Ambiente jurídico

Uso crescente da precaução nos tribunais superiores

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11 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca
O princípio da precaução tem sido utilizado para justificar a regulação ou o impedimento de atividades ou empreendimentos cujas consequências e extensão dos danos ambientais não são plenamente conhecidas ou comprovadas. Cabe observar, primeiramente, que ainda, para alguns, em sede de doutrina, paira divergência a respeito da autonomia deste princípio e de sua diferença quanto à prevenção. Predomina o entendimento, assim sintetizado por Milaré, no sentido de que a prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos. Em outros termos, enquanto a prevenção trabalha com o risco certo, a precaução vai além e se preocupa com o risco incerto. Ou ainda, a prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução envolve o perigo abstrato.[1]

Fiorillo entende que “o chamado ‘princípio da precaução’, se é que pode ser observado no plano constitucional, estaria evidentemente colocado dentro do princípio constitucional da prevenção”.[2] Dessa orientação não destoa Sirvinskas para quem o princípio da prevenção é gênero no qual se inclui a precaução ou cautela.[3] De todo modo, seja no direito pátrio, seja no Direito Ambiental Internacional[4], a precaução tem sido tratada de forma independente da prevenção, embora inegável a existência de pontos de contato entre ambos.[5]

A doutrina de modo geral diferencia a prevenção da precaução na circunstância de a primeira exigir atuação estatal em face da certeza da degradação ambiental, enquanto, para a segunda, bastaria incerteza científica, seja dos efeitos nocivos, seja do nexo de causalidade, para justificar a regulação, a restrição ou a paralisação da atividade. O princípio da precaução é aplicado para impedir o “mero risco”, e o da prevenção para “evitar diretamente o dano”. O risco “pode ser entendido como a possibilidade de ocorrência de uma situação de perigo. Já o perigo nada mais é do que a possibilidade de ocorrência do dano”. Pode-se trabalhar com uma “reta causal”, em que a “situação da precaução está antes da situação de aplicação do princípio da prevenção em face do hipotético dano”. Outra distinção entre ambos está na finalidade de evitar o perigo concreto (comprovado cientificamente) para a prevenção, e de obstar o perigo abstrato (não comprovado cientificamente, mas que seja verossímil à sua ocorrência) para a precaução.[6]

O STF[7] e o STJ têm aplicado, nos últimos anos, o princípio da precaução, de modo autônomo, nos seus julgados. De fato, estando presentes o risco de dano e a incerteza científica, relacionados à atividade potencialmente danosa, esta deve ser suspensa para a tutela do meio ambiente, inclusive, com a inversão do ônus da prova contra o potencial poluidor-degradador.[8]

O princípio da precaução, em virtude das diferentes percepções de risco[9], costuma ser estudado a partir de três abordagens[10] ou sentidos:

a) em sentido forte ou pela abordagem radical, demanda a atuação estatal diante da mera possibilidade abstrata de risco. Preza pelo “risco zero”, exige a paralisação da atividade enquanto não sanadas as incertezas científicas e admite a inversão do ônus da prova;

b) a abordagem minimalista ou na versão fraca requer riscos sérios e irreversíveis, afasta a moratória e não conduz à inversão do ônus da prova.[11] É o sentido adotado por aqueles que criticam o princípio da precaução, ao fundamento de ser paralisante e desproporcional. Sunstein defende que as providências executadas “devem ser proporcionais ao nível de proteção escolhido” e a regulação tem de ser apoiada em uma análise de custo-benefício, já que o risco raramente pode ser reduzido a zero, bem assim reconhecida a relevância de considerações não econômicas. Acrescenta que a versão forte “não oferece qualquer tipo de orientação”, porque “proíbe todos os cursos de ação, incluindo a inação”, e impõe um “ônus da prova que é impossível de ser superado”. Alerta ainda que essa orientação poderá eliminar “benefícios de oportunidade” à sociedade, dar origem a “riscos substitutos” e trazer efeitos adversos em caso de regulação dispendiosa;[12]

c) para a concepção intermediária ou moderada, exige-se risco científico crível, não exclui a moratória e implica a carga dinâmica do ônus da prova.[13]

É mister uma “ponderação de valores”, para que o “aplicador do princípio da precaução proceda de modo a não violar os vetores do princípio da proporcionalidade – da vedação de excesso e de insuficiência – evitando assim danos ao meio ambiente e à saúde pública”.[14] Dessa feita, uma implementação exacerbada da precaução pode resultar em inércia geradora de prejuízos, diante da perplexidade derivada dos diversos riscos constatados. Sendo assim, a concepção moderada sustenta a incidência do princípio da precaução quando presentes indícios suficientes ou verossimilhança da relação causal entre a atividade e a degradação, não bastando simples temor remoto, medo público ou, até mesmo, a histeria coletiva.

Em recentes decisões, o STF esposou uma visão, ao menos, moderada do princípio da precaução, que poderá, de todo modo, justificar a suspensão de atividade diante de indícios suficientes de danos ambientais graves. Ao analisar ação civil pública envolvendo a exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, entendeu que a evolução científica poderia trazer riscos, muitas vezes imprevisíveis ou imensuráveis, a exigir uma reformulação das práticas e procedimentos tradicionalmente adotados na respectiva área da ciência. Consignou que, quando da aplicação do princípio da precaução, a existência de riscos decorrentes de incertezas científicas não deveria produzir uma paralisia estatal ou da sociedade, tampouco balizar a adoção de medidas derivadas de temores infundados. Em face de relevantes elementos de convicção sobre os riscos, o Estado deveria agir de forma proporcional. Por sua vez, o eventual controle pelo Poder Judiciário quanto à legalidade e à legitimidade na aplicação desse princípio haveria de ser realizado com prudência, com um controle mínimo, diante das incertezas que reinam no campo científico. A Suprema Corte concluiu, no caso, que não existiriam impedimentos a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), conforme estabelece a Lei nº 11.934/09.[15]

Em outro julgado, o STF decidiu pela possibilidade de suspensão de atividade de mineração, diante da constatação de evidência de danos às comunidades indígenas.[16] Semelhante posição foi adotada pelo STJ, ao decidir pela suspensão de licenciamento até que fossem dirimidas dúvidas sobre o impacto de uma obra.[17] Em outro caso, a Corte Superior, com esteio no princípio da precaução, exigiu a realização de licenciamento ambiental e estudo de impacto ambiental para o emprego de queima de palha de cana-de-açúcar em atividades agrícolas.[18]

Referido princípio, nesta era das mudanças climáticas e de necessária promoção do desenvolvimento sustentável[19], tende a ser de aplicação fundamental nos litígios climáticos ajuizados, e nos que ainda estão por vir, para diminuir as emissões de gases de efeito estufa e minorar as nefastas consequências do aquecimento global.[20]

De um modo ou de outro, atento ao princípio da proporcionalidade, o Poder Judiciário, como demonstrado nos precedentes das Cortes Superiores, ao verificar os requisitos da incerteza científica e o risco de dano, admitida a inversão do ônus da prova contra o demandado (gerador do risco), tem aplicado o princípio constitucional da precaução, com maior frequência, nos últimos anos. Fenômeno que é, em regra, benfazejo, em um país no qual os seus entes, tradicionalmente, nas esferas pública e privada, não são experts na gestão de riscos de dano como demonstram as catástrofes de Mariana e de Brumadinho. Ambas, apenas a título de exemplo, evidentes casos de má e precária governança.


[1] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015 p. 262-263.

[2] FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 91-92.

[3] SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 146.

[4] Ver, MACINTYRE, Owen; MOSEDALE, Thomas. The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law. Journal of Environmental Law, n.9/2, p.221, 1997.

[5] Ver, WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael. Manual de Direito Ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

[6] WEDY, Gabriel. O Princípio Constitucional da Precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 47-60.

[7] STF, Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, ADPF 101, j. 24.06.2009.

[8] STJ, 3ª T., AgRg no AREsp 206.748/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 21.02.2013, DJe 27.02.2013.

[9] Sobre o tema, ver: SLOVIC. Paul. Perception of Risk. London: Earthscan, 2000; MARGOULIS, Howard. Dealing With Risk. Chicago: Chicago University Press, 1996; COLLMAN, James P. Naturally Dangerous: Surprising facts about food, health and environmental. Sausalito: University Science Book, 2001; GILLAND, Tony. Precaution. GM Crops and Farmland Birds. In: MORRIS, Julian. Rething Risk and the Precautionary Principle. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000 ; MANDEL Gregory N; GATI, James Thuo. Cost-Benefit Analysus vs The Precautionary Principle: Beyond Cass Sunstein`s Laws of Fear. v. 5. Univesity Of Illinois Law Review. Lllinois, 2006, p.1037-1079.

[10] CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Direito Ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 56.

[11] Ibid.

[12] SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Revista de Direito Administrativo, Belo Horizonte, ano 2012, n. 259, jan./abr. 2012. Sobre uma abordagem minimalista do princípio da precaução, ver: SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005;Risk and Reason. S.e, 2002; The Arithmetic of arsenic, 90 Georgetown Law Review 2255, 2002; Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007. E, ainda, SUNSTEIN, Cass; HAHN, Robert W. The precautionary principle as a basis for decision making. The economist’s voice, vol. 2, n. 2, article 8, 2005. Disponível em: <http://www.ssrn.com/abstract= 721122>. Acesso em: 02.01.2020.

[13] CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Direito Ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 56.

[14] WEDY, Gabriel. O Princípio Constitucional da Precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 131.

[15] STF, RE 627189, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08.06.2016, DJe 03.04.2017.

[16] STF, Pleno, SL 933 ED/PA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ ac. Min. Marco Aurélio, j. 31.05.2017.

[17] STJ, Corte Especial, AgRg na SLS 1.524/MA, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. p/ Ac. Min. Presidente, j. 02.05.2012, DJe 18.05.2012.

[18] STJ, 2ª T., REsp 1285463/SP, Rel. Min. Humberto Martins, j. 28.02.2012, DJe 06.03.2012.

[19] Ver, WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

[20] Ver, WEDY, Gabriel. Litígios Climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. Salvador: Juspodvm, 2019.

Autores

  • é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law.

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