Ambiente jurídico

Monumentos nacionais como instrumentos de proteção do patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

20 de junho de 2020, 8h00

Spacca
No final do século XIX e início do século XX verifica-se, em âmbito mundial, o surgimento de iniciativas que buscavam institucionalizar a proteção oficial para os monumentos históricos. Oriundo, etimologicamente, do substantivo latino “monumentum”, fruto do verbo “monere”, seu significado está relacionado aos sentidos de “advertir”, “lembrar à memória”, vinculando-se a artefatos ou conjuntos de artefatos frutos da produção humana e que guardam uma função coletiva identificatória1.

Na Europa, em 1903 o historiador Alois Riegl produziu o pioneiro “Projet de législation des monuments historiques”, por encomenda do Estado austríaco, documento que guarda relevância no cenário mundial de proteção do patrimônio cultural.

Segundo Aline Montenegro Magalhães, as décadas de 20 e 30 do século XX foram as mais fecundas em projetos voltados para a preservação de monumentos históricos no Brasil. Intelectuais e políticos se batiam pela integridade de antigas edificações que estavam sendo varridas pelas transformações urbanas, ditadas pela modernidade estética e pelo progresso2.

No ano de 1933 Gustavo Barroso, Diretor do Museu Histórico Nacional, escrevia ao Ministro da Educação3:

Devo insistir na necessidade, que reconheço presente, de regular o Governo a defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do País. Enquanto não tivermos uma organização administrativa acauteladora daquele patrimônio, e em harmonia com uma legislação adequada, meios de prevenção contra os assaltos que constantemente sofrem os monumentos históricos do Brasil, mal protegidos pelos poderes locais dos Estados e municípios, continuaremos assistir a devastação da nossa riqueza tradicional.

Nesse cenário e dentro de um contexto histórico que buscava a afirmação da identidade nacional e a proteção dos bens mais representativos da cultura brasileira, em 12 de julho de 1933 adveio o Decreto Federal nº 22.928, primeira norma federal de proteção ao patrimônio cultural do país, que erigiu a cidade de ouro preto em monumento nacional, determinando que os monumentos ligados à História Pátria, bem como as obras de arte, que constituem o patrimônio histórico e artístico da Cidade de Ouro Preto, ficam entregues à vigilância e guarda do Governo do Estado de Minas Gerais e da Municipalidade de Ouro Preto, dentro da orbita governamental de cada um. Ainda segundo o ato, “os monumentos de arte religiosa, mediante acordos que forem firmados entre as autoridades eclesiásticas e o governo do Estado de Minas e a Municipalidade de Ouro Preto, poderão ser por estes mantidos em estado de conservação e assim incorporados ao patrimônio artístico e histórico do Monumento Nacional erigido pelo presente decreto”.

O advento de tal ato protetivo, segundo Clara Emília Sanches Monteiro de Barros Malhano, constituiu-se um esforço no sentido de construção imaginária de uma nação através do direito à perpetuidade e à preservação do patrimônio4.

Desta forma, evidencia-se que o primeiro instrumento brasileiro concebido para a proteção ao patrimônio cultural foi a instituição de Monumentos Nacionais, que antecedeu ao tombamento (regulamentado pelo o Decreto 25/1937), e se integrou na cultura jurídica nacional, posto que identificamos, na atualidade, a existência de 14 bens inseridos em tal categoria, sendo o mais recente instituído no ano de 1990, ou seja, sob a vigência da atual ordem constitucional.

A propósito, mostra-se evidente que tal forma de proteção foi integralmente recepcionada pelo art. 216, § 1º. da Constituição Federal de 1988, que estabelece: O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

De acordo com nossas pesquisas, desde 1933 foram declarados como Monumentos Nacionais Brasileiros 14 bens culturais, cuja tabela segue abaixo.

O pequeno número de bens protegidos por tal instituto evidencia uma alta seletividade na utilização do instrumento, que objetiva proteger somente monumentos que guardam indiscutível importância para a preservação de sítios de extremo destaque para a memória nacional.

 

Norma

Data

Ementa

1

DEC 99.058/1990

07/03/1990

DECLARA MONUMENTO NACIONAL O CEMITERIO DO BATALHAO, NO MUNICIPIO DE CAMPO MAIOR, ESTADO DO PIAUI.

2

LEI 7.745/1989

30/03/1989

ELEVA A CIDADE DE OEIRAS, NO ESTADO DO PIAUI, A CONDICAO DE MONUMENTO NACIONAL.

3

DEC 95.855/1988

21/03/1988

DECLARA MONUMENTO NACIONAL A SERRA DA BARRIGA, EM UNIAO DOS PALMARES, ESTADO DE ALAGOAS, E DA OUTRAS PROVIDENCIAS.

4

LEI 7.489/1986

11/06/1986

ERIGE EM MONUMENTO NACIONAL A CIDADE DE SAO CRISTOVAO, NO ESTADO DE SERGIPE.

5

LEI 6.863/1980

26/11/1980

ERIGE EM MONUMENTO NACIONAL A CIDADE DE OLINDA, ESTADO DE PERNAMBUCO.

6

DEC 72.107/1973

18/04/1973

CONVERTE EM MONUMENTO NACIONAL O MUNICIPIO DE PORTO SEGURO, NO ESTADO DA BAHIA, E DA OUTRAS PROVIDENCIAS.

7

DEC 68.045/1971

13/01/1971

CONVERTE EM MONUMENTO NACIONAL A CIDADE BAIANA DE CACHOEIRA E DÁ OUTRAS PROVIDENCIAS.

8

DEC 58.077/1966

24/03/1966

CONVERTE EM MONUMENTO NACIONAL O MUNICIPIO FLUMINENSE DE PARATI E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

9

LEI 3.645/1959

15/10/1959

INCORPORA AO PATRIMONIO DAS FORCAS ARMADAS, SOB A DIRECAO E ADMINISTRACAO DO MINISTERIO DA GUERRA, O MONUMENTO NACIONAL AOS MORTOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL.

10

LEI 2.035/1953

19/10/1953

ERIGE EM MONUMENTO NACIONAL O CONJUNTO ARQUITETONICO E URBANÍSTICO DE IGARASSÚ, NO ESTADO DE PERNAMBUCO.

11

DEC 26.077-A/1948

22/12/1948

ERIGE EM MONUMENTO NACIONAL A CIDADE DE ALCÂNTARA, NO ESTADO DO MARANHAO.

12

DEC 25.175/1948

03/07/1948

CONVERTE EM MONUMENTO NACIONAL O SANTUÁRIO DE NOSSA SENHORA DOS PRAZERES, SITUADO NOS MONTES GUARARAPES, NO ESTADO DE PERNAMBUCO.

13

DEL 7.713/1945

06/07/1945

ERIGE EM MONUMENTO NACIONAL A CIDADE DE MARIANA.

14

DEC 22.928/1933

 

12/07/1933

ERIGE A CIDADE DE OURO PRETO EM MONUMENTO NACIONAL

No ano de 1934, por meio do Decreto nº 24.735, de 14 de Julho, foi estabelecido o regime jurídico dos Monumentos Nacionais brasileiros, nos seguintes termos:

Art. 72. Os immoveis classificados como monumentos nacionaes não poderão ser demolidos, reformados ou transformados sem a permisão e fiscalização do Museu Historico Nacional.

Paragrapho unico. Independem de licença e fiscalização os trabalhos de conservação e concertos urgentes que não impliquem modificação essencial do predio.

O mesmo Decreto atribuiu ao Museu Histórico Nacional a função de “exercer a inspecção dos Monumentos Nacionaes e do commercio de objecto artísticos históricos”, bem como a organização de “um catalogo dos edificios de assignalado valor e interesse artistico-historico existentes no paiz, propondo ao Governo Federal os que se devam declarar em decreto Monumentos Nacionaes”.

A partir de então, o prévio consentimento da Administração se tornou efetivamente um requisito indispensável para reformas ou modificações de imóveis classificados como monumentos nacionais5.

Segundo levantamento jurisprudencial que realizamos, uma vez que a doutrina sobre o tema é árida, nos foi possível identificar as principais características quanto ao regime jurídico dos bens declarados como Monumentos Nacionais:

a ) Eles se submetem a um especial regime jurídico de proteção e tutela estatal. Seja a dominialidade pública ou privada, entendemos que os bens integrantes dos Monumentos Nacionais são considerados bens de interesse público no que tange ao gozo, gestão e fruição, o que limita o direito de propriedade nos termos do art. 1228, § 1º. do Código Civil.

Neste sentido:

Como o Município de Paraty é Monumento Nacional, sítio de excepcional valor artístico e paisagístico, sujeito a regime excepcional de proteção, como estabelece o Decreto n. 58.077/66, é completamente despropositada a afirmação de que a proteção excepcional simplesmente restrinja-se à fachada ou ao próprio prédio que funciona o Hospital da Santa Casa de Misericórdia, e que seria de livre construção o resto do terreno. Acolher a tese do Município implicaria em flagrante distorção e esvaziamento do Decreto n. 58.077/66. Às construções irregulares em terreno tombado, sem autorização do Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, aplica-se o preceito contido no artigo 17 do Decreto-Lei n. 25/37. (TRF 2ª R.; Ap-RN 2003.51.11.000333-0; Sétima Turma Especializada; Rel. Juiz Fed. Conv. Theophilo Miguel; Julg. 01/04/2009; DJU 19/06/2009; Pág. 290)

b) Os efeitos jurídicos decorrentes da declaração como Monumento Nacional são símiles ao do tombamento, não havendo espaço para atividades que alterem a estrutura dos bens protegidos sem prévia autorização do IPHAN6.

Neste sentido:

Incumbe ao proprietário ou possuidor a conservação dos imóveis que fazem parte integrante do conjunto arquitetônico e paisagístico do Município de Ouro Preto/MG, erigido a Monumento Nacional pelo Decreto nº 22. 928, de 12.06. 33 e inscrita pela UNESCO na lista do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural em 21.09. 80, sendo que qualquer obra, reparo ou restauração não pode ser promovida sem a prévia autorização do IPHAN, sob pena de demolição da obra iniciada irregularmente. (TJMG; AC 1.0461.03.010617-7/001; Ouro Preto; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Eduardo Guimarães Andrade; Julg. 30/01/2007; DJMG 06/02/2007).

c) Não se admite a destruição, degradação ou mutilação dos bens integrantes dos Monumentos Nacionais, sendo vedado ao poder público conceder autorizações para tais atividades.

Com efeito, a destruição, demolição ou mutilação de bens declarados Monumentos Nacionais encontra óbice intransponível no ordenamento jurídico brasileiro, de sorte que nem mesmo os órgãos de proteção podem autorizar tais atos, sob pena de cometimento de ilícito civil, criminal e passível de sanção pela lei de improbidade administrativa (art. 11, I, Lei 8.429/92).

O Supremo Tribunal Federal já assentou que: A conservação dos monumentos históricos e objetos artísticos visa um interesse de educação e de cultura; a proibição legal de os mutilar, destruir ou desfigurar está implícita nessa preservação; a obrigação de conservar, que daí resulta para o proprietário, se traduz no dever de colaborar na realização desse interesse público.7

A propósito, o mestre constitucionalista José Afonso da Silva nos ensina que a tutela dos bens identificados como de valor cultural tem por objetivo fundamental defende-los de ataques, tais como a degradação, o abandono, a destruição total ou parcial, o uso indiscriminado e a utilização para fins desviados, que envilecem o patrimônio, desnaturando seus objetivos. Assim, não se concebe que um bem integrante de um Monumento Nacional possa ser degradado, mutilado ou destruído em razão de interesses particulares ou por incúria do poder público8.

Nesse sentido, há importante precedente do TRF da 5ª Região, datado de 1998, relatado pelo futuro Ministro do STJ, Castro Meira, versando sobre a vedação de danos aos logradouros públicos da cidade de São Cristóvão, em Sergipe, erigida em Monumento Nacional pela Lei nº 7.489/1986, que foi assim ementado:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO – As cidades tombadas como “Monumento Histórico” têm sob proteção do Poder Público, não somente os seus templos e edifícios, mas também tudo aquilo que diga respeito à paisagem natural, como morros, rios, lagos e bosques, etc., seja a paisagem artificial, como é o caso de postes de iluminação, calçadas e pavimentos de logradouros públicos. O órgão da Administração que danifica o conjunto arquitetônico ou sua paisagem está obrigado a repô-lo no estado original, e, a autoridade administrativa que ordenou o dano, está obrigada a indenizá-lo nos termos do art.17, parágrafo único do decreto-lei n.º25/37. Apelação e remessa oficial, tida como interposta, providas. (TRF. 5ª. R. –AC 106.419 – (96.05.27061 – 7) – SE – 1ª T. – Rel. Juiz Castro Meira – DJU 28.12.1998 – p.53).

d) Ao contrário do que ocorre com o tombamento clássico, cuja averbação junto à matrícula do imóvel objeto de proteção é prevista no DL 25/37, quanto aos Monumentos Nacionais tal formalidade não se faz necessária.

Neste sentido:

O tombamento em referência foi objeto de Decreto do Presidente da República nº 68.045, de 13 de janeiro de 1971, cujo art. 1º dispôs: Fica erigida em Monumento Nacional a cidade de Cachoeira, Estado da Bahia, cuja área urbana, sítio da antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário, e lugares históricos adjacentes serão inscritos nos Livros do Tombo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tratou-se de uma medida genérica, para toda a área urbana e lugares históricos adjacentes. Não se cuidou de tombamento de imóveis específicos, "bens de propriedade particular" (art. 13 do Decreto-Lei nº 25/37). Em tais circunstâncias, a medida de tombamento ajusta-se à figura da limitação administrativa genérica, caso em que não é razoável exigir-se transcrição ou averbação em cada registro de imóvel atingido. (Apelação Cível nº 2000.01.00.029307-5/BA, 5ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. João Batista Moreira. j. 05.08.2009, unânime, DJe 21.08.2009)

e) Quanto ao aspecto criminal, lesões aos bens declarados Monumentos Nacionais configurarão, conforme o caso, incidência das sanções penais previstas nos artigos 62 ou 63 da Lei 9.605/98. A lei ou decreto que instituem o Monumento Nacional submetem o bem a especial regime de proteção, qualificando-o como objeto material dos tipos penais previstos nos artigos acima referidos.

Ainda sob a vigência do art. 166 do Código Penal (hoje revogado pelo art. 63 da Lei 9605/98), manifestou-se a jurisprudência: “Alteração do local, especialmente protegido por Lei, conjunto paisagístico convertido em Monumento Nacional, além de objeto de tombamento pelo orgão público especializado. Comprovação induvidosa de alteração do conjunto urbanístico, ao lado da presença do elemento subjetivo do tipo, o dolo, traduzido na vontade livre e consciente do ato. Confirmação da sentença de condenação” (TRF 1ª R.; ACR 01124953; BA; Quarta Turma; Rel. Juiz Leite Soares; Julg. 18/10/1993; DJU 22/11/1993; Pág. 50144).

Já na vigência da Lei 9.605/98, entendeu o TRF da 1ª Região caracterizar crime a demolição, sem autorização do instituto do patrimônio histórico e arquitetônico nacional IPHAN, promovida em imóvel integrante do conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Cachoeira/BA, erigida em monumento nacional pelo Decreto nº 68.045, de 13/01/1971 (TRF 1ª R.; ACr 0012772-43.2008.4.01.3300; BA; Terceira Turma; Rel. Juiz Fed. Conv. Alexandre Buck Medrado Sampaio; DJF1 23/08/2013; Pág. 412).

Ante tais considerações, a instituição de Monumentos Nacionais insere-se no conceito das “outras formas de acautelamento e preservação” a que se refere o art. 216, § 1º. da CF/88, representando ferramenta de singular importância para a defesa de nosso patrimônio cultural.

1 CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão. Antologia para um combate. Belo Horizonte. Fino Traço. 2011. p.11-12.

2 Colecionando relíquias… Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934 – 1937). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro . 2004 . p. 67.

3 BARROSO, Gustavo. Relatório sobre as atividades do Museu Histórico Nacional, emitido para o Ministro da Educação e Saúde, 1933, p. 2. In: BRASIL, Museu Histórico Nacional, Setor de Apoio Administrativo. Catálogo Geral, AS/DG.

4 Da materialização à legitimação do passado: a monumentalidade como metáfora do Estado – 1920-1945. Rio de Janeiro: Lucerna – FAPERJ. 2002. p. 56.

5 ZANDONADE, Adriana. O tombamento à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2012.p. 35.

6 Conforme já se decidiu: “ a União é a responsável pela fiscalização do patrimônio público consubstanciado na condição de Monumento Nacional que ostenta o Município de Oeiras/PI.. (TRF 1ª R.; AG 01244417; PI; Terceira Turma; Rel. Juiz Cândido Ribeiro; Julg. 27/05/1997; DJU 19/09/1997; Pág. 76012)

7 STF – Aciv. 7377 – RT 524, p. 785-811.

8 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo. Ed. Malheiros. 2001. p. 155.

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