido, deve ser reconhecido como um novo bem jurídico autônomo de estatura constitucional, tal como defendido recentemente pelo ministro Antônio Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, somado à consagração expressa da proteção da integridade do sistema climático no Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), artigo 1º-A, parágrafo único, e na Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009), artigo 4º, I.

Ocorre que, infelizmente, temos testemunhado nos últimos anos a reversão dessa trajetória — até então — progressiva do marco jurídico e das políticas públicas ambientais no Brasil, diante de um cenário atual de omissão e permissividade, bem como ações governamentais flagrantemente contrárias à proteção ecológica, como se pode verificar nos exemplos que seguem:

— retração na fiscalização e exercício do poder de polícia ambiental, com a redução no número de autuações de infrações ambientais;
— permissividade com a presença humana e atividades ilegais (extração de madeira, garimpo, etc) em Unidades de Conservação e Territórios Indígenas;
— aumento progressivo do desmatamento e dos focos de incêndio na Amazônia (e no Pantanal), aliado ao negacionismo científico e climático de alguns representantes de órgãos do Governo Federal, contrariando o consenso científico e inclusive os dados oficiais (por exemplo, do próprio Inpe);
— violação aos deveres estatais de transparência ativa e acesso à informação ambiental, consagrados expressamente tanto na Lei de Acesso à Informação Ambiental (Lei 10.650/2003) quanto na Lei de Acesso à Informação Pública — Lei 12.527/2011;
— redução da participação da sociedade civil, como no caso do Conselho Nacional do meio Ambiente (Conama) objeto da ADPF 623 proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), em que o Governo Federal reduziu drasticamente a sua estrutura e criou um procedimento de "sorteio aleatório" para esvaziar a participação das entidades ambientalistas, ensejando violação flagrante aos direitos ambientais de participação da sociedade, consagrados, por exemplo, no Princípio 10 da Declaração do Rio (1992) e, mais recentemente, no Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018);
— reduções orçamentárias e mesmos a não utilização dos recursos orçamentários disponíveis; e, por fim,
— a falta de utilização do Fundo Clima por inércia do Governo Federal, que, aliás, também tem como pano de fundo limitar a participação da sociedade civil nas políticas ambientais.

Diante desse quadro, de acordo com o nosso entendimento, está configurado e em processo de agravamento um estado de coisas inconstitucional e inconvencional em matéria ambiental e climática, tal como suscitado na inicial, somado ainda a um estado de emergência ambiental e climático, como já reconhecido por diversos países e entidades internacionais — como, por exemplo, o Parlamento Europeu no final de 2019, inclusive com o estabelecimento da meta de atingir a neutralidade climática até o ano de 2050.

Esse estado de coisas se verifica em virtude do flagrante retrocesso em termos de proteção ambiental, ademais de descumprimento do dever de progressividade estabelecido pelo direito internacional quando se trata de direitos sociais, econômicos culturais e ambientais (Desca). O retrocesso se manifesta no plano jurídico e do ponto de vista da diminuição da proteção normativa, institucional, organizacional, procedimental e financeiro/orçamentária. Além disso, a degradação ambiental do ponto de vista fático segue avançando e, a persistir a erosão da proteção jurídica, somente poderá piorar.

Soma-se a isso, do ponto de vista das políticas públicas ambientais, a caracterização de um verdadeiro laissez faire ambiental, tal como referido pelo Minisntro Antonio Herman Benjamin do STJ, inclusive como uma fase legislativa do “passado” do (Pré-)Direito Ambiental (Pré-Lei 6.938/81, Pré-CF/1988), e que pode ser ilustrada pela manifestação recente do atual Ministro do Meio Ambiente: "vamos passar a boiada".

Os deveres de proteção estatal, que, como já referido, vinculam todos os órgãos e agentes estatais e implicam um poder-dever de atuação do Poder Judiciário no controle das ações e omissões dos demais atores estatais, inclusive e aqui em especial do Poder Executivo, quando manifestamente se está aquém dos níveis de proteção ecológica exigidos constitucionalmente. Aplica-se aqui, tal como já reconhecido pelo pela jurisprudência do STF, a figura da proibição da proteção insuficiente o deficiente.

É nesse contexto que assume relevo o assim chamado princípio da proibição de retrocesso ambiental ou ecológico (e dever de progressividade em matéria ambiental) reconhecido a aplicado pelo STF como princípio constitucional implícito em diversas decisões, além de expressamente consagrado no artigo 3º, I, do já referido Acordo Regional de Escazú (2018), do qual o Brasil é signatário, muito embora não tenha finalizado a sua incorporação.

O princípio da proibição de retrocesso (ou não regressividade), que já vinha sendo deduzido também do princípio e dever de progressividade previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais — Pidesc (1966) e no Protocolo de San Salvador em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos (1989) — que consagrou expressamente o direito humano ao meio ambiente no seu art. 11 -, opera como instrumento para aferição e controle de atos e também omissões que diminuem os níveis de proteção do meio ambiente. Implica, além disso, a vinculação de todos os atores estatais — Legislativo, Executivo e Judiciário —, cabendo a este último intervir por força de seus próprios deveres de proteção.

Importa sublinhar que o poder-dever do Poder Judiciário no sentido de controlar as ações e omissões dos demais poderes torna-se pleno ou imperativo — operando como regra — quando estiverem comprometidos o mínimo existencial ecológico e o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente, o que se dá quando:

  1. se está diante de riscos irreversíveis (como defendido na doutrina por Alexandra Aragão), o que ocorreria, por exemplo, em vista do tipping point de savanização da Amazônia (estimado entre 20-25% em relacao à perda da sua vegetação original), sendo que já chegamos a 17% de desmatamento, como referido pelo Professor Carlos Nobre na data de ontem;
  2. afetação dos processos ecológicos essenciais (artigo 225, § 1º, I), como no caso a integridade do sistema climático;
  3. proteção de espécies de flora e de fauna ameaçados de extinção, prevista no art. 225, § 1º, VII).

Necessário, portanto, assegurar — no âmbito da proteção ecológica — uma posição preferencial da integridade do sistema climática, decorrente do âmbito de proteção do núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente (ou mesmo em relação ao mínimo existencial ecológico e mínimo existencial climático).

Dito isso, importa salientar que o STF tem atuado e pode avançar como ator proativo de uma co-governança ecológica, no contexto de sua função contramajoritária, porquanto também está em causa resguardar interesses e direitos fundamentais de minorias e grupos sociais vulneráveis e, inclusive, subrepresentados pela política tradicional (via regra majoritária), como é o caso dos povos indígenas, das crianças e adolescentes (pela ótica da justiça climática, como bem simbolizado pelo movimento Fridays for Future, da estudante sueca Greta Thunberg), além das futuras gerações humanas (protegidas expressamente no caput do artigo 225).

Os deveres do Estado de proteção dos grupos sociais vulneráveis foram expressamente reconhecidos no contexto da proteção ecológica e dos direitos humanos  na OC 23/2017 da Corte IDH, inclusive no contexto do seu acesso de tais indivíduos e grupos sociais ao Sistema de Justiça.

A forma possivelmente mais eficaz de atuação do Poder Judiciário nesses casos de grande impacto e transversalidade, sempre buscando, quando possível, uma deferência para os demais atores estatais, é lançar mão de decisões que impõe medidas estruturantes (como defendem, na doutrina, Marco Felix Jobim, Hermes Zanetti Jr., Sergio Arenhardt, entre outros).

Dentre as medidas que poderiam ser determinadas já no presente feito, podemos referir as que seguem:

  1. Instalação de um Comitê de Emergência ou Crise Ambiental ou Sala de Situação Ambiental — como feito, aliás, há poucas semanas pela Suprema Corte de Justiça da Argentina, em ação relativa aos incêndios no Delta do Rio Paraná;
  2. Tal comitê/sala seria composto, por exemplo, por autoridades públicas, entidades científicas e representantes de entidades ambientalistas e dos povos indígenas, e da área jurídica (PGR, Defensoria Pública da União), a fim de acompanharem e prestarem informações acerca do cumprimento das medidas judiciais eventualmente determinadas.

Na jurisprudência do STF, a "Sala de Situação" teve a sua instalação determinada na ADPF 709/DF, também sob a relatoria do ministro Barroso, onde se determinaram medidas para conter o contágio e a mortalidade por Covid-19 entre a população indígena.

Da mesma forma, registra-se a  ADPF 743/DF, relatoria do ministro Marco Aurélio, em que é pleiteada, além do reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional e imposição de inúmeras medidas — por exemplo, um plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia —, a criação de uma “sala de situação”, de modo a permitir a gestão da crise em questão.

A função de tal comitê ou sala de emergência é possibilitar a gestão da crise ambiental, subsidiar a tomada de decisões e monitorar o acompanhamento do cumprimento das medidas impostas judicialmente, inclusive no tocante ao cumprimento do orçamento em matéria ambiental, elaborando relatórios periódicos a serem submetidos ao STF.

Por fim, cumpre assinalar que, é claro, apenas fizemos referência a algumas possibilidades, porquanto cabe ao STF a decisão sobre a matéria. Para encerrar, gostaríamos de dizer que, mais uma vez, o STF está ocupando o seu lugar fundamental na cogestão e governança da crise ambiental e do correspondente estado de coisas inconstitucional e inconvencional em matéria ambiental e climática, tendo em suas mãos a possibilidade de contribuir de modo concreto para o seu enfrentamento e mesmo superação.

Autores

  • Brave

    é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

  • Brave

    é defensor público no estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito Público pela PUC-RS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha. Autor da obra Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017.

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