Sem data venia

Livro mostra o mundo visto pelos
olhos de Luís Roberto Barroso

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24 de dezembro de 2020, 11h23

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Livro de Barroso traz histórias de vida
do hoje ministro do Supremo
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Em setembro de 2009, Luís Roberto Barroso recebeu uma ligação do advogado Pedro Abramovay. "Professor, se o presidente o convidasse para o Supremo, o senhor aceitaria?". A pergunta era inusitada, mas não disparatada. Abramovay ocupava a Secretaria de Assuntos Legislativos do governo Lula e era ouvido não só sobre temas parlamentares, mas também sobre assuntos jurídicos relevantes. A escolha do próximo ministro do Supremo era um deles.

No primeiro dia daquele mês, o ministro Menezes Direito havia morrido, vítima de um câncer agressivo. E o governo estudava os possíveis nomes para substituí-lo. Barroso respondeu: "Pedro, se o presidente me convidar, aceito com muita honra. Mas de onde vem isso?".

Abramovay contou que o governo vivia um impasse. "O advogado-Geral da União, ministro Toffoli, tem uma relação pessoal com o presidente. O presidente Sarney apoia o ministro do Superior Tribunal de Justiça, César Asfor Rocha. O ministro Nelson Jobim apoia outro ministro do STJ, Teori Zavascki. E o ministro da Justiça, Tarso Genro, apoia o advogado trabalhista Roberto Caldas". Barroso, então, perguntou: "E quem me apoia, Pedro?". E ouviu: "Ninguém (risos). Mas também não tem nenhuma rejeição". Dias depois, Toffoli foi indicado ao cargo pelo presidente Lula e não se falou mais no assunto.

O saboroso relato do telefonema está no livro Sem Data Venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo, lançado neste mês pelo selo de não ficção da editora Intrínseca, o História Real — que colocou nas livrarias um pouco antes o indispensável Liberdade Igual, do advogado Gustavo Binenbojm.

Teori Zavascki se tornaria ministro do Supremo em novembro de 2012, no lugar de Cezar Peluso. Barroso assumiria o cargo de ministro da mais alta corte de Justiça do país sete meses depois, na vaga aberta com a aposentadoria de Ayres Britto.

O grande mérito do livro são justamente as histórias de vida, as experiências como advogado em Brasília, as descrições dos dramas e dificuldades de começo da carreira acadêmica e profissional e a narrativa que flui como uma boa conversa. A descoberta do Direito Constitucional como uma paixão aconteceu cedo para o hoje ministro. Não por acaso foi sua primeira opção como professor. Mas a advocacia constitucional ou seja, a atividade capaz de pagar suas contas, em um Brasil ainda domado pelo Direito Civil chegou um pouco mais tarde, depois de dois interessantes casos.

Um deles se deu no começo dos anos 1990, quando Carlos Eugênio Lopes, diretor jurídico da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), contratou o advogado Luís Roberto Barroso para enfrentar uma guerra de liminares entre a entidade e alguns clubes de futebol. O ministro conta o episódio.

"À CBF cabia organizar o campeonato brasileiro de futebol, selecionando os clubes que iriam participar com base em critérios previamente estabelecidos, que levavam em conta o desempenho em torneios anteriores. Acontece que os clubes que ficavam de fora vinham recorrendo ao Poder Judiciário para serem incluídos no campeonato nacional. E, assim, o juiz de cada estado ia determinando a inclusão do time da região. Como intuitivo, não havia como estruturar um certame se cada juiz mandasse incluir um clube. Diante desse quadro, fomos à Justiça invocando o artigo da Constituição que assegurava 'autonomia às entidades desportivas quanto à sua organização e funcionamento'. Autonomia significa o poder de decidir dentro de sua esfera de competência", diz trecho do livro.

Se as entidades tinham autonomia declarada pela Constituição Federal, não cabia ao Judiciário intervir. Salvo, claro, se houvesse alguma violação de cunho constitucional. Não havia. A CBF ganhou as disputas jurídicas. "Pensei: Esse troço tem futuro", escreve Barroso. E começou aí a investir na carreira de constitucionalista. "Com uma Constituição analítica, abrangente e detalhista como a brasileira, a judicialização de questões constitucionais se tornou um campo de trabalho no qual atuei com pouca concorrência por longo tempo".

Não deixa de ser curioso o fato de Luís Roberto Barroso, apontado por parte da comunidade jurídica como um ministro ativista, ter visto futuro no Direito Constitucional combatendo justamente um caso clássico de ativismo judicial.

O livro trata ainda de temas pessoais sensíveis, como o diagnóstico que recebeu de câncer no esôfago, em 2012, junto com a sentença: mais um ano de vida, talvez um pouco menos. A sentença foi derrubada por alguma instância superior e, hoje, não há sinal do câncer. Barroso abre sua relação com João de Deus, a quem foi apresentado por Ayres Britto na fase de tratamento de sua doença, e diz que ficou devastado com as revelações sobre seus crimes. Mas não faz julgamentos. "A mim, já me bastam os casos que tenho de julgar por dever de ofício".

Fora dos autos
O livro foi escrito para ser lido fora do mundo jurídico. Dividido em três partes, que podem até ser lidas de forma autônoma, apresenta a visão de mundo de um importante personagem do sistema político-jurídico do país. Na primeira parte, o autor conta sua história de vida, recheada de curiosidades. Como o sonho de ter sido jogador de futebol interrompido pela falta de talento que o levou ao vôlei, esporte que lhe rendeu o título de vice-campeão brasileiro pela seleção fluminense.

A segunda parte traz uma série de observações sobre o mundo e, além de revelar o gosto de Barroso pela leitura de distopias como Admirável Mundo Novo e 1984, traz ensaios sobre meio ambiente, sociedade, democracia e trata de humanidade e de suas três revoluções fundamentais: cognitiva, agrícola e tecnológica. Na terceira parte, a mais extensa do livro, o ministro olha para o Brasil e debate com franqueza temas políticos como corrupção, liberdade de expressão e costumes, momento em que ensaia sobre o jeitinho brasileiro e discorre sobre aborto, drogas, direitos LGBTI+ e racismo.

O ministro tem visão humana e progressista do mundo. Faz uma defesa aberta dos direitos das mulheres e de cotas raciais, por exemplo. É dele a frase, usada como epígrafe de um dos capítulos: "Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado com crime há muito tempo". Para ele, a criminalização do aborto é um erro. "Quando o Estado opta por mandar a polícia, o promotor ou o juiz obrigarem uma mulher a permanecer grávida do filho que ela não quer ter — não quer porque geralmente não pode — viola uma série de direitos constitucionais".

Economia, reflexos da epidemia da Covid-19, Amazônia, empreendedorismo, livre iniciativa, o tamanho do Estado, reforma política — todos os temas que importam recebem alguma atenção do autor. A educação é um capítulo especial. Nele, Barroso faz referência a uma pesquisa sobre educação básica no Brasil por ele desenvolvida  e publicada em artigo acadêmico. Elenca problemas, como a falta de alfabetização na idade certa, e propõe soluções, como a necessidade de uma verdadeira ênfase na educação infantil. "Quem acha que o problema da educação no Brasil é Escola sem Partido, identidade de gênero ou saber de 1964 foi golpe ou não está assustado com a assombração errada".

Quando trata de corrupção, das raízes do atraso brasileiro e de Direito Penal, Barroso traz uma reflexão importante. "O enfrentamento à corrupção não precisa de punitivismo, jacobinismo, nem a crença em vingadores mascarados. Nem Robespierre nem Savonarola", relata. Coloca nestas frases aquilo que pessoas inteligentes costumam reconhecer: o Código Penal não é uma ferramenta eficaz de combate ao complexo problema da criminalidade.

Ao falar da "lava jato", contudo, Barroso dá destaque apenas aos méritos da operação. Não trata de seus já conhecidos vícios e desvios. Na visão do ministro, ela foi "o mais extenso e profundo processo de enfrentamento de corrupção na história do país, talvez do mundo". É uma das visões possíveis, e tampouco é isolada. Mas, incompleta. De qualquer forma, como escreve o próprio autor em outro trecho do livro, numa sociedade aberta e democrática, acontece de pessoas esclarecidas e bem intencionadas terem posições diametralmente opostas.

É claro que o livro também trata de Supremo e Judiciário. Algumas das partes mais agradáveis estão em suas análises das constituições e da Constituição de 1988, do desenho institucional, da separação dos poderes e do tribunal ao qual pertence há sete anos. Ele critica a judicialização excessiva, lembra que nem tudo pode ser resolvido pela Justiça e conta casos anedóticos para dar colorido ao problema, como o da decisão judicial que fixou que a espuma do chope, conhecida como colarinho, deve ser considerada parte integrante do produto para fins de fiscalização.

A atualidade das discussões propostas pelo livro se revela em várias análises. Exemplo: "Como regra geral, decisões políticas devem ser tomadas por quem tem voto. Nessa linha, se o Congresso Nacional tiver atuado, editando uma lei, a postura do Judiciário deve ser de autocontenção, de deferência para com o parlamento. Por exemplo, o Congresso aprovou leis autorizando as pesquisas com células-tronco embrionárias e reservando 20% das vagas em concursos públicos para pessoas negras. Ambas as leis foram questionadas e eram de fato controvertidas. Mas, não sendo manifestamente inconstitucionais, não era o caso de o Supremo sobrepor a sua valoração política à que fora feita pelo Legislativo".

Em uma realidade na qual assistimos a ministros do Supremo suspenderem leis ou trechos de leis por meio de decisões individuais e demorarem, às vezes, anos para submeter suas decisões ao Plenário da Corte, a reflexão se revela bastante oportuna — como é a maioria dos debates propostos por Luís Roberto Barroso ao longo do livro.

O livro
Sem Data Venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo
Autor: Luís Roberto Barroso
Editora: Intrínseca
Páginas: 272
Preço: R$ 44,90

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