Estado da Economia

A necessidade de criatividade e rapidez na atuação estatal frente à pandemia

Autores

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Pedro Júlio Sales D'Araújo

    é doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários e foi pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha).

17 de maio de 2020, 8h05

Através de um esforço coletivo, temos abordado ao longo dessa coluna em que medida a pandemia vivenciada vem impactando a forma como compreendemos o papel a ser exercido pelo Estado para superarmos os desafios que nos são impostos enquanto sociedade. A medida que as semanas passam, se consolida a ideia de que o cenário pós-pandemia será desafiador, demandando uma nova postura de todos nós, bem como uma nova postura do Estado nas mais diversas frentes, em especial, frente à economia.

Mas, para chegarmos lá, é importante que enfrentemos o aqui e agora, que busquemos ferramentas que nos auxiliem a desatar o complicado nó existente entre a conciliação da política sanitária necessária para conter o avanço da pandemia e os efeitos econômicos adversos por ela causados. Para isto, alguns passos precisam ser dados e, assim como a crise da Covid-19 é algo novo para a humanidade, as soluções que devemos alcançar em nível institucional também nos cobram um certo grau de inovação e criatividade, já que não se trata apenas de reviver a importância da atuação do Estado em momentos de crise – valendo-se da experiência histórica – mas de construir uma agenda de reconstrução de uma crise sem precedentes (sem qualquer exagero de nossa parte, haja vista os números públicos de todas as economias afetadas pela pandemia).

Não podemos nos enganar, o que está em jogo no momento não é a credibilidade de nosso país frente ao mercado financeiro e sua avaliação de nossa capacidade de manter as contas equilibradas. A credibilidade que está em jogo no momento é relativa à forma como vamos lidar com essa crise do ponto de vista sanitário, buscando reduzir ao máximo as mortes dela decorrentes e evitar a perda de nossa força de trabalho, além de todos os aspectos humanitários e de civilidade envolvidos.

Com tal perspectiva em mente e dando o pontapé inicial dessa análise que temos feito, já abordamos a partir de uma visão geral quais os desafios que a pandemia impõe ao Estado no campo econômico aqui. Afirmamos naquela oportunidade que cabe ao Estado fornecer as condições materiais de enfrentamento da Covid-19, possibilitando não apenas a manutenção de uma política de isolamento social, com fornecimento de renda mínima e políticas de incentivo às empresas para manutenção dos postos de trabalho, como também com gasto público direto na ampliação da capacidade hospitalar para atender aqueles que necessitarem amparo. Para tanto, defendemos, já naquela oportunidade, a necessidade de rediscussão do papel do setor público na busca pelo bem-estar coletivo e de como tais demandas exigem uma reavaliação da atividade financeira do Estado. Tal atuação, contudo, desafia o governo federal à busca por fontes de financiamento da ação estatal.

Em continuidade, esta coluna analisou aqui em que medida algumas das propostas para tal injeção dos recursos, colocadas em debate no âmbito do legislativo, não auxiliariam no momento de emergência e excepcionalidade que vivemos. Nesse sentido, foi defendido que o aumento de tributos em geral e a proposta de instituição de um empréstimo compulsório em específico não seriam o melhor caminho a seguir para alcançarmos aquele objetivo.

Como ali apontado, concordamos com a premissa de que a reforma tributária é algo urgente, e entendemos que não podemos descartar todo o esforço empreendido nos últimos anos para a formatação da discussão nos moldes que se encontra. Ainda assim, não é o momento de pensarmos em soluções estruturantes, como a que demanda a nossa matriz tributária. Escolhas estruturantes feitas em cenários de crise geralmente não são tomadas com a reflexão necessária que elas necessitam, bem como tendem a se perenizar e prejudicar avanços futuros – vide a política de austeridade imposta pela emenda constitucional do teto dos gastos.

Temos que ter em mente, portanto, que a solução imediata para o problema de finanças públicas causado pela pandemia não será feita por meio dos caminhos de sempre do ajuste fiscal – aumento de tributos ou controle de gastos. Teremos justamente o oposto disto, nesse primeiro momento de enfrentamento.

Feita essa introdução, assumindo a centralidade do Estado nesse processo de enfrentamento e, notadamente, por parte do governo federal, temos que a crise impõe o desafio da proteção do emprego (para assegurar o mínimo de demanda da sociedade por consumo e investimento por parte da iniciativa econômica), dos gastos com saúde e criação de mecanismos de empréstimos subsidiados. Os instrumentos devem ser principalmente de natureza fiscal e de natureza monetária.

O diagnóstico da atuação fiscal do governo federal, até aqui, é de timidez no volume de sua atuação e no seu ritmo.

Falta coordenação federal de esforços e o uso de opiniões técnicas que não estejam mirando na repercussão fácil e imediatista das redes sociais marcadas pelo ódio e o medo. Se houve rapidez ao se decretar calamidade pública, até por conta da premente necessidade de ajustes de meta fiscal (vide artigo 65 da aniversariante Lei de Responsabilidade Fiscal), o pragmatismo não foi além dessa decisão, já que concorreu com o negacionismo dos números da saúde pública (a tal bravata da "gripezinha" versus a pandemia).

Também foi rápido o governo federal ao liberar os recursos dos depósitos compulsórios (no montante de R$ 1,2 trilhões) para o aumento da liquidez de provisão e na esperança – ao que parece infundada – de que esses recursos chegariam ao mercado tomador. Houve atuação rápida, ainda, na criação de regras de exceção na legislação trabalhista, mas houve, novamente, timidez ao se conceder apenas diferimento de alguns meses no pagamento de tributos do Simples e em algumas situações específicas de tributos federais, bem como postergação da entrega de declarações, como se, em curtíssimo espaço de tempo, as empresas já não terão que pagar duas competências tributárias ao mesmo tempo.

Os gastos com a saúde, contudo, ainda são pífios, e a falta de sinais claros de que estamos alinhadas com as melhores práticas no âmbito sanitário geram ainda mais incertezas, justamente o maior inimigo – essa tal incerteza – da demanda efetiva, conforme nos ensinou Keynes.

O cenário futuro de queda no PIB, de resultados fiscais negativos e de taxa de desemprego apontam para os desafios que não temos o direito de olvidar à espera de um milagre.

Os instrumentos fiscais necessários não são triviais. O aumento da dívida pública já se faz presente e sequer poderia deixar de assim ser. A emergência determina o aumento dos gastos nesse primeiro momento e a reconstrução de níveis melhores de endividamento apenas após passada a fase sanitária aguda da crise e ao longo de muitos anos.

O Estado deve fazer com que os recursos econômicos cheguem ao ou permaneçam no mercado. Que cheguem a ele por meio de despesas diretas, por meio de linhas de crédito subsidiadas, pelo despertar do catatônico BNDES e por meio de gastos com a saúde pública (nada justifica os valores liberados para gasto sob essa rubrica estarem intocados, como nos dão conta os relatórios de gastos do governo federal). Por outro lado, não é momento para o governo buscar fontes de financiamento por meio da tributação, conforme já alertamos aqui; momentos de crise não são propícios para reformas estruturantes na tributação por meio de criação de novos tributos ou novas incidências. A sabedoria popular sempre nos ensina a não se fazer compras no supermercado quando estamos famintos.

Mais do que nunca, a alteração de nosso sistema tributário não poderá se concentrar apenas na modernização da tributação sobre o consumo, o país que reconstruiremos não poderá ter apenas na sociedade de consumo o seu financiador. A renda e a propriedade daqueles que a têm também deverão ser objeto de reanálise e não somente por meio de tributos insensatos ou sem maiores estudos de aplicabilidade, como o de grandes fortunas ou a mera tributação de dividendos. Mas, repita-se, esse será o segundo momento.

A Emenda Constitucional 106, da economia de guerra, prepara o terreno da atuação do governo, ao flexibilizar a regra de ouro, ao autorizar certa atuação do Banco Central no âmbito fiscal e ao excepcionar certos gastos direitos e indiretos (benefícios), desde que não permanentes.

Na seara tributária, a atuação deverá ser mais incisiva e diametralmente oposta à da discussão do aumento de tributos, seja porque não teremos fato geradores se sufocarmos as empresas, seja porque a ideia chave é fazer o dinheiro ficar no mercado e não retirá-lo. Precisamos lançar mão de programas tributários (isenções parciais) inteligentes, com regras claras de encerramento, com objetivos previamente traçados, voluntários (por adesão) e, sobretudo, com contrapartidas, com ênfase à manutenção de certo nível de empregabilidade, podendo, inclusive, ser graduada conforme o atingimento de resultados.

Não somos os únicos a elencar certas medidas urgentes e, em geral, de cunho mais temporal do que de efetiva renúncia. Muitos colegas têm defendido, e fazemos coro a eles, medidas do seguinte tipo: suspensão temporária da trava dos 30% na compensação de prejuízos fiscais e bases negativas para aquelas empresas que estão apurando lucro; análise da possível transferência de prejuízo fiscal e bases negativas entre empresas do mesmo grupo. Autorização para a efetiva e rápida transferência de créditos tributários acumulados para terceiros em tributos como PIS, Cofins e ICMS.

De cunho menos temporal e de efetiva renúncia, adicionamos ao debate a redução de pontos percentuais das contribuições previdenciárias patronais, de acordo com contrapartidas de nível de empregabilidade do empregador, a revisão das contribuições a terceiros, como a contribuição ao Incra (todas elas, medidas de curtíssimo prazo e com data de encerramento com o fim da calamidade pública).

Mereceria atenção, ainda, um tratamento legislativo pontual para dotar de maior segurança créditos de PIS e Cofins sobre a aquisição de bens e serviços (materiais de combate à pandemia e de segurança, para se evitar zonas fronteiriças do que seria equipamento de proteção etc) e as repercussões sobre o IR e a CSL das doações efetuadas. É hora de não alimentar mais o contencioso (o que seria mais gasto com serviço público da atuação da Administração Tributária e do Poder Judiciário).

Não menos importante, a suspensão com prazo certo de diversas contribuições de intervenção no domínio econômico (Cide). Ora, em um momento em que a atuação federal prioritária é no combate à pandemia e seus efeitos econômicos, não faz o menor sentido a captação de recursos para outras finalidades de atuação (como inovação, desenvolvimento do cinema e outros). Há muito se reclama que os fundos criados para receber recursos dessas Cides não são utilizados para os seus desideratos originais, seja pela manutenção dos recursos nos fundos (por razões fiscais), seja pelo uso desvinculado dos objetivos originais. Nesse sentido, a suspensão do pagamento por poucos meses parece ser uma boa saída para se manter os recursos naqueles que também estão em uma frente de combate importante: as empresas que produzem e mantêm empregados.

Por fim, deve-se estudar instrumentos monetários de atuação fiscal do Banco Central. Há pouquíssimo consenso entre economistas sobre essa atuação e muita desinformação: basta ver como surgem críticas fáceis e despropositadas sobre expansão ou recomposição de base monetária (como se tratasse apenas de imprimir papel). O artigo 7º da EC 106 trata do tema, mas há muito a se estudar, seja quanto às possíveis técnicas de atuação fiscal (quantitative easing, uso de reservas internacionais, realocação contábil de dívida etc), seja pelos entraves jurídicos a essas políticas, seja por se tal atuação deve ser assim conduzida (aquisição pelo BC de títulos de duvidoso retorno). Não será nessa oportunidade que trataremos disso, mas aguardamos maiores reflexões por parte dos especialistas.

Certamente o momento nos desafia a sermos mais criativos, incisivos e cooperativos. Não podemos nos deixar guiar por vozes autoritárias e proprietárias das últimas verdades (duvidosas), pois, como bem lembrava Orestes Barbosa, na voz de Noel Rosa: “A verdade, meu amor, mora num poço./É Pilatos lá na Bíblia, quem nos diz./Que também faleceu por ter pescoço/O autor da guilhotina de Paris”.

Autores

  • é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • é pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); e especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários. Advogado.

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