Opinião

STF: insignificância e insignificantes no Direito Penal

Autores

  • André Nicolitt

    é juiz de Direito e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).

  • Charlene da Silva Borges

    é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • Lívia Sant'Anna Vaz

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • Saulo Mattos

    é promotor de Justiça do MP-BA mestre pela UFBA mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha) professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

14 de julho de 2020, 6h36

No dia 30 de junho do corrente ano, o STF analisou dois casos penais semelhantes, cujo desfecho distinto reacendeu um debate jurídico em torno do princípio da insignificância.

O ministro Gilmar Mendes absolveu uma mulher, moradora do Rio de Janeiro, acusada de furtar um pedaço de picanha, três tabletes de caldo de tempero de alimentos e uma peça de queijo de um estabelecimento comercial.

Já a ministra Rosa Weber negou um pedido de liberdade para um homem preso por furtar duas embalagens de xampu, cada uma no valor de dez reais.

Com uma simples consulta na jurisprudência no site do STF, lançando-se apenas as palavras "xampu" ou "picanha", vemos que são inúmeros os casos dessa natureza que chegam à Suprema Corte. São processos com longo percurso que saem de uma delegacia policial, passam pelo Ministério Público, pelas mãos de um juiz de primeiro grau, chegam ao Tribunal de Justiça, sendo julgados por três desembargadores, desaguando no STJ e, por fim, após dispendioso movimento da máquina judicial, chegam para a deliberação do STF.

A chave analítica dessa patologia reside na gênese do nosso sistema penal. Vejamos.

Os sistemas penais e suas variações estão relacionados às fases do desenvolvimento econômico. Georg Rusche [1], em 1930, decifrou as intrínsecas relações entre punição e estrutura social, apontando as estreitas relações do mercantilismo com a pena de galés e degredo, da prisão com a fábrica, da acumulação de capital com os sistemas penais.

Michel Foucault, em sua obra A verdade e as formas jurídicas [2], indica como o inquérito, importante instrumento para o controle penal, surge para atender a demanda de controle sobre a circulação das riquezas que, antes dele, ficava à mercê de juras e duelos.

A história do Direito Penal brasileiro é a ilustração sinistra da relação entre interesse econômico e estrutura punitiva. O Brasil colonial, imperial e republicano fornece provas robustas da cultura de valorização dos bens econômicos, da proteção do patrimônio, em detrimento de bens como vida e liberdade.

Isso significa que a estruturação dogmática penal e processual penal brasileira obedeceu, e ainda obedece, a uma dinâmica de poder que encontra na pulsão econômica justificativa bastante para exercer a seletividade penal encarceradora, conhecida por todos e, ainda assim, negligenciada pela maior parte dos praticantes do Direito. Afinal, segundo as finalidades não declaradas do Direito Penal, é preciso encarcerar os que aparentemente se mostram improdutivos e torná-los, forçosamente, mão de obra barata para interesses econômicos terceirizados.

Importa salientar que não é apenas a suposta improdutividade o critério norteador dessa sistemática, eis que a população negra marginalizada desde os primórdios da abolição inacabada é tida como inconveniente ao projeto de nação que existia àquela época. Nunca é demais relembrar a denúncia de Abdias Nascimento [3] sobre o mito da democracia racial, bem como sobre a estratégia institucional de genocídio da população negra, a qual desenvolve seu modus operandi não apenas pelo extermínio das vidas negras, mas também pela aniquilação de todo capital simbólico, cultural e liberdade. Nesse último viés, o Direito Penal revela-se como a mais importante ferramenta do sistema.

Em nome da propriedade, negou-se humanidade aos negros. Incrementou-se um sombrio iluminismo escravagista, inventaram-se mecanismos de compensação a senhores de escravos que acumularam "perdas" no processo de abolição da escravidão, chegando ao ponto de manter, no Código de 1830, considerado liberal e iluminista, a pena de morte.

O que pretendemos demonstrar no presente é que essa lógica de proteção dos interesses econômicos, que instrumentaliza o racismo para estruturar o sistema penal, continua funcionando e o tratamento jurisprudencial dado à insignificância é apenas um sintoma de um problema mais grave, ou seja, indica a própria essência do sistema penal comprometido com interesses econômicos e que tem por instrumento o racismo.

Iniciando a análise pelo período imperial, alguns apontam que "mesmo com todo caráter revolucionário e libertário que preponderava durante todo o Império, o Brasil ainda foi um dos últimos países a abolir, de vez, a escravidão". Os avanços sociais, sobretudo legislativos, não foram capazes de renunciar à herança da escravidão, pois a sociedade política era dividida em abolicionista e escravocrata durante praticamente todo o Império, e a organização agrícola era economicamente dominante, utilizando-se de mão de obra escrava para produção e exportação de seus produtos tropicais. Desse modo, os fatores econômicos e políticos foram determinantes para obstar o avanço legislativo, no que tange aos direitos da população considerada servil [4].

O despotismo esclarecido que marcou a atmosfera da Constituição de 1824, criou um território juridicamente contraditório, conciliando um rol de direitos e garantias fundamentais (artigo 179 da Constituição de 1824) com a manutenção de privilégios da nobreza e a manutenção da escravidão. O Código Criminal de 1830, embalado pelo referencial teórico de Beccaria, trazia em seu corpo um tratamento nada humano aos escravos. Vale destacar alguns pontos sobre esse diploma.

O artigo 179 do Código Criminal de 1830 já previa como crime a redução de pessoa livre à condição de escravo. Esse contrassenso de se punir a imposição de escravidão a uns e a compelir a escravidão licitamente a outros, se explica pelas noções de inimigo, de vida nua [5] e de seletividade.

O código "liberal" de 1830 previa o crime de insurreição se vinte ou mais escravos se juntassem "para haverem a liberdade por meio da força" e punia tal fato com pena de morte em grau máximo (artigo 113). Isso ocorreu mesmo quando países como a Dinamarca, o Haiti, o Chile e o México já haviam abolido a escravidão, antes do Código Criminal Brasileiro de 1830 ter sido promulgado [6].

A coisificação dos negros ficava evidente também quando o sistema de reparação do dano decorrente de delitos poderia ser feito através de corpos negros. A jurisprudência da época permitia que a hipoteca tácita recaísse sobre os escravos e suas respectivas escrituras de compra e venda, de modo que eles não poderiam ser alienados pelo dono enquanto ele não satisfizesse o dano causado [7].

O código "iluminista" de 1830 estabelecia como excludente de ilicitude o castigo empregado aos escravos. Na Comissão Bicameral criada para discutir os projetos de Código Penal, debateu-se sobre a utilidade e possibilidade de supressão da pena de morte. No entanto, a pena capital acabou sendo mantida, assim como a de galés, sob o argumento de que a criminalidade servil era muito difundida e, sem as referidas penas, não se manteria a ordem entre os escravos [8].

Com a república o cenário não mudou. Como bem notou Eugeniusz Cruz, o sintoma social das elites relativamente ao negro recém-liberto eclodiu de tal forma no cenário brasileiro após a abolição da escravidão em 1888 e a declaração da República em 1889, que o poder constituído entendeu ser mais importante criar uma lei penal incriminadora (Código de 1890) do que promulgar uma Constituição, o que somente ocorreu em 1891 [9].

Com as portas das senzalas abertas, acontece significativa ocupação dos espaços públicos pelos negros e isso produziu uma sensação generalizada de caos, fundamentando a repressão à ociosidade. Ademais, nesse período de passagem ao capitalismo, mendigos, incapazes e negros recém-libertos eram considerados como anormais que dificultam e oneram a parte produtiva da sociedade [10].

Com o poder político dominado por fazendeiros escravocratas e seus filhos, o fim da escravidão (1888) foi seguido de um projeto de criminalização da vadiagem, com pena privativa de liberdade de até três anos para reincidentes, mantendo vivo o ideário do Código de 1830 [11].

Tratou-se de projeto repressivo elaborado para aplacar os medos das elites com receio das hordas de libertos vistos no campo como potenciais furtadores e na cidade, como bandos de capoeiras e desocupados não admitidos na indústria [12]. Ou seja, tratava-se de verdadeira política pública de transição ao capitalismo [13].

O artigo 402 do Código de 1890 era a demonstração mais simbólica do tratamento reservado aos ex-escravos:

"Artigo 402  Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:

Pena de prisão cellular por dous a seis mezes.

Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta".

Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

Ademais, abertas as senzalas, sem o aproveitamento dos ex-escravos como mão de obra assalariada, não lhes restava outra coisa senão as indigências e falta de oportunidade laboral. A gestão desses indesejáveis veio através do Direito Penal (Código de 1890) que cuidou de criar o delito de vadiagem (artigos 399 e 400), mas apenas para quem não possuísse recursos financeiros. Tal como ainda é hoje na Lei de Contravenções Penais, não se puniu o ócio, e, sim, a falta de dinheiro, o que selecionava basicamente os ex-escravos. Como se nota, a questão não é de transgressão normativa, e, sim, uma questão existencial. O ex-escravo apresenta-se como inimigo nos exatos termos de Schmitt, ou seja, "o outro", o "diferente" [14]. Nessa lógica, "cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente" [15].

A partir do racismo se constrói a imagem do negro como inimigo. Vale lembrar que a raça é um elemento essencialmente político e os eventos da Segunda Guerra Mundial e o genocídio visto pelo mundo deixaram isso evidente [16]. A raça não existe como fato natural, físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil ou de um projeto ideológico de desviar a atenção de conflitos [17] verdadeiros e de ordem econômica. Foram circunstâncias históricas de meados do século XVI, como a expansão da economia mercantilista e a descoberta do novo mundo, que forneceram um sentido à ideia de raça [18]. Racismo e interesses econômicos sempre andaram de braços dados.

O racismo é estruturante do sistema penal até hoje. Vera Malaguti Batista revela a construção de uma arquitetura penal erguida no Brasil, principalmente a partir da "proclamação da República" e da "abolição da escravidão", em fins do século XIX, permeada pelo temor do fim da escravidão e pelas fantasias de que o fim da escravidão seria um risco para ordem e pureza das elites brancas [19].

Mesmo com a "abolição" da escravidão, não se rompe com o ordenamento do escravismo, nem do ponto de vista socioeconômico, tampouco do ponto de vista cultural. Há uma "arquitetura penal genocida" [20], cuja clientela vai se metamorfoseando infinitamente entre índios, pretos, insurgentes e pobres em geral, que dá continuidade ao extermínio colonizador e se aprofunda na atual fase do capitalismo neoliberal que marca as periferias do mundo [21].

Com efeito, a confusão dogmática que se faz em torno da insignificância apenas reproduz a lógica de se valorizar o patrimônio e a ordem econômica em detrimento da liberdade e da humanidade. Quem são os furtadores de garrafas de pinga, de frascos de xampu e de pedaços de carne? Não são aqueles cujos ancestrais eram forçados a comer manga para não furtar leite?

Note-se que pesquisas revelam que logo após do Código de 1890 (1892), praticamente um terço das detenções dos chefes de polícia e dos ministros da Justiça, e dos Livros da Casa de Detenção, guardados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, foram motivadas por distúrbio/algazarra relativos à prática de batuques relacionados aos cultos religiosos afro-brasileiros, de modo a mais uma vez caracterizar a seletividade da ação repressora [22].

Não à toa, a atual repressão ao funk e a relação que se faz dele ao tráfico de drogas não guarda a mesma intensidade em relação as festas raves.

Com efeito, o tratamento jurídico penal que hoje se dá ao funk e aos furtos insignificantes nada mais são do que a reprodução do ideário que inspirou os artigos 399 e 402 do Código de 1890.

A proteção da propriedade privada e da riqueza, o racismo e o sistema penal, por todas suas agências, representam a aliança indissolúvel desde o Brasil colônia até os dias atuais.

A inaplicação da insignificância muitas vezes será justificada pela subjetiva e seletiva valoração do bem, outras porque o réu é reincidente e essa agravante, em uma visão míope, passa a ser absurda norma de adequação típica. Mas a razão verdadeira da negligência planejada para este princípio reside nas matrizes econômica e racista do sistema penal.

 


[1]RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004.

[2] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.

[3] NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.4ª Edição.

[4] PINESCHI, Bruna de Carvalho Santos; SOUSA. Daniel Aquino de. O Código Criminal do Império e seu papel no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 131/2017 | p. 79 – 115 | Maio / 2017.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I – Trad. de Henrique Burigo. – Belo Horizonte: Editor UFMG, 2002.

[6] PINESCHI, op. cit.

[7] PINESCHI, op. cit.

[8] PINESCHI, op. cit.

[9] CRUZ, Eugeniusz. O eco escravista: Processo histórico de formação da seletividade penal. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 10, no3, setembro-dezembro, 2018, p. 464-484.

[10] Idem.

[11] CRUZ, op. cit.

[12] BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p 63.

[13] CRUZ, op. cit.

[14] SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen (1932). 6. Aufl. 5. Nachdruck der Ausgabe von 1963. Berlim: Duncker & Humblot, 2002, p. 27.

[15] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. – São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 62.

[16] ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 24.

[17] MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2017, p. 26-27.

[18] Ibidem, p. 19-20.

[19] BATISTA, Vera Malaguti.O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.p.75-121.

[20] BATISTA, Vera. op. cit., p. 21 e 105.

[21] MORAIS, Romulo Fonseca. As relações entre punição e estrutura social no brasil: a prática de extermínio e o racismo como “modo de ser” do sistema penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 139/2018 | p. 247 – 276 | Jan / 2018.

[22] NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição do mercado de trabalho (1890-1927). 2. ed. Niterói: Eduff, 2012, p. 292.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro–UERJ, professor do PPGD da Faculdade Guanambi–BA, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense– UFF e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituo Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

  • é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA, mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM, coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • é promotor de Justiça do MP-BA, mestre pela UFBA, mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha), professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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