Opinião

ADPF 635, operações em comunidades e Estatuto da Igualdade Racial

Autores

  • André Nicolitt

    é juiz de Direito e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).

  • Charlene da Silva Borges

    é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • Lívia Sant'Anna Vaz

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • Saulo Mattos

    é promotor de Justiça do MP-BA mestre pela UFBA mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha) professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

20 de julho de 2020, 7h13

Neste dia 20 de julho, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), principal diploma legal a pautar, na ordem jurídica brasileira, a promoção da igualdade racial, completa dez anos. Foram dez anos de tramitação, com substitutivos, emendas e significativas supressões, até sua aprovação final em 2010.

Para compreender a importância do estatuto como instrumento efetivo de reconhecimento e promoção dos direitos das pessoas negras na história do Brasil, deve-se visualizar a evolução da questão racial na ordem jurídica brasileira, que, didaticamente, pode ser dividida em quatro períodos.

O primeiro e mais longo perdurou por quase quatro séculos e teve como marco a juridicização da escravidão negra, disciplinada, inicialmente, nas Ordenações do Reino e posteriormente na legislação produzida pelo Império. É de se notar a contraditória e conveniente natureza jurídica atribuída à pessoa escravizada, considerada no Direito Civil como coisa (res), sobre a qual recaía o direito de propriedade, mas responsabilizável e cruelmente punível pelo Direito Criminal, com penas de tortura, marcas de ferro quente e açoites. Apesar da proibição de açoites pela Constituição de 1824 (artigo 179, XIX), sua vedação não beneficiava as pessoas escravizadas, que permaneceram sujeitas a esse tipo de pena, sob a regência do Código Criminal de 1830. A pena de açoite só foi definitivamente extinta em 1886, pela Lei nº 3.310.

O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão [1], tendo promulgado uma série de leis a exemplo das conhecidas Lei do Ventre Livre, de 1871 [2], e Lei dos Sexagenários, de 1885 [3] , tendentes a retardar o já inevitável processo de abolição, inclusive antecipado em algumas províncias, ao exemplo do que ocorreu no Ceará e no Amazonas, no ano de 1884 [4].

A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888  símbolo da formalização legal da abolição da escravatura no país , foi promulgada com apenas dois artigos: o primeiro, declarando extinta a escravidão; o segundo, revogando as disposições em contrário. Nenhum dispositivo voltado para definir o destino das pessoas recém-libertas.

Essa segunda etapa da juridicização da questão racial brasileira fase pós-abolição —, destaca-se pela utilização do aparato jurídico-político estatal para a implementação de uma política de embranquecimento da população fundada no racismo científico eugenista , consolidada na ordem jurídica, a exemplo do Decreto nº 528/1890, que condicionava o ingresso de imigrantes africanos e asiáticos em território brasileiro à prévia aprovação do Congresso Nacional.

Além disso, havia a subvenção da imigração europeia, com facilitação de acesso à terra, à moradia e a postos de trabalho para imigrantes europeus, garantias estas negadas aos ex-escravizados. Ao lado dessa política de branqueamento social, o Código Criminal de 1890 arrematava o processo de marginalização da população negra, dedicando capítulo inteiro para criminalizar a vadiagem e a capoeiragem, situações sociais associadas à negritude recém-liberta.

Na terceira fase, ocorre a gradativa inversão ao menos em termos formais das etapas anteriores, a partir da tutela do direito à não discriminação racial, tendo como marco principal o processo de criminalização do racismo. Destaca-se a Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/1951), que alterou a Lei de Contravenções Penais, incluindo entre elas a prática de "atos resultantes de preconceito de raça e de cor". Apesar das críticas — em especial, por categorizar tais atos como meras contravenções, sujeitas a penas brandas , a lei foi o primeiro estatuto legal a enquadrar a prática de racismo como infração penal, o que significou uma ruptura com a ordem legislativa anterior, alicerçada na criminalização do negro.

A criminalização constitucional do racismo determinada no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição de 1988 foi regulamentada pela vigente Lei nº 7.716/89, conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor do seu projeto, o deputado Carlos Alberto Oliveira. Embora outras leis de diferentes áreas do Direito já tivessem tipificado como crime a prática de discriminação racial, é com a Lei Caó que se dá a ampla criminalização do racismo.

A quarta e atual etapa teve início em princípios do século XXI e se sobreleva pela atuação do Estado na promoção da igualdade racial e pela inclusão das pautas antirracistas na agenda das políticas públicas. A Constituição cidadã ao estabelecer o princípio do repúdio ao racismo (artigo 4º, inciso VIII), ao criminalizar o racismo como crime imprescritível e inafiançável e ao permitir uma interpretação substancial do princípio da igualdade formal, considerando-o como igualdade material autoriza e determina ações afirmativas de caráter racial.

Deve-se lembrar que a presença de parlamentares negros no Congresso Nacional sempre foi rarefeita. Abdias do Nascimento foi o precursor da apresentação de projetos de lei que tratavam do enfrentamento ao racismo no país. Foi responsável pelas primeiras propostas de ações compensatórias para os descendentes de africanos escravizados. Apresentou, na condição de deputado federal, em 1983, proposta legislativa referente a ações afirmativas raciais, por meio do Projeto de Lei (PL) nº 1.332 [5] que propunha medidas compensatórias [6] inclusive cotas voltadas para proporcionar isonomia entre negros e brancos nas diversas esferas sociais.

Embora tenha recebido pareceres favoráveis na Câmara dos Deputados, entre 1983 a 1986, até 1989 o PL ainda não havia sido votado pelo plenário, o que resultou no seu arquivamento.

Somente nos anos 90 é que, por reivindicação do movimento negro, os debates sobre ações afirmativas voltaram a ter repercussão no Congresso Nacional. Destaca-se o Projeto de Lei nº 3.198/2000, de iniciativa do então deputado Paulo Paim, cujo objeto era a instituição do Estatuto da Igualdade Racial, com resgate de diversas medidas apresentadas, anos antes, por Abdias do Nascimento.

Entre as proposições do projeto original do Estatuto da Igualdade Racial, destacavam-se a instituição de cota raciais; o direito à indenização aos descendentes afro-brasileiros, com finalidade reparatória, mediante o pagamento da quantia de R$ 102 mil a cada descendente de africanos escravizados; o reconhecimento do direito de propriedade de comunidades quilombolas, com emissão, pelo Estado, de título definitivo; o ensino obrigatório da história da África e das contribuições dos africanos e seus descendentes no Brasil etc.

Em 2003, Paulo Paim, agora como senador, apresentou um projeto de Estatuto da Igualdade Racial mais completo (PL nº 213, de 2003), incluindo seções que tratavam das mulheres negras, ampliando dispositivos relacionados aos direitos territoriais dos quilombolas e prevendo um Fundo de Promoção da Igualdade Racial.

Após alterações substanciais no seu caráter impositivo e, mediante manifestações do movimento negro pela sua aprovação, em 20 de junho de 2010, o projeto foi, finalmente, aprovado, com a promulgação da Lei nº 12.288, sancionada pelo presidente da República, em julho do mesmo ano. Diante de tanta resistência para sua aprovação no Congresso Nacional, a versão final possível do Estatuto da Igualdade Racial rendeu-se a excessivas concessões: mais uma vez os direitos do povo negro brasileiro foi objetivo de negociações, de restrições, de adiamentos.

Ainda assim, o Estatuto da Igualdade Racial constitui um marco legislativo para a proteção e promoção da igualdade racial na ordem jurídica brasileira, ao firmar diretrizes voltadas para a inclusão social da população negra, que abrangem desde os direito à saúde, à educação, à terra, à moradia, à cultura e ao lazer, até sua inserção no mercado de trabalho e nos meios de comunicação.

Mas será que, mesmo após tão longa tramitação e tantos remendos e negociações, o Estatuto da Igualdade Racial tem sido aplicado pelo sistema de Justiça?

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, em trâmite no STF, pode nos dar uma pista para responder a essa questão. Nela, evidencia-se a raça como questão estruturante das desigualdades no nosso país e como foco da necropolítica estatal e da seletividade do sistema penal.

Em sede de tutela provisória incidental, na referida ADPF, determinou-se a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia do Covid-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com imediata comunicação ao Ministério Público do Rio de Janeiro, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial.

A ação que tem a Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes (Educafro), a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Justiça Global na condição de amicus curiae foi ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro, em 19 de novembro de 2019, com a pretensão de que fossem reconhecidas e sanadas graves lesões a preceitos fundamentais constitucionais, decorrentes da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro marcada pela "excessiva e crescente letalidade da atuação policial", voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades. A ação rememora casos de intervenção policial letal que vitimaram crianças e adolescentes negras(os) em comunidades cariocas Ágatha Vitória Sales Félix, de oito anos (20/9/2019); Jenifer Silene Gomes, de 11 anos (14/2/2019); Kauan Peixoto, de 12 anos (17/3/2019); Kauã Rozário, 11 anos (17/5/2019), Kauê Ribeiro dos Santos, de 12 anos (9/9/2019); e Kelvin Gomes, de 17 anos (11/10/2019) , afirmando não se tratarem de casos isolados, mas de um quadro evidente de necropolítica estatal.

Mencionam-se dados estatísticos das vítimas fatais de violência policial no Estado do Rio de Janeiro, situação cuja gravidade foi reconhecida internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília v. Brasil, no qual a corte afirma que, entre as vítimas fatais, há predominância de jovens, negros, pobres e desarmados.

Entre seus fundamentos, a ação deu destaque à questão racial, apresentando um capítulo intitulado "Vidas negras importam! Igualdade, impacto desproporcional e racismo estrutural". Sustenta-se que o princípio da igualdade não veda apenas medidas explicitamente discriminatórias com evidente intenção de prejudicar ou favorecer determinados grupos ou pessoas , mas também proíbe a chamada discriminação indireta, que ocorre nas hipóteses em que as medidas geram impacto negativo desproporcional sobre determinados grupos vulnerabilizados, mesmo que não se trate de uma discriminação intencional. Argumentou-se que a letalidade da política de segurança pública adotada pelo Estado do Rio de Janeiro, apesar da suposta generalidade dos seus efeitos, atinge de maneira desproporcional a população negra.

Após novos casos de violência policial letal no Rio de Janeiro, durante a pandemia da Covid-19  e tendo em vista que o julgamento da medida cautelar se encontra suspenso, em virtude de pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes , o relator foi instado a, monocraticamente, conceder ordem para a não realização de operações policiais durante a pandemia.

É curioso notar que, apesar de sua importância diante do caso sob análise, não houve qualquer menção ao Estatuto da Igualdade Racial, nem mesmo ao seu artigo 53, caput, que dispõe que "o Estado adotará medidas especiais para coibir a violência policial incidente sobre a população negra". A pertinência deste dispositivo como comando normativo para apreciação do pedido é de clareza solar. No entanto, na ação, fruto de uma visão sensível à questão, e na decisão que reconhece a urgência e pertinência da medida, ele sequer é mencionado.

A invisibilidade do estatuto nesta ação parece refletir a invisibilidade conferida historicamente ao negro, situação que anuncia um 5º período a ser fundado. O cenário atual, após dez anos de sua existência, deve ser de luta pela efetividade do Estatuto da Igualdade Racial e para que as investidas contra tão árduas conquistas não se consolidem. No enfrentamento ao racismo não se pode aceitar nenhum direito a menos.

Há de se pensar diante desse peculiar silêncio no debate estabelecido perante a Suprema Corte quanto a uma normatividade específica que centraliza as esperanças da população negra, historicamente violentada por chibatadas, tiros e apagamentos sociais se existe futuro viável para o Estatuto da Igualdade Racial ser juridicamente respeitado como norma jurídica concretizável.

Ou, talvez, ao representar os sonhos emancipatórios dos movimentos negros que clamam pelo estancamento do sangue que se aglutina nas escadarias barrentas das comunidades, em razão de ações policiais artificialmente protegidas pela legítima defesa "anticrime" (artigo 25, parágrafo único, Código Penal) —, o Estatuto da Igualdade Racial tenha se tornado, só e apenas, o insuficiente retalho de pano legislativo usado para enxugar as lágrimas da população negra, sufocada pela série programada de "pisões" em sua garganta, que não nos deixam respirar.

Só que não! Os movimentos negros se reinventam cotidianamente e sempre fizeram cintilar a frase que hoje se repete contra racistas inveterados, muitos destes até confortavelmente instalados no sistema de justiça criminal. Diremos sempre: "Vidas negras importam!!!".

 


[1] Cfr. Laurentino Gomes, Escravidão – volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 422.

[2] Considerava livres os filhos das mulheres escravizadas, nascidos após a data de sua promulgação, sem, contudo, libertar as mães. Clóvis Moura, Dicionário da escravidão negra no Brasil, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, p. 240, recorda que, mesmo transcorridos dezesseis anos desde a entrada em vigor desta lei, meninos escravizados eram leiloados por meio de divulgação no Diário Oficial da Bahia.

[3] Libertava os escravos maiores de sessenta anos de idade, sob as condições nela estabelecidas. Ressalte-se que, segundo Lilia Moritz Schwarcz, Racismo no Brasil, São Paulo: Publifolha, 2001, p. 45, a média de vida de uma pessoa escravizada no campo era de 10 a 15 anos, sendo raro que um cativo alcançasse a idade prevista na lei. Recorde-se, ainda, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a esperança de vida ao nascer da população brasileira, sem qualquer recorte racial, alcançou a média de 66 anos, apenas em 1991.

[4] Cfr. Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz, Sobre Princesas e Abolições. Disponível em «http://flordedende.com.br/sobre-princesas-e-abolicoes-130-anos-da-lei-aurea/». Acesso em 12 de julho de 2020.

[5] Disponível em «https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=190742». Acesso em 12 de julho de 2020.

[6] Nesse sentido, consultar o artigo 12 do PL nº 1.332/8, de extremo valor histórico.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro–UERJ, professor do PPGD da Faculdade Guanambi–BA, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense– UFF e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituo Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

  • é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA, mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM, coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • é promotor de Justiça do MP-BA, mestre pela UFBA, mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha), professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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