Opinião

Lei nº 14.019/20: máscaras, vetos e matabilidade de vulneráveis

Autores

  • André Nicolitt

    é juiz de Direito e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).

  • Charlene da Silva Borges

    é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • Lívia Sant'Anna Vaz

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • Saulo Mattos

    é promotor de Justiça do MP-BA mestre pela UFBA mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha) professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

27 de julho de 2020, 9h14

O Congresso Nacional produziu legislação que, na esteira das recomendações seguidas por todo o mundo, impõe obrigatoriedade de uso de máscaras em determinados ambientes. O presidente da República, ouvidos os Ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Saúde e a AGU, vetou inúmeros dispositivos da Lei nº 14.019/20. Cuidaremos aqui dos dispositivos atinentes à chamada população vulnerável.

O termo "veto" possui raiz latina, vetare, que indica proibir [1]. É possível identificar recursos político-jurídicos análogos, isto é, que impedem a entrada em vigor de uma disposição já aprovada em outra instância, em épocas anteriores à ascensão do Império Romano. Por exemplo, em Esparta, o Senado oligárquico tinha o poder de suspender permanentemente a validade de decisões do rei e da assembleia, como uma forma de incentivar sua moderação [2].

No Brasil, o poder de veto esteve presente em todas as regulamentações constitucionais, de 1824 a 1988 [3]. O instituto do veto presidencial integra o processo legislativo e pode ser definido como instrumento concedido ao presidente da República para recusar a sanção de um projeto de lei, no todo ou em parte, em virtude de inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público [4].

No caso em exame, o primeiro dispositivo vetado foi o inciso III do artigo 3º-A da Lei nº 13.979/2020, alterado pelo artigo 3º da Lei nº 14.019/2020, verbis: "III estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas".

As razões do veto, pasmem, decorreram da expressão "demais locais fechados em que haja reunião de pessoas", que, por ser "abrangente", poderia dar azo à violação de domicílio, o que é vedado pelo artigo 5º, XI, da CRF/88.

Em seguida, vetou-se a inserção dos §§§3º, 4º e 5º do artigo 3º-A à Lei nº 13.979/2020, através dos quais há: 1) o estabelecimento da obrigatoriedade de o poder público fornecer máscara às populações vulneráveis, via farmácia popular e demais serviços de assistência social; 2) a definição de vulneráveis economicamente, como as pessoas em situação de rua, os beneficiados com o auxílio emergencial previsto no artigo 2º da Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, além dos que fazem jus aos benefícios estabelecidos no artigo 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e na Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004; e 3) a orientação para se priorizar a aquisição de máscaras produzidas artesanalmente, por costureiras e produtores locais.

O presidente entendeu por bem vetar a lei ao argumento de que os dispositivos violam o pacto federativo, na medida em que criam obrigação cogente para os entes federativos, aviltando a autonomia de Estados, Distrito Federal e municípios. Aduz, ainda, que as máscaras não teriam pertinência com o programa de Farmácia Popular, já que não são medicamentos. Alega, por fim, que a medida implica criação de despesas sem indicação de fonte de custeio.

Também foi vetado o dispositivo da lei que isentava a população vulnerável de multa pelo descumprimento do uso obrigatório de máscara e, ainda, o que prescrevia a veiculação de campanhas publicitárias de interesse público que informassem a necessidade do uso de máscaras de proteção individual, bem como a maneira correta de sua utilização e de seu descarte, observadas as recomendações do Ministério da Saúde.

Por fim, foram vetados o caput e o §5º do artigo 3º-B e o artigo 3º-F, acrescidos à lei. O artigo 3º-B impunha o dever aos estabelecimentos em funcionamento de fornecerem, gratuitamente, aos seus funcionários e colaboradores máscaras de proteção individual e demais equipamentos de proteção indicados pelas normas de segurança e saúde do trabalho.

Já o artigo 3°-F prescrevia o uso obrigatório de máscaras de proteção individual nos estabelecimentos prisionais e nos estabelecimentos de cumprimento de medidas socioeducativas, o que foi vetado por "arrastamento", uma vez que o artigo 3°-B foi vetado ao argumento de que já há normas sobre o tema, referindo-se, no caso, às portarias conjuntas dos Ministérios da Presidência da República.

Nota-se que os vetos se sustentam em referências genéricas a argumentos de inconstitucionalidade (violação de domicílio e pacto federativo) e à ideia de inconveniência dos dispositivos ao interesse público. Na verdade, revelam um ideário de gestão que vê com hostilidade as medidas mundialmente sugeridas para o combate ao Covid-19. A pasta do Ministério da Saúde, após a saída de dois ministros, encontra-se nas mãos de um interino.

Esse ideário político que resultou nos vetos, no plano micro da lei, explica-se porque os dispositivos vetados se prestam à proteção dos vulneráveis. No plano macro, os vetos, no fundo, são sintomas da necropolítica implantada e que se quer aprofundar no Brasil, no contexto da pandemia. Passemos à análise desses dois aspectos.

Os vulneráveis são facilmente identificáveis na dimensão sociorracial. Em um país no qual se investiu no mito da democracia racial para ocultar políticas de exclusão social, exclusões que são múltiplas (econômica, acadêmica, de gênero etc.), não nos surpreendem as repetições de ações e omissões estatais dedicadas ao desaparecimento forçado de pessoas negras, sem direito a uma morte espontânea decorrente de um existir livre e digno.

O mito da democracia racial, como alerta Kabengele Munanga, encobre nossos conflitos raciais e impede a tomada de consciência e acesso das comunidades afrodescendentes a definições e características culturais que lhes permitam construir uma identidade própria [5].

Mata-se sistematicamente à luz do dia e de todas as formas: da negação ao gozo do direito à saúde a posturas repressivas ostensivas que abusam da legitimidade estatal e fazem escoar sangue desses mesmos vulneráveis, sob a justificativa de se proteger a ordem pública. Melhor seria se fosse dito ordem pudica, devido ao moralismo que acompanha essas ações estatais letais.

A requintada estratégia de morte consiste em encarcerar massivamente os vulneráveis e, em seguida, negar-lhes o mínimo de proteção existencial nessa fase de vida pandêmica, representado por pedaços de pano para cobrir-lhes a boca e o nariz. Máscaras que poderiam ser feitas por costureiras e produtores locais, que sabem, com conhecimento de causa, da dor existencial que invade a gente humilde. O veto presidencial preferiu, rasamente, inventar desculpas supostamente constitucionais.

Os vulneráveis são os numerosos rescaldos de corpos pretos ejetados de uma abolição inconclusa para um espaço de liberdade social puramente formal. São os Pancrácios retratados na crônica machadiana, publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888. São ambulantes, trôpegos sociais e os que se situam nas ruas por não terem uma habitação convencional regular. Vulneráveis de todos os tipos, mas quase sempre negros, e nessas negritudes está a vulnerabilidade escancarada.

Os vulneráveis são também os que, na nossa contemporaneidade, podem compartilhar de dores semelhantes às aflições de Carolina Maria de Jesus, que, em dias de chuva, dizia: "(…) Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. O dia que chove eu sou mendiga. Já ando mesmo trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes. E hoje é sábado. Os favelados são considerados mendigos" [6].

A propósito, em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou informativo estatístico referente às desigualdades sociais por raça no Brasil, no qual consta que "apesar de a população preta ou parda ser maioria no Brasil (55,8%), esse grupo, em 2018, representou apenas 27,7% das pessoas quando se consideram os 10% com os maiores rendimentos. Por outro lado, entre os 10% com os menores rendimentos, observa-se uma sobrerrepresentação desse grupo, abarcando 75,2% dos indivíduos".

Em relação ao indicador taxa de homicídio, constatou-se que "de fato, no Brasil, a taxa de homicídios foi 16,0% entre as pessoas brancas e 43,4% entre as pretas ou pardas a cada 100 mil habitantes em 2017" [7].

Conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen-2017 [8]), tem-se que, considerada a população prisional brasileira de 726.354 pessoas, 63,6% é de cor/etnia preta e parda. Esses números, se interpretados pela lente crítica que denuncia o autoritarismo escravocrata brasileiro, caracterizam um sistema de castas raciais determinado pelo massivo encarceramento de afrodescendentes, fenômeno que estabelece cidadanias de segunda categoria ou até mesmo não cidadanias, tamanha que é a nulificação existencial provocada pelo cárcere [9].

Michelle Alexander, ao analisar a situação carcerária estadunidense, aponta que o sistema de justiça criminal não deve ser visto como um sistema independente, pois, ao produzir e reforçar castas raciais, é a "porta de entrada para um sistema muito maior de estigma racial e marginalização permanente" [10]. O mesmo pode ser dito sobre o sistema de Justiça criminal brasileiro, ao qual está atrelada a terceira maior população carcerária do mundo.

Se fosse apenas uma análise pontual do sistema de Justiça criminal, ainda assim teríamos, conforme destacamos linhas atrás, dados suficientes para afirmar que há um contentamento necrófilo da política criminal brasileira, que está desenhada, da legislação à práxis forense, para o encarceramento rotineiro, panóptico e racialmente seletivo de vulneráveis, que são cadáveres adiados [11].

Necropoderes estatais amam-se e se entrelaçam para praticar o poder de matar. No caso brasileiro, a necropolítica como diretiva estatal conta com o descaso permanente à vida dos vulneráveis, que engloba omissões e desvios de conduta constantes na saúde pública, na educação, no sistema carcerário e no viver comunitário. Diferentemente das Intermitências da Morte, ensaio ficcional de José Saramago, em que a morte deixa de exercer seu ofício, no Brasil a morte alcança números hiperbólicos, com ou sem pandemia.

Não nos enganemos. A morte sempre foi uma boa frequentadora da História brasileira. Extermínio de índios. Escravização e abafamento mortífero de insurreições. Triste sina ou sistêmica vontade de matar?

O termo "necropolítica" se extrai do ensaio com esse nome publicado inicialmente no ano de 2003 em uma revista norte-americana chamada Public Culture. Foi escrito pelo historiador, cientista político e filósofo camaronês Achille Mbembe [12], representante do chamado pensamento pós-colonial, cuidadoso em produzir um conhecimento oriundo da África, ainda que influenciado por intelectuais europeus, como Michel Foucault e Giorgio Agamben.

A necropolítica se define como uma política centrada na produção da morte em larga escala, sendo a marca de um mundo em crise sistêmica. Nela, a expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer [13]. Mbembe possuía como foco as margens sociais criadas pelo sistema capitalista. Não à toa, os discursos e práticas de poder em meio à pandemia no Brasil exalam, com força, os odores da putrefez da necropolítica.

Quando Mbembe diz que "na economia do biopoder,
a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado" 
 [14], nos permite compreender os porquês da hostilidade às medidas de proteção dos vulneráveis diante da pandemia. Os vulneráveis são majoritariamente negros e negras.

A repetição dessa ideia é válida para que se entenda, conforme defendido por Abdias do Nascimento, de pensamento atualizado por tantos pensadores/as modernos afrocentrados/as, a exemplo da professora Ana Flauzina, que o caso brasileiro é de extermínio sistemático de corpos negros, ao que se pode chamar de genocídio do povo negro [15].

Os vulneráveis são as "vidas matáveis", extensa e substituível corporeidade em que se dá o deleite da necropolítica estatal. Por isso, "a vida que, com a declaração dos direitos, tinha sido investida como princípio de soberania, torna-se agora ela mesma o local de uma decisão soberana" [16].

Mbembe demonstra que uma das premissas facilitadoras para o extermínio de raças foi a serialização de mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte, quando ele afirma que "mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido" [17]. Ou seja, com o avançar das tecnologias, o Estado tentava transformar os métodos de matar em algo mais "civil" possível, atribuindo-os objetivos racionais.

Essa chave analítica ilumina as razões ocultas dos vetos. Para quem pensa que "bandido bom é bandido morto", sem máscaras nos cárceres, quantos "bandidos" serão eliminados via Covid-19? Sem máscaras para trabalhadores e trabalhadoras, para pessoas vivendo na rua, e tantos outros indesejáveis, quantas mortes serão produzidas?

Assim, do ponto de vista teórico e político, a patente invisibilidade e menosprezo aos interesses dos segmentos sociais tidos como vulnerabilizados se observa a partir dos vetos operados, os quais simbolizam a manifestação de mais um ato no contexto de aprofundamento da necropolítica, que tem como corte seletivo o racismo.

 


[1] CUNHA, Therezinha Lucia Ferreira. Veto e técnica legislativa. Revista de informação legislativa: v. 18, n. 72 (out/dez 1981).

[2] MOYA, Maurício Assumpção. Executivo versus Legislativo: os vetos presidenciais no Brasil (1988-2000). Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Políticas da Universidade de São Paulo, 2005.

[3] MOYA, op. cit.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 908-909.

[5] MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 83.

[6] JESUS, Carolina. Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2014. p. 61.

[9] Nesse sentido, ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

[10] ALEXANDER. A nova segregação…op. cit.p.50

[11] Nesse sentido, A questão criminal, de Eugenio Raul Zaffaroni, que atribui a expressão ao poeta Fernando Pessoa. (p. 130 – ebook)

[12] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. – São Paulo: n-1 edições, 2018.

[13] MEBEMBE, Necropolítica…op. cit., p. 5-6.

[14] MEBEMBE, Necropolítica…op. cit., p 18.

[15] Cf. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. https://repositorio.unb.br/handle/10482/5117?locale=fr.

[16] AGAMBEN, Girogio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. 2ª ed. Belo horizionte: Editora UFMG, 2010. p. 138.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro–UERJ, professor do PPGD da Faculdade Guanambi–BA, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense– UFF e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituo Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

  • é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA, mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM, coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • é promotor de Justiça do MP-BA, mestre pela UFBA, mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha), professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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