Ambiente jurídico

A proteção constitucional da fauna (parte 4)

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29 de fevereiro de 2020, 17h59

Spacca
Nos artigos de 30-11, 28-12 e 1-2 discorri sobre vários aspectos da fauna e sua proteção constitucional e legal mais sobre o ângulo dos humanos; mencionei no dia 1-2 o conflito entre a proteção dos animais e a cultura dos povos, citando que as brigas de galo haviam sido proibidas no Brasil por decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 1.856-RJ, Pleno, 26-2-2011, Rel. Celso de Mello; a mesma questão é neste momento objeto de apreciação pela Suprema Corte do Peru, conforme notícia recém publicada1. As touradas, outro exemplo, foram proibidas nas Ilhas Canárias em 1991 e na Catalunha, Espanha, em 2010, depois de intensa campanha de ativistas em favor dos animais e de outros ativistas, contra a lei, em defesa da tradição (e dos 40 mil empregos decorrentes da atividade)2.

Os animais e a natureza são sujeitos de direito, ou apenas protegidos pelos humanos por um sentimento moral, econômico ou cultural? É uma preocupação que vem da antiguidade e que envolve a existência ou não da alma, da razão e da dor, atributos que justificam o estado moral de que decorrem os direitos. Os defensores do direito animal, ou direito dos animais, afirmam que os animais são capazes de dirigir suas vidas e têm direitos morais básicos que devem ser reconhecidos em lei; mas não há uma definição clara da extensão dos direitos e das espécies abrangidas. A distinção pela razão (a racionalidade, que pode ser atribuída a poucos animais) é insuficiente, pois então negaríamos direitos a humanos desprovidos dela; é substituída pela distinção pela dor, conforme indica Jeremy Bentham no século XVIII (“‘a questão não é ‘eles pensam?’ ou ‘eles falam?’, a questão é: ‘eles sofrem?’”)3, ou por um estágio intermediário antes da consciência, a chamada ‘senciência’, a capacidade de ter percepões conscientes do que acontece e do que rodeia o animal (dor, agonia, medo, ansiedade, alegria) suficiente para incluí-los como sujeitos de direito.

Os defensores do direito dos animais dividem-se em algumas categorias ou grupos. Os utilitaristas, que derivam de Bentham, entendem que o uso dos animais pelos humanos deve ter a dor como medida; não se justifica o uso dos animais se a dor que lhes é inflingida é maior que a utilidade (daí o nome dessa corrente) ou benefício que traz aos humanos, como não se justificaria o mesmo uso de outros humanos; não se opõem, portanto, ao uso, ao abate de animais ou à experimentação científica, se adotadas medidas que evitem ou minorem o sofrimento ou dor animal.

Os bem-estaristas, que se aproximam dos utililitaristas, entendem que animais não podem ser sujeitos de direitos, assim como não são sujeitos de obrigações, por faltar-lhes a consciência suficiente para participar desse pacto social; não se opõem ao uso de animais no interesse humano, desde que não sofram desnecessariamente.

Uma terceira corrente entende que os animais são sujeitos de direito, pois possuidores de suficiente habilidade cognitiva; tem um valor intrínseco, não apenas um reflexo do interesse humano ou do valor que os humanos lhes atribuem. Esse entendimento reflete no Judiciário, em discussão ainda embrionária: 23 gatos foram admitidos como autores em uma ação na 5ª Vara Cível de Salvador-BA em uma ação de indenização contra construtoras que, proprietárias do terreno onde viviam, deram início à construção ali de um empreendimento comercial4. A Constituição do Equador de 2008 reconheceu a Natureza como sujeito de direitos5. A Bolívia, em 2011, proclamou a Lei dos Direitos da Mãe Terra ou Pachamama; na Nova Zelândia, uma lei atribui direitos ao Rio Wahganhui, relevante na cultura maori, como se fosse uma pessoa jurídica6. Dois rios sagrados do norte da Índia, o Ganges e o Yamuna, foram reconhecidos como pessoa jurídica pela Alta Corte do Estado de Uttarakhand, pois ‘a situação requer medidas extraordinárias para preservar e conservar os rios’7. Foi movida ação em Minas Gerais, em decorrência do desastre de Mariana, trazendo o Rio Doce como autor com pedido de garantia contra novos desastres e proteção à população decorrentes da tragédia de Mariana8.

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO, 15 de outubro de 1978, Paris, considera, entre outros, que todo animal possui direitos e merece o respeito dos homens como seu semelhante; todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência e ao respeito; o homem, espécie animal, não poder exterminar outros animais ou explorá-los; nenhum animal será submetido a maus tratos ou atos cruéis e, se necessário, o animal deve ser morto instantaneamente, sem dor ou angústia; os animais selvagens têm o direito de viver livre em seu ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático; todo animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e intensidade do trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso; a experimentação que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal; todo ato que implique a morte de um grande número de animais selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra a espécie; as cenas de violência de que os animais são vítimas devem ser interditadas no cinema ou na televisão, salvo se tiverem por fim demonstrar um atentado ao direito do animal9.

A aplicação dessas noções é complexa. Podemos incluir os animais no ‘todos’ do art. 225 da Constituição Federal?10 Se forem incluídos e forem entendidos como sujeitos de direito, são titulares de todos ou de apenas alguns direitos, e poderão os humanos continuar a valer-se deles para seus propósitos? Terão direito os outros seres vivos com menor grau de consciência ou senciência, como os peixes, os caracóis, as águas vivas, os seres unicelulares? Devemos incluir os insetos no conceito de ‘animais’, uma vez que os defensores falam no direito à vida? Se o ciclo da vida na natureza envolve o uso de uma espécie por outra na cadeia alimentar, o que há de errado e onde fixar o limite da atividade humana? Até onde pode ou deve ir a prevalência do interesse humano?

Como vimos antes, o direito brasileiro não reconhece os animais como sujeitos de direito e não prevê que compareçam em juizo ou fora dele em nome próprio; mas reconhece seu valor intrínseco como espécie e não como simples extensão do interesse humano, assegurando aos animais silvestres a vida em seu habitat natural, sem interferência nossa, e aos animais domesticados o direito a uma existência livre de desnecessário sofrimento ou crueldade, ainda que criados para abate ou para experimento científico. A ponderação do direito dos animais e do direito dos humanos, vimos no artigo anterior, vem sendo feita com dificuldade e com o reconhecimento de um ou de outro, caso a caso, esperando-se que evolua para uma maior proteção dos animais.

Deixo aos leitores a resposta dessas questões complexas.


1 PROTESTO DEFENDE RINHAS DE GALO E TOURADAS. Pelo menos dez mil peruanos marcharam ontem na Plaza San Martin, em Lima, em defesa das touradas e das rinhas de galo, atividades centenárias que podem ser vetadas pelo Tribunal Constitucional após um processo movido por grupos de defensores dos animais. “Unidos por um hobby, cultura e tradição”, dizia um cartaz levado pelos manifestantes convocados por uma associação de criadores de galos de briga do Peru. Não consegui notícia do julgamento, marcado para esta semana. (Jornal Estado de São Paulo, 22-2-2020, pág. A-8).

2 In https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa/espanha-aguarda-decisao-de-proibicao-das-touradas-na-catalunha,f25a462627b2b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html, consulta em 26-2-2020.

3 JEREMY BENTHAM, ‘Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação’, 1789.

4 Os gatos foram representados por sua guardiã Camila Dantas, que deles cuidava. As construtoras concordaram em abrigar os gatos, restando por decidir eventual indenização pela morte de dois deles e impedimento ao cuidado dos demais. In http://defesadafauna.blog.br/2020/02/14/juiz-aceita-23-gatos-como-autores-de-acao-de-indenizacao-por-maus-tratos/, acesso em 28-2-2020.

5 In https://agencia.ufc.br/a-natureza-como-sujeito-de-direito/

6 In https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/os-rios-tambem-sao-sujeitos-de-direitos-51zxdl86zm5zoxghrhk5g18ij/

7 https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2017/03/21/interna_internacional,855955/rio-ganges-vira-pessoa-juridica-na-india.shtml

8 In https://agencia.ufc.br/a-natureza-como-sujeito-de-direito/. Não localizei o andamento do processo.

9 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Declaração_Universal_dos_Direitos_Animais, acesso em 28-2020.

10 Art. 225: ‘Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado […]’

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