Opinião

Ministro Sergio Moro demonstra desconhecer regras de publicidade infantil

Autores

  • Adalberto Pasqualotto

    é professor titular de Direito do Consumidor no programa de pós-graduação da PUC-RS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

14 de fevereiro de 2020, 6h02

Em pronunciamento feito em seminário promovido pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) sobre regulação da publicidade infantil (sobre o qual estes autores escreveram há poucos dias neste mesmo espaço), o ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, em cuja estrutura se abriga a Senacon, disse textualmente, segundo foi divulgado: “Ouvi uma reclamação que me pareceu correta, na área da TV, de que uma regulação excessiva causava o afastamento da publicidade para esse setor. Como a TV muitas vezes sobrevive através de anúncios e anunciantes, isso gerava dificuldade de se produzir material destinado ao público infanto-juvenil”.

O que o ministro “ouviu” (parece haver aí uma confissão implícita de que o ministro não fala de ciência própria e que desconhece a matéria) não é um argumento novo. É literalmente o que consta em consultoria encomendada por Maurício de Souza Produções em 2014 a uma empresa privada.[1] A conclusão não poderia ser diferente, considerando-se que o consulente é um dos maiores interessados no país em fazer publicidade para as crianças. Por outro lado, é óbvio o compartilhamento desse interesse com as empresas comerciais de comunicação e com as agências de publicidade. Aliás, é esse consórcio de interesses (comercialmente legítimo, mas social e culturalmente opositivo) que faz a base de sustação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), cuja contaminada autorregulamentação da publicidade infantil foi tomada como modelo pela consulta pública em andamento, promovida pela Senacon.

O relatório Maurício de Souza foi contraditado por outro, encomendado pelo Instituto Alana à revista The Economist (sobre o qual, aparentemente, o ministro não “ouviu”).[2] O relatório da revista britânica conclui que a perda econômica do setor da publicidade direcionada às crianças gera resultados positivos de longo prazo para a população, sob a forma de benefícios qualitativos, como o aumento do bem­-estar psicológico e emocional das crianças, uma economia mais produtiva e um ambiente mais sustentável.

Há outros estudos que também devem ser ressaltados, entre eles o realizado pelo Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (Grim) da Universidade Federal do Ceará, que demonstrou que a publicidade infantil vai muito além dos canais convencionais, mesmo que nesse conceito se inclua a internet. Uma das práticas abusivas é realizada diretamente nas escolas, fazendo promoção comercial com personagens divulgados pela publicidade massiva à guisa de divertir as crianças. O estudo do Grim serviu de base para nota técnica da Secretaria Nacional do Consumidor, de 2016, condenando essas práticas. A Senacon atualmente age em sentido diametralmente oposto à nota técnica.

A preocupação com a publicidade dirigida às crianças não é uma jabuticaba. Em 2014, documento da ONU conhecido como "Relatório sobre o impacto do marketing sobre a fruição dos direitos culturais" afirmou que ações publicitárias, inclusive subliminares, interferem no acesso de povos e nações a seu patrimônio artístico, intelectual e cultural, assim como “na livre expressão, opinião e pensamento dos indivíduos, com especial atenção a grupos populacionais mais vulneráveis, como as crianças”.[3] Recomendou que os Estados protejam as pessoas dos níveis excessivos de publicidade, “com base na visão de que as mensagens comerciais podem receber menos proteção do que outras formas de discurso”, recomendação que deve valer especialmente para “proibir-se toda forma de publicidade comercial e de marketing em escolas públicas e privadas”.

Não é só. Documento denominado "Direitos da criança e princípios empresariais", lançado em 2013 conjuntamente pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef), Pacto Global das Nações Unidas e Save the Children, concita as empresas a não produzirem impacto adverso sobre os direitos das crianças, cumprindo as normas de conduta empresarial ditadas pela Assembleia Mundial da Saúde e então contribuindo, com o seu marketing, para a autoestima positiva das crianças, estilo de vida saudável e valores não violentos. O relatório expressa preocupação com o caráter desproporcional e onipresente da publicidade e marketing comerciais, capazes de influenciar as pessoas em um nível subconsciente e de produzir impacto significativo sobre a criatividade, afetando valores culturais e crenças filosóficas. Finalmente, manifesta-se a favor de cláusulas restritivas à liberdade do discurso comercial, entendendo que a autorregulamentação não é satisfatória, em razão da falta de transparência e de mecanismos eficientes.

Na Europa, a Diretiva 2010/13 e a Convenção Europeia de 1989 sobre televisão sem fronteiras estabelecem regras mínimas a serem observadas pela comunicação comercial na proteção das crianças e adolescentes e da dignidade humana e em respeito à diversidade cultural e linguística.

Diversos são os efeitos deletérios da publicidade sobre as crianças, entre os quais são notórios a adultização precoce, a erotização, a obesidade infantil ou o seu reverso, a bulimia, e adesão ao consumismo.

A proteção à criança no ordenamento jurídico brasileiro começa na Constituição, cujo artigo 227 estabelece o princípio da absoluta prioridade de proteção aos seus interesses, atribuindo responsabilidade nesse sentido à família, à sociedade e ao Estado. Portanto, que fique bem claro: se for necessário produzir programas infantis adequados à infância do ponto de vista educacional e cultural, que o Estado o faça, sim, como sempre fez com muita competência a TV Cultura de São Paulo. Também não seria demais lembrar que o Estado poderia desenvolver junto aos meios comerciais de comunicação social uma política de incentivos à programação infantil nos moldes da que é adotada para o cinema e as artes.

Os direitos fundamentais da criança são vinculativos aos deveres de proteção positivos do Estado (em qualquer esfera de poder), sendo certo que pela Constituição Federal já se irradia, ao menos, núcleo sensível exigente de ‘proteção primária’,aquele que é ex ante à própria lesividade e que tem na base a prevenção e a precaução como modelos antecipados de amparo, acolhimento e salvaguarda dos hipervulneráveis. Neste ponto, não há espaço para tergiversações ou omissões.

A proteção jurídica à criança segue na legislação infraconstitucional pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No que diz respeito à publicidade, o Código de Defesa do Consumidor considera abusiva a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, assim como qualquer prática comercial que se prevaleça da fraqueza ou ignorância do consumidor em razão da idade. Além disso, o Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/2016) manda proteger a criança “contra toda forma de violência e de pressão consumista”. Mencione-se ainda a aplicação correta que vem sendo feita dessa legislação pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem ratificado os conceitos legais de publicidade enganosa e abusiva dirigida às crianças.

Seria o caso de perguntar ao senhor ministro da Justiça se já leu as leis brasileiras a respeito dessa matéria. Seu pronunciamento faz presumir que não e deixa incontroversa a posição oficial assumida pelo seu ministério em favor das leis de mercado, desconhecendo os comandos constitucionais e legais que deveria fazer cumprir.

[1] GO Associados. Impactos econômicos da aplicação da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). São Paulo: GO Associados, 2014.

[2] The Economist. Os impactos da proibição da publicidade dirigida às crianças no Brasil. The Economist Inteligence Unit Limited, 2017.

[3] ONU. Relatório sobre o impacto do marketing sobre a fruição dos direitos culturais. Relatório de Farida Shaheed, 2016.

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