Opinião

Fake news e democracia: entre o discurso do cidadão e a ação das máfias digitais

Autor

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

26 de junho de 2020, 15h04

A entrevista da professora da FGV-SP Classira Gross, publicada pela Folha de S. Paulo [1] em 20 de junho deste ano, provocou um interessante debate sobre liberdade de expressão aqui na ConJur. Os professores Lênio Streck e Marcelo Cattoni [2] contestaram os principais posicionamentos da professora sobre o inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal sobre fake news e ameaças às instituições, em especial quando ela diz que "a defesa de convicções que contrariam a tese de base do Estado democrático de Direito não viola por si só esse Estado democrático de Direito e o seu funcionamento". O professor Marcelo Galuppo [3] saiu em defesa da posição da professora, sustentando que não pode haver limite prévio a discurso por causa de seu conteúdo. Os autores responderam [4] dizendo que não se tratava de uma defesa de censura prévia, mas de responsabilidade do titular do discurso por seu conteúdo ofensivo.

Esse debate é essencial. Como os dois últimos artigos reconhecem, entre os quatro professores, há mais concordâncias do que discordâncias. Nenhum defende censurar previamente discursos. O debate que promovem gira em torno dos limites de ação do Estado na necessária reação ao problema da desinformação, que inclui a disseminação deliberada de notícias falsas com fins político-eleitorais.

É evidente que a desinformação faz parte do conjunto de problemas que alimentam a atual crise vivida pela democracia. Não se trata apenas de um problema brasileiro. Quando vivenciamos a campanha eleitoral de 2018, na qual a mentira difundida pela internet teve um papel central, alguns outros países já tinham sofrido com as campanhas deliberadas de desinformação. Estão aí incluídas democracias mais maduras, como é o caso dos Estados Unidos (eleições de 2016) e do Reino Unido (plebiscito do Brexit de 2016), e democracias em amadurecimento, como o Quênia (eleições de 2017)

Um dos grandes desafios das democracias constitucionais, na atualidade, é responder à seguinte questão: como combater a ameaça representada pelas campanhas de desinformação sem legitimar um poder de controle sobre a palavra que seja, ele próprio, uma nova ameaça? Precisamos pensar caminhos que não criem uma polícia da verdade e da mentira.

Antes da internet, já havia um debate nas democracias constitucionais sobre a repressão ou não ao chamado "discurso do ódio". Há diferentes regulações mundo afora. São especialmente estudadas, por contrastarem profundamente entre si, as formas de tratamento do discurso do ódio nos Estados Unidos, que o protege, via de regra, e na Alemanha, que o criminaliza. No Direito internacional, várias normas incluem o discurso do ódio entre os limites à liberdade de expressão, como é o caso da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (artigo IV), de 1965, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 20), de 1966, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 13.5), de 1969.

A internet deu ao problema uma outra dimensão. Além dos discursos ofensivos a grupos sociais específicos, que ficaram mais graves por causa da velocidade e do alcance de sua propagação, entrou no radar dos democratas a existência de campanhas deliberadas de manipulação do debate com o uso de notícias falsas.

Não é simplesmente uma discussão sobre o conteúdo mentiroso do discurso. A mentira faz parte da vida e, portanto, da política. Há diversos casos na história política de boatos que foram determinantes em processos eleitorais. O que se vê, agora, é mais grave: uma ação profissionalizada que utiliza a mentira disseminada na internet como instrumento para manipulação do debate público. Isso se faz no contexto de uma sociedade na qual há uma enorme disponibilidade de informações colhidas nas redes sociais sobre as preferências e os comportamentos dos cidadãos. O simples fato de existirem ataques massivos a partidos e candidatos, desinformando eleitores, já deslegitima os processos eleitorais. Mas, em muitos casos, os ataques são direcionados a destruir a legitimidade dos procedimentos democráticos e de instituições fundamentais para a democracia.

Muitas razões recomendam cautela quanto à repressão de quem compartilha notícias falsas. Pesquisas demonstram que o perfil do principal responsável pelo compartilhamento é o de um cidadão comum, com mais de 60 anos, com pouca atividade na internet, que compartilha conteúdos [5]. Todos nós podemos, diante de informações impactantes, irrefletidamente compartilhar mentiras. Notícias falsas têm, muitas vezes, forte apelo por darem aos que acreditam nelas a sensação de que sabem o que está "por trás da notícia", que descobriram o que "a mídia" ou "o sistema" tentou esconder. Para esse agente, mais do que repressão, é recomendável apostar em alfabetização digital e no incentivo ao surgimento de agências de checagem de notícias, que denunciam notícias falsas. Também é preciso discutir com empresas responsáveis por redes sociais o estabelecimento de políticas mais eficientes de controle da desinformação, além de exigir que sejam mais transparentes em suas políticas de sinalização ou retirada de conteúdos falsos e de suspensão ou banimento de usuários.

Por outro lado, é necessário dar um foco nas verdadeiras máfias digitais que estão por trás das campanhas de desinformação, que usam artifícios como, por exemplo, robôs para disseminar mentiras. Não são inocentes vovôs querendo parecer inteligentes e informados. Nesses casos, não se trata apenas de simples discursos, mas de ações deliberadas, voltadas, direta ou indiretamente, a destruir a democracia. São organizações criminosas buscando acesso ao poder por meios fraudulentos. Deve haver uma atenção permanente a esses grupos, que precisam ser identificados e monitorados. Os períodos eleitorais precisam ser especialmente protegidos, diante da limitação temporal que lhes marca.

Nesse contexto, o inquérito levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal pode ser um momento ímpar para provocar uma discussão na sociedade e fazer essa limpeza conceitual. A depender do caminho a ser tomado, ele pode, ao mesmo tempo, considerar seriamente a liberdade de expressão do cidadão, essencial à democracia, mesmo quando o conteúdo do discurso é falso ou incômodo, e reprimir as estruturas profissionais criadas para disseminar desinformação e, com isso, destruir reputações ou instituições. Mas, pode, também, por outro lado, transformar-se em um poderoso mecanismo de censura, perseguindo quem "ofende" o tribunal e legitimando futuras e mais perigosas perseguições políticas.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, professor do Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC) e pesquisador PQ 2-CNPq.

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