Opinião

O modelo processual cooperativo e os deveres das partes e seus advogados

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31 de julho de 2020, 12h15

Muito se debate na doutrina pátria acerca das normas fundamentais do processo, as quais estão previstas nos artigos 1º a 12 do Código de Processo Civil. Isso porque, embora as previsões não sejam necessariamente novas no ordenamento jurídico brasileiro, é certo que a inclusão de princípios constitucionais nos primeiros dispositivos do referido código e a mudança de ênfase dada pelo legislador demonstram a necessidade de alterar a sua compreensão.

Para os fins deste artigo, dar-se-á especial destaque aos princípios da boa-fé (artigo 5º, CPC) e da cooperação (artigo 6º, CPC).

Inicialmente, no que tange ao princípio da boa-fé, o diploma processual prevê, na mesma esteira do Código Civil, um standard de comportamento que deve ser observado pelas partes, pelos advogados e defensores públicos, pelos representantes do Ministério Público, pelo Estado-juiz e pelos auxiliares da Justiça.

Além da previsão relativa ao princípio da boa-fé, o Código de Processo Civil consagra regras de proteção à boa-fé, entre as quais se destacam as normas sobre litigância de má-fé [1]. Como explica Zulmar Duarte [2], lembrando os ensinamentos de Piero Calamandrei, tal como em um jogo, o árbitro pode aplicar faltas e cartões aos jogadores que se comportam de forma contrária às regras, a legislação prevê o equivalente às faltas e cartões (amarelos e vermelhos) para combater a má-fé processual e permitir que o processo se desenvolva lealmente.

O princípio da boa-fé processual, ainda, em conjunto com os princípios da primazia da decisão de mérito e do respeito ao autorregramento da vontade no processo, serve de base para o surgimento do princípio da cooperação [3], o qual é responsável por definir a forma de estruturação do Processo Civil brasileiro.

Ao positivar o princípio da cooperação em seu artigo 6º, o Código de Processo Civil consagra o modelo cooperativo de processo; distinto dos modelos adversarial e inquisitorial, tradicionalmente reconhecidos pela doutrina.

No tocante ao modelo cooperativo, conforme explicado por Fredie Didier Jr. [4], há o redimensionamento do princípio do contraditório, o qual deixa de ser visto como uma mera regra formal e passa a ser valorizado como "instrumento indispensável ao aprimoramento da decisão judicial". No mais, em relação à participação das partes e à atuação do Estado-juiz, há o equilíbrio das posições de tais sujeitos na divisão de tarefas processuais e a prevalência do diálogo, sem destaques ou assimetrias na condução do processo.

Como consequência do princípio da cooperação, há determinados comportamentos que são exigidos aos sujeitos processuais para que se garanta um processo leal e cooperativo. De modo a sistematizar e facilitar a compreensão do conteúdo dogmático do princípio, Fredie Didier Jr. [5] divide os deveres de cooperação em: I) deveres de esclarecimento; II) deveres de lealdade; e III) deveres de proteção.

Quando relativos às partes, os aludidos deveres assim devem ser entendidos: I) deveres de esclarecimento: os demandantes devem redigir a demanda com clareza e coerência, sob pena de inépcia; II) deveres de lealdade: impõem a necessidade de observância do princípio da boa-fé processual e estabelecem que as partes não podem litigar de má-fé; e III) deveres de proteção: as partes não podem causar danos à parte adversa.

Pois bem. Realizadas as considerações sobre as normas fundamentais do Processo Civil, indispensáveis ao propósito deste artigo, questiona-se: a necessária observância dos deveres de boa-fé processual e cooperação seria incompatível com os diferentes interesses das partes e com o dever de o advogado contribuir na obtenção de decisão favorável ao seu cliente [6]?

A princípio, a convergência entre tais deveres pode parecer irreal, especialmente quando se pensa na possibilidade de as partes e seus advogados, com interesses opostos, cooperarem entre si. Respeitadas as opiniões diversas [7], contudo, a resposta para o questionamento deve ser negativa, reconhecendo-se a possibilidade de compatibilizar os interesses das partes com o fortalecimento da visão cooperativa do processo.

Importante esclarecer que respeitar o modelo cooperativo não implica beneficiar a parte contrária, mas agir de forma leal, inspirada na boa-fé, e cumprir o dever de veracidade, para que se garanta a efetividade pretendida pela legislação e a consecução dos fins da jurisdição. Não se trata, portanto, de fornecer à parte contrária os mecanismos para vencer o processo, mas colocar à disposição do Estado-juiz todos os dados necessários a um julgamento justo.

A título exemplificativo, no modelo atual, não é admissível que a parte junte um grande volume de documentos (document dump), misturando documentos relevantes e irrelevantes, fazendo vagas referências a eles, com o intuito de inviabilizar ou dificultar a resistência da parte contrária [8]. Embora a parte tenha direito à produção de prova documental, deve-se respeitar a boa-fé objetiva, de modo que se observa a existência de um verdadeiro ônus atrelado à admissibilidade da prova: a parte interessada deve fazer a correlação de cada documento acostado com os fatos controvertidos [9].

Igualmente, em um contexto como tal, a utilização de petições excessivamente longas, especialmente em processos considerados de menor complexidade, pode ser encarada como abuso de direito processual.

Em recente decisão [10], o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, criticou a interposição de recurso redigido em 427 folhas e a "enxurrada de alegações confusas e impertinentes ao julgamento", especialmente considerando que há tese firmada em recurso repetitivo sobre o tema discutido nos autos. Na oportunidade, citando o artigo 77, inciso III, do Código de Processo Civil, o ministro ressaltou que é dever as partes e de seus procuradores "não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito".

Importante ressaltar que, embora abusos existam e devam ser combatidos, tais casos pontuais não podem servir de salvo-conduto para que o Poder Judiciário interfira na atividade do advogado e limite o número de páginas das peças produzidas nos processos [11].

A elaboração de petições enxutas e coesas deve ser uma preocupação dos advogados e de seus representados, não sendo correto (e até mesmo constitucional) que as partes sejam compelidas a apresentar petições com limitação prévia de tamanho.

Mais um traço do modelo cooperativo é a previsão referente ao dever de veracidade. O Código de Processo Civil prevê que é dever das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo "expor os fatos em juízo conforme a verdade" (artigo 77, inciso I, CPC) e, como desdobramento, considera litigante de má-fé aquele que "alterar a verdade dos fatos" (artigo 80, inciso II, CPC). Não se ignora, nesse contexto, que as partes expõem os fatos de forma parcial no processo, até porque é natural que pessoas possuam visões distintas sobre uma mesma situação. O que se busca garantir com tais previsões é que não haja deturpação objetiva e intencional da realidade [12]

O dever de veracidade não deve ser entendido como a obrigação de fornecer à parte contrária elementos que possam contrariar seus próprios interesses, mas de não alterar a verdade ou se omitir dolosamente sobre fatos que deveriam ser informados no processo [13].

Relevante frisar, mais uma vez, que o cumprimento dos deveres relacionados ao modelo cooperativo serve para que a demanda judicial tenha um resultado mais rápido e efetivo, o que é benéfico para todos os sujeitos processuais.

Diante do exposto, vê-se que os deveres decorrentes do modelo processual cooperativo são compatíveis com a existência de interesses opostos entre as partes, devem ser respeitados e, mais do que isso, devem ter sua importância reconhecida pelos sujeitos do processo, de modo que, assim, seja possível garantir a consecução dos fins da jurisdição, com o fortalecimento do contraditório, a consagração do devido processo legal e a legitimação do precedente jurisprudencial dele resultante [14].

 


[1] Cf. DIDIER JR., Fredie. "Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento". 22. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 139-140.

[2] Cf. Comentários de Zulmar Duarte ao artigo 5º do Código de Processo Civil, item nº 3, in GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcellos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte. "Teoria Geral do Processo – comentários ao CPC 2015, parte geral". São Paulo: Forense, 2015.

[3] Cf. DIDIER JR, Fredie. "Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento". 22. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 160.

[4] Cf. DIDIER JR., Fredie. "Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento". 22. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 156.

[5] Cf. DIDIER JR, Fredie. "Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento". 22. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 163.

[6] Nos termos do artigo 2º, § 2º, da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), "(no) processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público".

[7] Daniel Mitidiero, ao tratar do tema, defende que "a colaboração no processo não implica colaboração entre as partes. As partes não querem colaborar. A colaboração no processo que é devida no Estado Constitucional é a colaboração do juiz para com as partes. Gize-se: não se trata de colaboração entre as partes. As partes não colaboram e não devem colaborar entre si simplesmente porque obedecem a diferentes interesses no que tange à sorte do litígio. E é justamente a partir daí que surge observação de fundamental importância que deve ser feita em relação ao texto do artigo 6º do novo Código. A colaboração não implica de modo algum cooperação entre 'todos os sujeitos do processo'. Como é evidente, as partes não querem e não devem colaborar entre si. Não há dever de colaboração entre as partes. Portanto, a colaboração não deve ser vista como fonte de deveres recíprocos entre as partes e nem como um incentivo ao juiz para impor sanções às partes por falta de cooperação recíproca". In Princípio da colaboração. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/206/edicao-1/principio-da-colaboracao>. Acesso em 29/7/2020.

[8] Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. Prova documental volumosa: perplexidades geradas pelo document dump. Out/2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-out-20/flavio-yarshell-perplexidades-geradas-document-dump>. Acesso em 29/7/2020.

[9] Cf. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. "Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada, Processo Estrutural e Tutela Provisória". 15. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 280-281.

[10] Superior Tribunal de Justiça, decisão monocrática proferida no Recurso Especial nº 1.871.065 – SP (2020/0089913-4), publicada em 13 de maio de 2020, e noticiada no site Migalhas (Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/326571/ministro-salomao-critica-recurso-de-427-folhas-sobre-materia-pacificada-inutil-e-desnecessario?U=2738CFEB3D1C&utm_source=informativo&utm_medium=1038&utm_campaign=1038>. Acesso em 29/7/2020.).

[11] Em caso noticiado na imprensa, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina determinou que um advogado emendasse a petição inicial de modo a reduzir a peça de 40 para, no máximo, dez laudas. O fato foi criticado por diversos juristas, por se tratar de interferência indevida na atividade do advogado. Sobre o tema: "Juiz não pode limitar número de páginas de petição, afirmam especialistas". Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jun-30/juiz-nao-limitar-tamanho-peticao-afirmam-especialistas>. Acesso em 29/7/2020.

[12] Cf. GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcellos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte. "Teoria Geral do Processo – comentários ao CPC 2015, parte geral". São Paulo: Forense, 2015.

[13] Segundo José Carlos Barbosa Moreira, "(o) litigante não deve apenas abster-se de fazer alegações cientemente falsas, mas também de silenciar sobre pontos que o juiz precisa conhecer para bem julgar". "Comentários ao Código de Processo Civil", 1981, apud BATISTA, Nilo. Estelionato Judiciário. Revista dos Tribunais, vol. 638/1988, p. 255-259, Dez/1988, DTR1988221.

[14] Cf. MEDEIROS NETO, Elias Marques; MACHADO, Pedro Antonio de Oliveira. Princípio da Cooperação no Processo Civil. Revista Thesis Juris, v. 5, n. 1, 2016. Disponível em: <http://www.revistartj.org.br/ojs/index.php/rtj/article/view/293/pdf_1>. Acesso em 29.07.2020. 

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