Limite Penal

A recomendação de uma instituição normativa serve para quê?

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  • é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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31 de julho de 2020, 8h00

O último artigo de Janaina Matida para esta coluna deu o que falar. A reação de muitos operadores do direito não surpreendeu, pois o tema é mesmo complexo e moralmente sensível. No contexto da pandemia da Covid-19, qualquer discussão sobre saúde pública e controle punitivo é um convite à polarização.

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O argumento central de Matida afirma que a Recomendação n. 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — que recomenda a adoção de medidas preventivas à propagação da Covid-19 nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos — deveria causar um constrangimento normativo no raciocínio dos magistrados. Logo, conclui, "erra o juiz que não a observa".

Críticas ao argumento de Matida foram formuladas em redes sociais fechadas das quais participamos. Resumidamente, elas se sustentam em duas alegações: que uma recomendação do CNJ não estabelece obrigatoriedade legal, pois não vincula a decisão do magistrado; e que o conteúdo da resolução em questão contraria orientações médicas proferidas por outros órgãos especializados. Gostaria de fazer alguns esclarecimentos sobre essas duas críticas à luz da teoria do direito e da teoria da decisão judicial.

Inicialmente, vale recorrer à lição primeira de Norberto Bobbio: conselhos fazem parte do mundo normativo. Conselhos ou recomendações — termos intercambiáveis — são prescrições que possuem a mesma função de comandos: direcionar o comportamento humano[1]. Uma recomendação do CNJ, portanto, não é categoricamente distinta de um comando do Código Penal. Ambos possuem a mesma natureza jurídica — constituem-se como fontes do direito.

Mas também é preciso reconhecer que os conselhos não são tão eficazes como os comandos. A diferença entre eles é de grau. Conselhos não vinculam; logo, podem ser mais facilmente derrotados do que comandos. Quando comparados com os comandos de uma lei, a força prescritiva que os conselhos exercem sobre o comportamento humano tende a ser mais fraca.

Mas Bobbio acrescenta duas outras características que distinguem os conselhos (e que merecem ser repensadas aqui). A primeira é a ideia de que a aceitação de um conselho depende mais do conteúdo do que foi aconselhado do que da autoridade ou órgão que o emitiu. Um conselho deve ser seguido quando o seu destinatário se convence da racionalidade do que é aconselhado.

Ou seja, para Bobbio, o mérito de um conselho não deve ser irrelevante – ao contrário do que ocorre com o mérito de uma regra prevista no código ou de um precedente judicial vinculante. Em face do sistema jurídico brasileiro, não devo absolver um réu por tráfico de quantidade significativa de drogas ainda que eu discorde de uma política pública que criminaliza o comércio de entorpecentes; do mesmo modo que não devo condenar uma ré que interrompeu a gravidez de um feto diagnosticado com anencefalia ainda que eu seja contrária a uma política pública favorável ao aborto.

Daí a segunda característica dos conselhos: a alocação da responsabilidade por erro na aplicação da respectiva prescrição. Exceto em casos de extrema injustiça, quem segue uma prescrição obrigatória — um comando previsto no Código Penal, por exemplo — não pode ser depois responsabilizado pelas consequências ruins de sua aplicação. O mesmo não se pode dizer em relação àquele que (não) segue um conselho. É justamente porque não há obrigatoriedade, por se tratar de um ato de vontade da parte do destinatário, que aquele que decide seguir ou ignorar um conselho não se exime de críticas.

Os dois elementos acima — a importância de se considerar o mérito de um conselho e as críticas que o seu destinatário pode sofrer pelos erros de sua aplicação (ou não) — parecem impor um ônus argumentativo muito grande aos magistrados. Nessa interpretação, o magistrado que se preocupa com a qualidade argumentativa de suas decisões não pode se eximir de enfrentar o conteúdo de uma prescrição de um órgão investido com autoridade normativa (ainda que inferior ou secundária). E mais: a orientação de Bobbio não faz distinção. O ônus argumentativo que resulta da consideração do mérito de um conselho deve ser sentido pelos magistrados que atuam nas duas direções — tanto por aqueles que o aplicam, como por aqueles que o desconsideram.

De fato, pode parecer apropriado discutir o mérito de um conselho ou recomendação, sobretudo no atual contexto político. Os acontecimentos recentes nos fazem pensar que não é muito razoável adotar uma postura de deferência cega às prescrições das nossas autoridades[2]. Mas a questão deve ser vista por um ângulo mais institucional: será que a mera existência de uma prescrição normativa vigente no ordenamento jurídico brasileiro — ainda que não seja vinculante — não deveria pesar na balança da discricionariedade judicial? Do contrário, a recomendação de uma instituição normativa serviria exatamente para quê?

Como lembra Bobbio, citando Thomas Hobbes, "um conselho é dado no interesse de quem se aconselha"[3]. Ora, é do interesse dos próprios magistrados a indicação das medidas adequadas para a redução dos riscos de contaminação da Covid-19 no sistema carcerário brasileiro. Ou seria melhor deixar o julgamento sobre decretações de prisões preventivas ou concessões de habeas corpus a critério de cada um? A resposta a esta questão deve passar por uma discussão crítica, de caráter político-moral, acerca da adoção de um modelo de decisão particularista no contexto da justiça criminal. Segundo este modelo, prescrições normativas funcionariam como sugestões; e o magistrado atuaria como uma espécie de alfaiate, ajustando a linguagem do texto normativo às sensibilidades do caso concreto[4]. Um modelo particularista não faz muito sentido para quem se preocupa com abusos e erros cognitivos.

Em minha opinião, a Recomendação n. 62 do CNJ não dificultou, mas facilitou o trabalho de magistrados que atuam em diferentes instâncias do Poder Judiciário. A autoridade normativa especificou diferentes medidas, para uma variedade de situações e em relação a diversas categorias ou grupos de pessoas. Supor que a solução deva ser dada segundo as particularidades de cada caso confere aos magistrados uma responsabilidade alta e cognitivamente exigente. Magistrados de diversas instâncias do Poder Judiciário foram assim beneficiados: aqueles que apuram atos infracionais nas Varas da Infância e da Juventude; que atuam na fase de conhecimento criminal, ordenando ou reavaliando prisões provisórias; que possuem competência sobre a execução penal, decidindo sobre o cumprimento de pena em regime aberto; que decidem sobre a prisão por dívida alimentícia etc.    

Para usar a terminologia que Fábio Shecaira e Noel Struchiner tomam emprestada de Neil MacCormick, as razões que os magistrados têm para seguir a Recomendação n. 62 do CNJ são razões institucionais[5]. O magistrado que argumenta institucionalmente opta por apelar a regras e procedimentos previamente estabelecidos em vez de razões substantivas (i.e., considerações de ordem política, econômica, moral etc.). A argumentação institucional “é mais burocrática, engessada e — alguns diriam — artificial". E assim continuam: "Quem argumenta institucionalmente não está preocupado em defender aquilo que parece mais justo, mais democrático ou mais eficiente no caso em questão"[6].

É fraco o argumento judicial que nega a aplicação da Recomendação n. 62 do CNJ a partir da premissa formal de que ela não vincula. Afinal, nem toda fonte do direito é vinculante. Uma recomendação é uma fonte do direito não-vinculante que, apesar disto, oferece razões institucionais para a decisão. Tais razões podem ser derrotadas, é claro, mas isto requer um esforço argumentativo comparativamente maior. Conselhos são como comandos; eles apenas diferem quanto à capacidade de serem derrotados por razões substantivas.

E aqui fica a lição realista de Frederick Schauer: o modo como o pronunciamento de uma autoridade é utilizado pelo tomador de decisão é o que determina o tipo de autoridade — se mandatória ou opcional[7]. Quem de fato torna o pronunciamento do CNJ facultativo e sujeito a questionamentos de mérito são os próprios magistrados que reiteradamente optam por não levar a letra do seu pronunciamento a sério. Portanto, mesmo que um conselho não seja obrigatório, ele funcionará como tal quando os seus destinatários o levarem a sério. A lição de Schauer corrobora a preocupação de Matida com a seletividade do raciocínio judicial.

Levando adiante essas considerações, fica claro que aquele que segue a recomendação de uma autoridade normativa, seja ela vinculante ou não, sem considerar o mérito do que lhe é aconselhado, parece comprometer-se com a ideia de que há boas razões para confiar naquela autoridade. É possível supor muitas razões (boas e ruins) para que um magistrado seja deferente à autoridade; mas uma delas é bastante comum e plausível: o julgador opta por deferir à autoridade porque acredita que ele próprio não decidiria melhor.

No presente caso, parece razoável a decisão do magistrado que defere à Recomendação n. 62 do CNJ porque acredita que o órgão está em melhor posição do que ele próprio para se pronunciar sobre os riscos epidemiológicos de transmissão da Covid-19 nos presídios do país. Afinal de contas, como Matida lembrou, existe no CNJ um Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativa, que desenvolve pesquisas e estratégias de ação neste campo.

Mas na prática não é o que tem acontecido. Como mencionado no início, uma segunda crítica ao texto de Matida sustenta que o conteúdo da Recomendação nº 62 do CNJ contraria orientações médicas proferidas por outros órgãos especializados. Este é um argumento mais sofisticado, pois não ataca a natureza jurídica da Recomendação, mas o seu mérito.

E aqui surge um novo desafio: como podem magistrados cientificamente leigos acessar o fundamento empírico de natureza técnico-científica de prescrições normativas? Rejeitar a Recomendação do CNJ em razão de sua baixa confiabilidade epistêmica implicaria acessar as diversas considerações sobre os riscos epidemiológicos que a embasaram. Esta não é uma tarefa fácil. Para Matida, tanto o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro (reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal) como o rápido avanço da Covid-19 no país (noticiado todos os dias) são fatos notórios, independem de prova.

O questionamento do mérito da Recomendação n. 62 do CNJ tem sido feito com base no Parecer Técnico elaborado pelo Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Covid-19 do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), que diz: "A manutenção dos custodiados em ambiente prisional, principalmente daqueles que pertencem ao grupo de risco, é a medida que se apresenta mais segura no atual contexto […]". De fato, há clara contradição entre as duas recomendações. Estamos diante do conhecido problema "leigo/2-experts": o tomador de decisão cientificamente leigo não está em posição de julgar com base em sua própria opinião um desacordo entre experts[8].

A discussão sobre critérios de expertise tem sido objeto de um amplo debate judicial e filosófico[9]. Segundo os estudos de Elizabeth Anderson, a confiança na autoridade diminui se a autoridade revela algum conflito de interesse; se cometeu atos que indicam falta de integridade acadêmica (como fabricação ou ocultamento de informações); se suas opiniões não podem ser corroboradas pelos próprios pares etc. Anderson soma a essas condições a necessidade de se verificar o "consenso científico", o qual poderia ser aferido recorrendo a estudos de meta-análises da literatura científica publicada em periódicos arbitrados ou declarações emitidas por entidades científicas[10].

A partir deste quadro e depois de gastar muita tinta, termino levantando algumas questões para reflexão:

  1. O Parecer Técnico do Cremers é consistente com as orientações do documento “Preparação, Prevenção e Controle do COVID-19 nas Prisões e Outros Locais de Detenção”, elaborado pela Organização Mundial da Saúde?
  2. Será que a posterior Nota de Esclarecimento do Cremers, que pondera que o Conselho “não avaliou as condições do Sistema Prisional do Rio Grande do Sul”, deveria contribuir para diminuir a confiabilidade epistêmica do referido Parecer Técnico?
  3. O que dizem as pesquisas científicas publicadas em periódicos indexados, como o artigo “Flattening the Curve for Incarcerated Populations – Covid-19 in Jails and Prisons”, publicado no bem-conceituado The New England Journal of Medicine?
  4. Como especialistas nas áreas de saúde pública e sistema de justiça criminal têm reagido ao Parecer Técnico do Cremers?

Como nos ensinou Chico Buarque, "Ouça um bom conselho que lhe dou de graça"[11].


[1] Bobbio, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. São Paulo: Edipro, 2001, pp. 95-102.

[2] Utilizo o termo “deferência” no sentido de respeito ou acatamento. O fenômeno da deferência é muito estudado na teoria do direito quando se discute o conceito de obrigação jurídica; mas tem sido importante também para iluminar outras práticas e relações sociais para além do contexto jurídico.  

[3] Bobbio, op.cit., p. 97-98.

[4] A comparação entre o magistrado e o alfaiate aparece em Struchiner, Noel. Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade (contingente) do formalismo jurídico. In Sarmento, Daniel (org.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[5] Shecaira, Fábio; Struchiner, Noel. Teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Contraponto, 2016, especialmente capítulo 2; MacCormick, Neil. Argumentation and Interpretation in Law. Ratio Juris, 6, 1993.

[6] Shecaira; Struchiner, op.cit., p. 36.

[7] Schauer, Frederick. Thinking Like a Lawyer. Cambridge: Harvard University Press, 2009, capítulo 4.

[8] Goldman, Alvin. Experts: Which Ones Should You Trust? Philosophy and Phenomenological Research, Vol. LXIII, No. 1, July 2001; Lane, Melissa. When the experts are uncertain: scientific knowledge and the ethics of democratic judgment. Episteme, 11.1: 97–118, 2014.

[9] Na prática judicial comparada, o leading case é o caso Daubert v. Merell Dow Pharmaceuticals, julgado em 1993 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. V. Haack, Susan. “The Expert Witness: Lessons from the U.S. Experience”. In Humana.Mente Journal of Philosophical Studies, vol. 28, pp. 39-70.

[10] Sobre o papel do consenso científico como critério para a avaliação de políticas publicas baseadas em evidencia, ver Herdy, Rachel. STF precisa definir melhor o que entende por “consenso científico”. Revista Questão de Ciência. Disponível em:

https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/05/30/stf-precisa-definir-melhor-o-que-entende-por-consenso-cientifico

[11] Trecho da música “Bom Conselho”, de Chico Buarque (1972). Agradeço ao Fábio Shecaira, pelos bons e gratuitos conselhos; e à paciência e leitura atenta da Janaina Matida, a quem devo esta inspiração.

Autores

  • é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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