Diário de classe

Um modo hermenêutico para desvelar o Brasil

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25 de janeiro de 2020, 10h06

As discussões envolvendo as teses patrimonialistas são, não à toa, objeto de controvérsia entre estudiosos do Brasil, sobretudo, entre cientistas políticos e sociais, como procurei demonstrar em recente texto (aqui) – e como também já referiram colegas de Dasein, como os professores Isadora Neves e Danilo Lima (aqui). É que a leitura desatenta de muitos desses ensaios faz perceber uma espécie de essência legada ao brasileiro – essência, aliás, que passaria a moldá-lo culturalmente –, determinando um futuro orientado no – e pelo – passado. Em nome dessa característica inexorável, esse mesmo futuro não poderia ser, nesse viés, recusado, mostrando-se como o caminho inevitável de corrupção nas relações entre o público e o privado no país.

Diante dessa tradição acadêmica, digamos, mais clássica – objeto de uma questionada crítica social moderna na contemporaneidade –, o presente brasileiro teria sido determinado no Brasil Colônia como a grande fazenda de Manoel Bomfim1, passando não por uma nação independente – mas monárquica e orientada à lógica da exploração determinada por uma elite colonial constituída já no país –, chegando à república que não republicaniza de José Murilo de Carvalho2. Por fim, fechando essa espécie de linha temporal a partir da proposta de Marcos Nobre – embora também não como um reforço ou endosso a essas teses –, essa mesma república teria se mantido imóvel, paradoxalmente, frente ao movimento necessário ao processo de redemocratização do Brasil na década de 19803.

Entre as críticas às teses patrimonialistas, considera-se a mais contundente – e importante – a que projeta nessas tentativas de se explicar a realidade do Brasil um enredo voltado à manutenção de uma série de privilégios a determinados grupos. Ou seja, a que percebe, justamente na denúncia, a legitimação do desmando. Afinal, ainda que não se veja nesses mesmos grupos, por óbvio, a constituição de uma única elite perpetuada no tempo – desde sempre, opressora –, uma essência orientada à confusão entre o público e o privado não poderia, de igual modo, ser recusada, determinando, portanto, o presente – e condenando, por certo, o futuro4.

Diferente disso, por outro lado, entende-se que o patrimonialismo – sem perder de vista a complexidade do conceito weberiano, mas aqui compreendido, sinteticamente, como a confusão entre o público e o privado – não se estabelece por uma condição circular do tempo, em que uma mesma elite atua indefinidamente, ou ainda como reflexo de uma pretensa essência que molda e caracteriza o brasileiro em geral. O capitalismo de laços proposto por Sérgio Lazzarini, nesse sentido, é bom exemplo da indistinção que, através de instituições públicas, privilegia negócios privados a partir da máquina pública5, propondo uma leitura que também permite visualizar o embaralhamento dessas duas dimensões – como a versão contemporânea de uma herança que não é, portanto, determinada por uma essência (como faz crer essa crítica leitura dos clássicos) e que, por isso mesmo, pode (e deve) ser recusada.

Não à toa, como também se pode pensar a partir de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, observar essa confusão entre o público e o privado como saldo de uma inegável essência do brasileiro seria não apenas um modo preconceituoso de enredar essas relações – como, também, uma paradoxal maneira de justificar a existência e a permanência dessas práticas no Brasil. Mas, por outro lado, não se pode desconhecer a opacidade da linha que separa essas duas esferas no país, ao longo da própria História brasileira, segundo elas, repleta de exemplos6. Daí que, a partir de um viés hermenêutico, cerne da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck7, é possível não apenas desconstruir essa crítica das Ciências Sociais na contemporaneidade como, ainda, manter atual a leitura dos chamados clássicos demiurgos do Brasil. Afinal, há herança, há historicidade, mas não há essência. E, se é assim, é preciso – reconhecendo a importância e o protagonismo deste caminho metodológico nesse campo do saber – olhar para trás e (re)conhecer as tradições que, embora não nos determinem, desvelam caminhos possíveis. Aceitá-los ou recusá-los será sempre um indeterminável papel social.

Então, olhando para trás, vejamos:

Debruçado sobre o aparelho administrativo brasileiro – da condição de colônia a 1930, quando se observa uma espécie de virada rumo à modernidade no país –, interessante trabalho do IPEA observa, num fio histórico, que a “distância entre a lei e o cotidiano administrativo perpassa todo o período colonial e adentra ao Império”, valendo muito mais “compadrios e boas amizades” para as relações que demandavam acesso ao. Segundo este estudo, esse mesmo sistema de relações – embrionário da fase colonial – permaneceu em funcionamento no país, muito embora, frise-se mais uma vez, não se trate de uma mesma elite, mas de um contexto a serviço da Coroa Portuguesa e, mais tarde, de oligarquias rurais forjadas já no Brasil.

Mais que a apropriação do público pelo privado, portanto, essas relações de domínio e clientela refletiam o Estado patrimonial como, de fato, uma espécie de dominação patriarcal – que estende seu domínio aos filhos8. Tal contexto permaneceu na Primeira República, que manteve baixos os quadros do emprego público – como, aliás, é de se supor em Estados patrimoniais. Não houve, portanto, empreguismo, mas é justamente a partir disso que “continuavam as nomeações por mecanismos de apadrinhamento e favoritismo político”. Esse estado de coisas, conclui o estudo, alcançou os Anos 1930 e – mesmo frente à necessidade de expansão e diversificação do aparelho estatal, sobretudo, diante da passagem de uma sociedade de bases rurais para centros urbanos, demandando distintas necessidades públicas –, foram mantidas as “estruturas obsoletas e [a] permanência de traços patrimonialistas no trato da coisa pública. Ambos os problemas deveram-se, em parte, à presença de interesses particulares bem posicionados”.

Essa mesma expansão dos quadros públicos, entretanto, manteve – sem perder de vista os avanços que certamente dela também se seguiram – significativas deficiências nos serviços oferecidos pelo Estado. Entre as causas para essas lacunas, para além de programas de iniciativa isolada e desconectados entre si, aponta-se para – tal qual nos períodos anteriores – a expansão da máquina pública ter sido, também, o produto de interesses particulares: “Muitos órgãos da administração pública foram criados e/ou se expandiram para dar conta de interesses particulares, não raro se sobrepondo aos já existentes, sem que esses desaparecessem ou fossem desativados”9.

Por outro lado, não resta dúvida que o advento da Constituição de 1988, ao projetar um wittgensteiniano jogo de linguagem, em que os operadores do Estado fossem selecionados em boa medida por concurso, fragilizou essa corrupta engrenagem, mostrando, hermeneuticamente, que as heranças podem ser recusadas e, por isso mesmo, não constituem engessantes essências. Mas, ainda assim (daí o grifo em “podem”), se viu persistir o problema do pessoal irregular “em todas as esferas administrativas, a despeito dos repetidos compromissos assumidos com o MP”, segundo o IPEA10, permitindo, também por isso, a manutenção de lógicas particularizadas, sobretudo, pela admissão de apadrinhados.

Não por acaso, o país que se democratiza é também rico em exemplos da confusão envolvendo o público e o privado, como já lembravam as já citadas autoras de Brasil: uma biografia, e paradoxalmente imóvel, como sublinha Marcos Nobre. Disso são exemplos, entre tantos, o escândalo do Ministério das Comunicações, em que “grande número de concessões de rádios e TVs para políticos aliados ou não” ao presidente José Sarney foram concedidas “em troca de cargos, votos ou apoio” na década de 1980, ou, mais à frente, tanto o caso Vasp, na década de 1990 e, nos Anos 2000, o escândalo dos bingos e da Brasil Telecom, como lista Rogério Gesta Leal11.

Por fim, diante disso tudo (e retomando o fio condutor desta discussão), o que é possível depreender? Em primeiro lugar, que parece não haver uma determinante característica a dar forma àquilo que se observa como um embaralhamento do público e do privado, embora se perceba tanto caminhos quanto engrenagens a permitir certa opacidade na fronteira entre essas duas esferas. Por último, e mais importante: se o Estado é orientado tanto por interesses republicanos12 quanto, também, por motivações particulares13, a chave para essa compreensão é fundamentalmente hermenêutica, constituindo, assim, decisivo caminho à defesa das instituições, do Direito e, nestes tempos, sobremodo, da própria democracia.


1 BOMFIM, Manoel. A América Latina: Males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

2 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das letras, 1987.

3 NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

4 Entre os mais contundentes críticos das teses patrimonialistas, destaque para o sociólogo Jessé Souza. Por todos, ver, SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

5 LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Ver também MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sergio. Reinventando o capitalismo de Estado. O Leviatã nos negócios: Brasil e outros países. Tradução de Afonso Celso da Cunha Serra. 1.ed. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015.

6 SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

7 Inicialmente conhecida como Nova Crítica do Direito e assentada “entre dois grandes paradigmas filosóficos: o objetivismo e o subjetivismo”, visa o estabelecimento das “condições para a construção de uma teoria da decisão, fechando, assim, um gap existente na teoria e nas práticas cotidianas dos juízes”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 11.

8 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen E. Barbosa. Volume I. São Paulo: Editora UnB, 2004.

9 CARVALHO, Eneuton Dornelles Pessoa de. O aparelho administrativo brasileiro. In: CARDOSO JR., José Celso (Org.). Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Rio de Janeiro: IPEA, 2011.

10 NOGUEIRA, Roberto Passos; CARDOSO JR., José Celso. Tendências e problemas da ocupação no setor público brasileiro: conclusões parciais e recomendações de pesquisa. In: CARDOSO JR., José Celso (Org.). Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Rio de Janeiro: IPEA, 2011.

11 Antes ainda, é precisa lembrar, junto a esse autor, que nem mesmo o período autoritário deixou de ter no Estado o espaço claro para estabelecer um balcão de negócios particulares. Recorda-se, nesse sentido, o Relatório Saraiva. LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade. op. cit., p. 141-142.

12 No exemplo deste texto, a própria Constituição e o jogo de linguagem que projeta a impessoalidade do Estado.

13 Também nos exemplos deste pequeno ensaio, a tradição que insiste em permanecer entre nós desde o Brasil Colônia.

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