A detração, a condenação criminal e a Lei da Ficha Limpa — a ADI 6.630
22 de dezembro de 2020, 18h26
A Lei da Ficha Limpa começa a mentir no nome. Traz ela a ideia subjacente de pureza e de remédio para o grave caso da corrupção nacional. Passados dez anos, a mentira escancara-se pelos números e pela percepção geral das coisas. O Brasil, segundo dados da Transparência Internacional, mantém o pior patamar da série histórica do Índice de Percepção da Corrupção, desde o ano de 2012, caindo de uma posição no ranking de 180 países e territórios para o 106º lugar, em 5 sucessivos recuos[1].
O custo do erro da Lei da Ficha Limpa, fundado no regime de inelegibilidade da ditadura militar na busca de uma miragem chamada “moralidade para o exercício do cargo” (artigo 151, inciso II, IV da Constituição de 67[2]) não tem sido pequeno. Retornar ao paradigma do regime de exceção após a Constituição de 1988 ter expressamente abandonado figuras tais pela redação original do artigo 14, parágrafo 9º, foi a maior violência contra o regime democrático, desde o famigerado AI-5.
Nas eleições de 2020, 23.864 candidatos foram considerados “inaptos”, sendo a Ficha Limpa responsável pelo indeferimento de 2.354 candidaturas, ou 12,97%. A ausência de requisito de registro ceifou do pleito o número de 13.563 (74,74%) candidatos. Nas eleições majoritárias de 2018 foram 168 (6,52%) candidatos a presidente, governador, senador e deputados afastados do pleito. Nas eleições de 2016, os “inaptos” pela Lei das Inelegibilidades chegaram a 2.116 (11,09%)[3] pessoas. Não há dados para as eleições anteriores no sítio do Tribunal Superior Eleitoral, mas se pode apontar dados preliminares para as eleições de 2014 estimando como inelegíveis (“pessoas potencialmente inelegíveis”), fichas-sujas, o surpreendente número de 346.742 pessoas[4].
O povo foi proibido de escolher essas pessoas por decisões dos Tribunais de Contas, dos órgãos profissionais, das Câmaras de Vereadores, dentre outros algozes da escolha popular.
No âmbito do Direito, a Lei da Ficha Limpa trouxe a efeito aberrações como a incidência normativa sobre fatos passados, as inelegibilidades por presunção (artigo 1º, inc. I, alíneas “i”, inc. II, 1 a 16, alíneas “b”, “d”, ”f”, ”h”, ”g”, ”i”, ”j”), as inelegibilidades por autoridades políticas (artigo 1º, inc. I, alíneas “b”, “c”, “g”, “k”), autoridades administrativas (artigo 1º, inc. I, alíneas “g”, “m”, “o”, “q”) e até inelegibilidades curiosas como a indignidade do oficialato.
A indignidade do oficialato como causa de inelegibilidade é outro exemplo que espanta no regime nacional das inelegibilidades. Essa indignidade é declarada como pena acessória (artigo 98, II do Código Penal Militar) daqueles militares condenados por vários crimes[5], dos quais se destacava na época a pederastia militar (artigo 235 pederastia ou outro ato de libidinagem[6]), cuja leitura do texto não exige maiores comentários sobre a inadequação de sancionar a homossexualidade com oito anos de inelegibilidade: “Artigo 235. Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.
Na esteira das teratologias dessa lei, o prazo de defesa em um processo criminal acresce ao tempo de inelegibilidade, como será tratado mais adiante.
Já se teve a oportunidade de se demonstrar que nenhum outro país[7], dentre as democracias ocidentais, possui tantas inelegibilidades e que o regime nacional das inelegibilidades ofende a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (artigo 23[8]), a jurisprudência da Corte Interamericana (Caso Petro Urrego v. Colômbia, 2020, dentre outros[9]), a Convenção de Veneza[10] e não seria admitida na América Latina, na Europa ou nos Estados Unidos.
Em primeiro lugar, pode-se apontar neste consenso mundial algumas lições esquecidas: i) todo poder vem do povo e em seu nome é exercido, ou seja, as escolhas do povo devem ser respeitadas, sendo a restrição ao universo dos candidatos regra excepcionalíssima; ii) a criação de inelegibilidades permite a perseguição de minorias e também de opositores; iii) a limitação do universo de candidatos por critérios morais é instrumento típico dos regimes autoritários, porque, em última análise, cuida-se da iliberal tentativa do Estado definir em quem se pode votar — uma tutela estatal incompatível com o regime democrático.
Com efeito, o direito eleitoral não é instrumento de combate à corrupção e jamais será pela “terceirização” da soberania popular que o país irá melhor no trato com a coisa pública, nada obstante as boas e ingênuas intenções desse diploma legal. Aliás, a Lei da Ficha Limpa permite uma atuação heterodoxa dos estamentos burocráticos estatais com a criação de inelegibilidades a serviço das estruturas dominantes, seja pelas Câmaras de Vereadores, pelos Tribunais de Contas e demais atores do processo eleitoral, com o potencial de criar mais corrupção do que pretende afastar.
Vem assim em boa hora a decisão do Exmo. Sr. Ministro Kássio Nunes de suspensão desse entulho autoritário em uma de suas facetas muitíssimo perversa: a ausência de previsão de detração a impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos. Nos autos do processo da ADI 6.630 do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em petição assinada pelos ilustres Ezikelly Barros, Alonso Freire e Bruno Rangel, o novel ministro suspendeu parte dos efeitos da lei, em razão de condenação criminal, como noticiado a ConJur, para a “suspensão da expressão “após o cumprimento da pena”, contida na alínea ‘e’ do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/1990, nos termos em que fora ela alterada pela Lei Complementar 135/2010, tão somente aos processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE e do STF”[11].
Na hipótese de condenação criminal, a inelegibilidade surge com a decisão colegiada ou com o trânsito em julgado (alínea “e”, da Lei das Inelegibilidades), mas o prazo se prolonga para oito anos após o cumprimento da pena. Em realidade, há um prazo indefinido entre a condenação colegiada/trânsito em julgado e o cumprimento da pena ao que são acrescidos oito anos. O prazo de inelegibilidade deixa, então, de ser fixado em lei para tomar, como marco, uma situação de absoluta variabilidade que, necessariamente, irá superar aquela apenação, levando em consideração o prazo de duração do processo. A Lei da Ficha Limpa não previu detração (artigo 42 do Código Penal), deixando de computar a dedução do tempo de inelegibilidade escoado desde a condenação colegiada.
Assim, o tempo de inelegibilidade variará de acordo com a duração do processo. Isto significa que a interposição de recurso pela parte impende em aumento de sua pena, porque o trânsito em julgado vai se lançar para o futuro em data incerta e, destarte, o cumprimento da pena. O ministro Cezar Peluso, nos debates do julgamento da ADC 30 sobre a Lei da Ficha Limpa, já havia advertido para mais esse atentado ao Direito (acórdão, fls. 177): “Esse raciocínio transforma uma garantia constitucional primária da área processual, que é o direito ao recurso, num empecilho jurídico, num agravamento da pena, num agravamento da sanção. Isto é, aquilo que o sistema concebe como garantia do cidadão se transforma em causa de exacerbação de restrição de direitos”.
O simples exercício da ampla defesa e do devido processo legal (artigo 5º, inciso LV) no seu sentido procedimental, deste modo, redunda em automático e severo prejuízo à parte, porquanto, o início do prazo de inelegibilidade de oito anos somente vai começar no cumprimento da pena e esta somente será adimplida, quando o processo chegar a seu termo. Ademais da violação do devido processo, a variabilidade do tempo da condenação atenta, claramente, contra a noção mais singela de previsibilidade e de segurança jurídica, como disse o Ministro Kássio Nunes: “Isso porque a ausência da previsão de detração, a que aludem as razões iniciais, faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal”.
A Lei da Ficha Limpa é tanto pior pelo “espírito do tempo” que enaltece. Uma ideia de um direito eleitoral filtrado pelo conceito de moralidade e da periculosidade do homem público, animal a ser contido, subjugado a bel-prazer dos intérpretes, permitindo leituras cada vez mais restritivas do fenômeno democrático com suas mesquinharias e proibições, em contradição com a liberdade exigida para vivificar a democracia. Oxalá a decisão e coragem cívica do Exmo. Sr. Ministro Kássio Nunes representem uma mudança desses tempos equivocados…
[1] Dados do IPC de 2019: Índice de Percepção da Corrupção – IPC 2019 | Transparência Internacional – Brasil. Disponível em: <www.transparenciainternacional.org.br> Acesso em 20.12.2020
[2] A “moralidade para o exercício do cargo” foi inserida pela Emenda Constitucional n. 8, de 14 de abril de 1977, promulgada pelo Pres. Geisel no chamado “Pacote de Abril” para manipular as eleições de 1978 e impedir a ascensão do MDB no Congresso Nacional, dentre outras diatribes como a eleição indireta de governadores, senadores biônicos, sublegenda e a divisão do Estado do Mato Grosso. Curiosamente, no dia do anúncio do Pacote, o Conselho Federal da OAB elegeu Raymundo Faoro, para quem a diminuição do quórum das emendas constitucionais deixava uma “porta entreaberta”, como lembrado por Gaspari. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo : Companhia das Letras, 2004, p. 367.
[3] Disponível em:< Estatísticas eleitorais — Tribunal Superior Eleitoral (tse.jus.br)> Acesso em 20.12.2020
[4] “Levantamento da Procuradoria-Geral da República (PGR) aponta que existem no Brasil, atualmente, 346.742 processos de potenciais inelegíveis devido à Lei Complementar 123/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, e por outras condenações. Os dados parciais foram compilados no último dia 24 e ainda estão ainda em fase de consolidação”. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-07-02/brasil-tem-mais-de-346-mil-fichas-sujas-impedidos-de-disputar-a-eleicao.html>. Acesso em: 03 jul. 2014.
[5] Dispõe o Código Penal Militar: “Artigo 100. Fica sujeito à declaração de indignidade para o oficialato o militar condenado, qualquer que seja a pena, nos crimes de traição, espionagem ou cobardia, ou em qualquer dos definidos nos arts. 161, 235, 240, 242, 243, 244, 245, 251, 252, 303, 304, 311 e 312”. São os crimes de traição, espionagem ou cobardia (arts. 355 a 367 – tempo de guerra) ou em qualquer dos definidos nos arts. 161 (desrespeito a símbolo nacional); 235 (pederastia ou outro ato de libidinagem); 240 (furto simples); 242 (roubo simples); 243 (extorsão simples); 244 (extorsão mediante sequestro); 245 (chantagem); 251 (estelionato); 252 (abuso de pessoa); 303 (peculato); 304 (peculato mediante aproveitamento de erro de outrem); 311 (falsificação de documento) e; 312 (falsidade ideológica), todos do Código Penal Militar.
[6] Em 2015 parte desse tipo penal foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente no que diz respeito à pederastia, nos autos do processo da ADPF 291/DF. Atos de natureza libidinosa entre pessoas de gêneros diversos no ambiente castrense são ainda crimes e geram inelegibilidades, conforme se colhe da ementa do acórdão: “1. No entendimento majoritário do Plenário do Supremo Tribunal Federal, a criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar justifica-se, em tese, para a proteção da hierarquia e da disciplina castrenses (artigo 142 da Constituição). No entanto, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, contidas, respectivamente, no nomen iuris e no caput do artigo 235 do Código Penal Militar, mantido o restante do dispositivo”. Disponível em:< Pesquisa de jurisprudência – STF> Acesso em 20 dez. 2020
[7] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. O Controle de Convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: Direitos políticos e inelegibilidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis : Habitus. 2020.
[8] A Convenção Americana trata das possibilidades específicas de sua restrição (artigo 23): motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação por juiz competente em processo penal. Essas são as únicas restrições aos direitos e oportunidades de participação política acolhidas pela norma convencional, dada a repercussão desses direitos fundamentais. A possibilidade de restrição do direito fundamental político, exclusivamente, por condenação criminal, como consta do artigo 23, foi proposta pelo delegado brasileiro Carlos A. Dunshee de Abranches, quando da discussão da Convenção Americana, conforme voto concorrente do Juiz Diego García-Sayán no Caso López Mendonça. Actas y Documentos de la Conferencia Especializada Interamericana sobre Derechos Humanos. Acta de la Decimotercera Sesión de la Comisión “I”, Doc. 54, de 18 de noviembre de 1969, San José, Costa Rica, pág. 254.
[9] Caso Petro Urrego vs. Colombia (sentença publicada em 8 de julho de 2020). Nesta decisão a Corte decidiu: ”95. A Corte adverte que a Comissão e as partes sustentam interpretações divergentes a respeito do alcance do artigo 23.2 da Convencão, em particular sobre se o respectivo artigo admite restrições aos direitos políticos das autoridades democráticamente eleitas em razão de sanções impostas por autoridades distintas de um “juiz competente, em processo penal”, e as condições em que ditas restrições poderiam ser consideradas válidas. A respeito, o Tribunal recorda que no Caso López Mendonza vs. Venezuela se pronunciou sobre o alcance das restrições que impõem o artigo 23.2 a respeito da inabilitação do Sr. Leopoldo López Mendoza por parte do Controlador Geral da República, mediante o qual lhe foi proibida sua participação nas eleições regionais do ano de 2008 na Venezuela. […] 96. A Corte reitera que o artigo 23.2 da Convenção Americana é claro no sentido de que dito instrumento não permite que órgão administrativo algum possa aplicar uma sanção que implique em restrição (por exemplo, impor uma pena de inabilitação ou destituição) a uma pessoa por sua má-conduta social (no exercício da função pública ou fora dela) para o exercício dos direitos políticos de votar e ser votado: só pode o ser por ato jurisdiccional (sentença) do juiz competente no correspondente processo penal. O Tribunal considera que a interpretação literal deste preceito permite chegar a esta conclusão, pois tanto a destituição como a inabilitação são restrições de direitos políticos, não somente daqueles funcionarios públicos eleitos popularmente, como também de seus eleitores”. Disponível em: < seriec_406_esp.pdf (corteidh.or.cr)> Acesso em 20 dez. 2020
[10] No sistema europeu, a Comissão Veneza (Comissão Europeia pela Democracia pela Lei) produziu o Código de Boas Práticas em Temas Eleitorais[10] (2002), sob os auspícios da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No que diz respeito à privação dos direitos políticos (votar e ser eleito) são os seguintes requisitos cumulativos: i) deve constar em lei; ii) a proporcionalidade deve ser observada; as condições para a privação do direito de participar de uma eleição podem ser menos rígidas do que a privação do direito de votar; iii) a privação deve ser baseada em incapacidade mental ou condenação criminal oriunda de um crime grave (“serious offense”); ademais, a retirada de direitos políticos ou a descoberta de incapacidade mental poderá somente ser imposta por decisão expressa de uma Corte de Justiça. (tradução nossa). Trata-se do corpo consultivo do Conselho da Europa sobre temas constitucionais. European Commission for Democracy through Law, Code of Good Practice in Electoral Matters: Guidelines and Explanatory Report – Adopted by the Venice Commission at its 51st and 52nd sessions (Venice, 5-6 July and 18-19 October 2002). Disponível em: < default.aspx (coe.int) >. Acesso em: 20 dez. 2020.
[11] Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp> Acesso em 20 dez. 2020.
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