Opinião

A queda em três atos: de Camus à "lava jato": relatos e fatos!

Autor

  • Pedro Estevam Serrano

    é advogado professor de Direito Constitucional Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da PUC-SP pós-doutor em Teoria Geral do Direito pela Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

21 de dezembro de 2020, 16h21

Spacca
No excelente livro A queda, de Albert Camus, a narração é em primeira pessoa: “Quando penso nesse período em que eu pedia tudo sem dar nada em troca, mobilizava tantos seres ao meu serviço, colocava-os em uma espécie de geladeira, para tê-los um dia ou outro em minhas mãos, quando me convinha…”.

Agora vamos para outro “livro”. O livro da vida real. Do que existe e existiu. E o que existiu? A queda de um juiz e de uma operação. Façamo-lo por meio de uma metáfora. Ou alegoria. A partir de A queda, de Camus. Tudo para mostrar uma queda.

Três personagens veem um sujeito cair do décimo andar de um prédio. É dia claro. Não há qualquer dúvida sobre o fato. Um corpo que cai. E está lá um corpo estendido no chão.

O primeiro comentador ou os primeiros comentadores que viram a queda são advogados. Eles conhecem o sujeito que caiu. Sabem o que ele fazia no prédio. E relatam, incansavelmente, desde o momento da queda, o que viram: um corpo que caiu. Escrevem tudo. Todos os dias. Desde o dia da queda. Relatam em livros. Contam várias vezes quem caiu e como caiu o corpo. Porém, tarefa difícil. Jornalistas e jornaleiros e gente do Judiciário e Ministério Público desdenham do relato. Muitos dizem que o corpo nem caiu.

O segundo comentador que viu a queda do corpo conta detalhes dos bastidores. Bilhetes trocados entre personagens no prédio. Não, não há análise mais especifica sobre o corpo que caiu. Sim, conta que o viu o corpo cair. Ainda bem, dizemos. E, sim, trata-se de um bom relato.

Há também um — muito bom — relato mais scholar sobre a queda do corpo. Conta a velocidade do corpo. Mediu o atrito do ar. E, é claro, tudo depois de já ter sido dito “está lá um corpo estendido no chão”. Resultado: os “não imparciais”, os que relataram primeiro a tal queda… não são críveis. Ou “não tão críveis”.

Fica a pergunta: se três pessoas (chamemo-las de testemunhas da história) estão diante de um fato — um corpo que cai — qual seria a diferença se os primeiros relatantes fossem “não imparciais”? Aliás, seria possível alguém fazer descrição do fenômeno usando o método empírico-analítico? Seria o Direito um sucedâneo do empirismo? “Olho para um fenômeno e o ‘descrevo’”? Causalidade? A água cai da montanha e eu relato. Ou, melhor, um corpo cai do décimo andar e o relato — considerado — (mais) crível é o desinteressado.

O que é um relato desinteressado? Escreveu um jornalista: todos relataram a caída do corpo, mas ainda bem que agora vieram os relatos imparciais.

Fatos, relatos. Vale lembrar aqui de uma anedota contada por Jonathan Swift, em que Gulliver assiste a tentativa de alguém fazer um relato bruto de um relógio pendurado em uma corrente. Ali, em 1726, Swift, com sua verve moderna, mostrava que não existem “fatos brutos” e que, portanto, só existem “fatos institucionais”. Alasdair MacIntyre dizia: mesmo quando eu digo que um relógio está estragado, estou emitindo juízo de valor.

Portanto, imparcial, mesmo, quem deve ser é o juiz. E não existe grau zero de sentido.

“— Um corpo que caiu e, agora, está lá estendido no chão”. Como seria o relato desse “fato bruto”?

Eis a questão.

Autores

  • é advogado contratado pela Fundação Renova, professor de Direito Constitucional, Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da PUC-SP, pós-doutor em Teoria Geral do Direito pela Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

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