Contas à Vista

Limitação dos incentivos fiscais entre as PECs de Guedes e o TCU

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

4 de fevereiro de 2020, 14h31

Um dos problemas centrais apontados pelos economistas e demais reformistas de plantão diz respeito ao excesso de renúncias fiscais no Brasil atual. Embora seja sabido que uma renúncia fiscal equivale a uma receita que deixa de ingressar nos cofres públicos, trata-se de um dos temas de mais difícil delimitação conceitual em concreto, sendo que o Governo Federal (os anteriores e o atual) patinam no assunto, incluindo como renúncias fiscais em um documento oficial denominado de DGT – Demonstrativo de Gastos Tributários um conjunto de situações que tecnicamente não possuem identidade entre si.

Spacca
tratei do tema anteriormente, bem como José Maria Arruda de Andrade, dentre diversos outros.

O assunto não ficou de fora da mira do atual Governo Federal. Duas das PECs do ministro Paulo Guedes tratam da limitação das renúncias fiscais (incentivos fiscais) no Brasil: a PEC 186 (artigo 1º, que busca alterar o artigo 167, e artigo 6º) e a PEC 188 (artigo 1º, que busca alterar o artigo 167, §10 e incluir o artigo 167-A, inciso IX; e artigo 9º).

Trata-se de um lídimo desejo de política econômica, afinal o governo foi eleito e, dentro do jogo de forças políticas, respeitados os trâmites constitucionais, pode vir a se transformar em norma constitucional.

O problema é, mais uma vez, o método que se pretende implantar. Eis o objeto a ser analisado, sob a dicotomia entre o micro e o macrojurídico, tema sobre o qual venho tentando esboçar algumas linhas ainda desordenadas. Analisemos a proposta para melhor compreender o problema.

A proposta é vedara criação, ampliação ou renovação de benefício ou incentivo de natureza tributária pela União, se o montante anual correspondente aos benefícios ou incentivos de natureza tributária superar dois pontos percentuais do PIB”. Escrevendo de forma mais simples: a ideia é limitar o montante de incentivos federais ao PIB. Aqui mora a dúvida. Alcançado esse percentual, como será feito o corte?

Imaginemos a seguinte situação: uma empresa localizada em área incentivada pela Sudam ou pela Sudene, e que tenha obtido incentivos fiscais regionais para deixar de pagar Imposto sobre a Renda em razão do lucro da exploração de determinada atividade econômica. Quanto maior for o êxito desta empresa, maior será a renúncia fiscal — e o objetivo da norma será alcançado, que é desenvolver aquelas regiões.

Ou seja: o êxito do projeto, conforme as determinações legais, poderá implicar na revogação do incentivo. Não lhes parece haver algo estranho na construção jurídica das PECs?

Um leitor mais crítico poderá dizer que tudo tem limite, e que não se pode obter incentivos fiscais eternos. Concordarei com tal análise, mas, prosseguindo no exemplo, imagine-se que todas as empresas incentivadas, situadas nessas regiões, tenham êxito no mesmo período, e sua produção seja fortemente alavancada. De qual empresa será cortado o benefício e qual o manterá?

As PECs propõem que tais benefícios sejam reavaliados, no máximo, a cada quatro anos, “observadas as seguintes diretrizes: 1 – análise da efetividade, proporcionalidade e focalização; 2 – combate às desigualdades regionais; e 3 – publicidade do resultado das análises."

À luz desses critérios, a hipótese levantada não será esclarecida, pois não permite a criação de um discrímen entre as empresas bem sucedidas e que combatem as desigualdades regionais.

É bem verdade que as PECs propõem que tais incentivos somente sejam cancelados em 2026, tendo o Congresso Nacional “tempo mais do que suficiente para reavaliar, um a um, todos os benefícios ou incentivos de natureza tributária federais”, conforme consta da página 16 da Justificativa da PEC 188, que, inclusive, afirma que atualmente tais incentivos alcançam 4% do PIB.

Enquanto essas PECs tramitam no Congresso Nacional, o Plenário do TCU lavrou o acórdão TC 000.605/2019-0, em 22/01/20, tendo por Relator o Ministro Bruno Dantas. O foco do debate pode ser visto a partir desse trecho da ementa: “1. Medida legislativa instituidora de mecanismos de renúncias de receitas aprovada sem a devida adequação orçamentária e financeira e em inobservância ao que determina a legislação vigente de finanças públicas é inexequível, porquanto embora se trate de norma que, após a sua promulgação, entra no plano da existência e no plano da validade, não entra, ainda, no plano da eficácia, por não atender ao disposto no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, na Lei de Diretrizes Orçamentárias do exercício e no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (). Esta decisão é dinamite pura.

Vamos ao caso. Nos primeiros dias do governo Bolsonaro (03/01/19) foi sancionada a Lei 13.799, prorrogando até 31/12/23 o prazo para protocolização e aprovação de novos projetos que venham a ser considerados prioritários para o desenvolvimento regional, nas áreas de atuação da Sudene e da Sudam, podendo ser beneficiados (1) com a redução de 75% do imposto de renda para instalação, ampliação, modernização ou diversificação, bem como (2) pela aplicação do percentual de 30% do imposto de renda devido para reinvestimento nos empreendimentos. Ocorre que a renovação desse incentivo fiscal teria impactos fiscais relevantes em 2019, sem que a perda de arrecadação estimada em R$ 7 bilhões tenha sido prevista na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2019.

No dia seguinte foi editado o Decreto 9.682/19, regulamentando aquela Lei, e delimitando que tais incentivos deveriam observar os limites estabelecidos no DGT – Demonstrativo de Gastos Tributários, incluídos na estimativa da receita da LOA, sendo que, para o ano de 2019, a renúncia fiscal que tivesse sido concedida, e que ultrapassasse os limites nela determinados “somente entrarão em vigor quando implementadas as medidas de compensação” de que trata o inciso II do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Em português: o Decreto tentou dar um drible na Lei, adiando sua efetividade para um momento futuro e incerto, quando as medidas de compensação da isenção fossem implementadas.

Posteriormente, uma atenta unidade técnica do TCU, denominada Semag – Secretaria de Macroavaliação Governamental, formulou a Representação que gerou o acórdão sob comento, pois considerou que “a aprovação e sanção da matéria atinente à Lei 13.799/2019 não observou a legislação de regência de concessão dos benefícios tributários, quanto aos artigos 113 do ADCT, 14 da LRF e 114 e 116 da LDO/2019”. Instaurado o processo, diversos órgãos foram instados a se manifestar.

Destaca-se a lúcida informação da Receita Federal ao declarar que não tem condições de acompanhar em tempo real os efeitos da norma isentiva, de modo a cumprir os requisitos estabelecidos no Decreto, “uma vez que o benefício tem característica de auto fruição, de modo que se o contribuinte protocoliza o projeto e atende aos requisitos da lei, a Sudam e a Sudene não têm como negar o benefício, sob a alegação de já ter atingido a cota prevista. Nessa linha, não seria possível conhecer o valor da renúncia a priori, pois o lucro sob o qual incidiria o benefício só será conhecido ao término do exercício”. Bingo. Ponto para a Receita Federal que cometeu esse sincericídio ( = sinceridade suicida) contra o Decreto presidencial.

O fato é que, ao final do julgamento, o TCU determinou à Sudam e à Sudene que somente implementem as renúncias fiscais previstas na Lei 13.799/2019 quando sobrevier a implantação de todas as condições de eficácia previstas no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, no artigo 114 da Lei 13.707/2018 (Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2019) e no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

E determinou ao Poder Executivo que, no prazo de 180 dias, adote medidas com vistas a atender os requisitos estabelecidos naquelas normas, para que os benefícios previstos na Lei 13.799/2019 possam ter eficácia.

E mais, declarou “que houve exorbitância do poder regulamentar do Decreto, notadamente quanto aos seus artigos 2º e 3º, ensejando um conflito de ilegalidade entre o ato e a legislação que trata da matéria”.

Eis o ponto em que os dois assuntos se encontram. Como apontei anteriormente acerca das PECs: “outro ponto importante é a tentativa de regular as renúncias fiscais, porém como o fazer de forma macroeconômica, tal como proposto no artigo 167, XIV, da PEC 188? Um incentivo fiscal concedido gera um direito individual de gozo àquela empresa por prazo certo, então, como se pode reduzir tal benefício no curso da concessão? Isso foi esboçado pelo Planalto no artigo 2º, do Decreto 9.682/19, regulamentando a Lei 13.799/19, que prorrogou os incentivos fiscais para as áreas da Sudam e Sudente nos primeiros dias do ano. Penso que haverá alguma dificuldade em sua concretização entre o macro e o microjurídico.”

Ou seja, o modelo constitucional de limitação dos incentivos fiscais defendido pelo Ministro Guedes nas PECs foi implodido pelo acórdão do TCU. É bem verdade que existe enorme diferença entre uma norma constitucional e uma norma regulamentar, mas é necessário ter muita atenção ao modelo que está sendo proposto, que atenta violentamente contra a segurança jurídica individual de quem obteve o incentivo.

O voto do revisor, ministro Raimundo Carrero, traz uma pista sobre a conjugação entre estas duas perspectivas. É mencionado que “trata-se de típica concorrência de interesses, pois de um lado há o interesse privado do contribuinte que se vale do benefício tributário e de outro o interesse público concernente à higidez das finanças públicas. É bem verdade que renúncias fiscais também são do interesse público, pois se trata de instrumento público para o atingimento de finalidades públicas, tais como o desenvolvimento de uma região, ainda que isso implique também atendimento a interesses privados”. No caso, entendeu o Ministro Revisor que a modulação dos efeitos da decisão não ofenderia a segurança jurídica, seja sob a perspectiva pública ou privada, pois a atuação do TCU impõe “a necessidade de atuação primariamente na perspectiva da higidez das contas públicas”, embora o TCU não deva virar as costas “para eventuais consequências que suas decisões possam produzir na esfera privada e que atentem contra a segurança jurídica”. A modulação dos efeitos da Lei 13.799/19 foi aprovada pelo Tribunal, como se vê.

Tenho receio dos impactos financeiros dessa decisão do TCU nos beneficiários da Lei 13.799/19, empresários que investem no Norte e no Nordeste, que não poderão gozar dos benefícios que lhes foram concedidos em 2019 pela Sudam e Sudene, em face de problemas na norma, que não previu as medidas compensatórias impostas pelas diversas outras normas mencionadas.

Ocorre que a Lei 13.799/19 juridicamente permanece em pleno vigor, pois não foi considerada inconstitucional pelo Poder Judiciário, seja em controle difuso ou concentrado. O TCU é que faz o alerta para sua ineficácia, embora a considere existente e válida. Como o poder do TCU é enorme internamente à estrutura governamental federal, tudo indica que a Receita Federal, Sudam e Sudene não reconhecerão os incentivos que, a despeito de tudo, microjuridicamente foram regularmente concedidos e se incorporaram ao patrimônio jurídico desses beneficiários, concedidos com base em uma Lei que permanece plenamente vigente.

Isso seguramente ainda vai dar muita confusão. Fica o alerta às empresas incentivadas, em face do acordão do TCU, e ao Congresso, em face do modelo desenhado pelas PECs para o controle dos incentivos fiscais.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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