Embargos Culturais

Edgard Allan Poe e os fundamentos psicanalíticos do romance policial

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

6 de dezembro de 2020, 8h02

Luiz Alfredo Garcia-Roza, psicanalista e escritor carioca, deixou-nos em abril de 2020. Foi um grande lutador. Autor de ampla obra de teoria psicanalítica, com estudos sobre Sigmund Freud, Garcia-Roza passou a publicar ficção quando completava 60 anos. "O silêncio da chuva", seu romance de estreia, publicado pela Companhia das Letras, levou muitos prêmios importantíssimos, a exemplo do Nestlé de Literatura e do Jabuti. Garcia-Roza dedicou-se ao romance policial, que muitos consideram um gênero menor. Difícil o sucesso do gênero entre autores brasileiros. O senso comum é refratário à polícia e ao Judiciário, o que levaria a uma falta de verossimilhança entre um detetive eficiente e um crime bem engendrado. Contou em entrevista que não havia como publicar contos policiais ao longo dos anos 60 e 70, justamente porque a polícia compunha as forças repressivas. Temia a censura.

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Mais tarde Garcia-Roza tentou o gênero romance policial e obteve sucesso. Criou o detetive Espinosa, e um mundo à parte, que se desdobra em algum lugar em Copacabana. O autor é carioca, e descreve o Rio de Janeiro com muita qualidade. Além de primoroso escritor de romances policiais (o meu predileto é "Achados e Perdidos", que um dia desses comentarei aqui), Garcia-Roza também teorizou sobre esse importantíssimo gênero, cujos nomes centrais são Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, George Simenon e Raymond Chandler. É um gênero relegado a um segundo plano, o que não me parece justo. Jô Soares, inclusive, tentou a fórmula. A leitura de "O Xangô de Baker Street" é muito prazerosa.

Para Garcia-Roza, o pai fundador do romance policial é o norte-americano Edgard Allan Poe. "O homem das multidões" é o texto fundante. Em forma de conto, fixa um conceito de criminoso, de crime, de autor e de leitor. "O homem das multidões" é um texto conceitual. "Os crimes da rua Morgue", também de Poe, publicado em 1841, é o primeiro livro dessa forma de literatura, ainda que em modo experimental. Garcia-Roza expõe sistematicamente o assunto. Sua premissa é o fato de que a essência do crime passa ao largo de quem investiga, ou de quem narra. Entende que não se deve interessar (necessariamente, e do ponto de vista filosófico) por quem matou. O interesse deve recair nas razões do crime. Seria mais importante se saber por que se matou, do que simplesmente quem matou. É uma concepção filosófica de criminologia. Nada prática, especialmente no contexto de uma sociedade punitiva.

A busca do criminoso se desdobra em processo lógico-dedutivo, que não alcança o núcleo volitivo do crime. O detetive é um agente pragmático, que colhe indícios e evidências e que aposta em uma solução. Está em face de um enigma. Para Garcia-Roza esse enigma é inexplicável, inatingível, invisível, não se permite codificar. O enigma é imperscrutável, porque é a intenção do criminoso. Garcia-Roza explica-nos que esse conceito de impossibilidade de decifração está em "O homem das multidões". Falo desse conto, e antes lembro um pouco do Poe.

Edgard Allan Poe nasceu em Boston, em 1809. Já havia uma universidade na região (Harvard), e a cidade era um importante centro cultural. Órfão ainda muito criança, foi adotado e criado por um comerciante escocês e sua esposa. Do pai adotivo tem seu segundo nome, Allan. Com o casal que o recebeu afetivamente foi para a Inglaterra, retornando para os Estados Unidos com cerca de 11 anos de idade. Há indícios que tivesse memória das experiências lá vividas, como se percebe em alguns de seus livros. Ainda que de Boston, a Atenas da América, estudou na Virginia, onde Thomas Jefferson havia fundado uma universidade, seu maior orgulho.

Poe rompeu com o pai adotivo e retornou para Boston. Uma relação difícil. Ainda persistia permanente ameaça de conflito com a Inglaterra. Poe alistou-se no Exército, porém foi dispensado, por indisciplina. O pai adotivo faleceu, e nada deixou para o filho em seu testamento. Com algum talento para narrativas, Poe começou a escrever textos curtos. Casou-se aos 26 anos com uma prima, muito nova, a menina tinha 13 anos. Passou a viver em Nova Iorque, com a esposa e sogra. Ganhava a vida escrevendo textos de ficção para jornais e revistas. Foi um dos precursores da discussão relativa aos direitos autorais. Em 1845, publicou "O Corvo", um poema genial e aterrorizante. Dois anos depois, enfrentou uma batalha perdida contra o alcoolismo. Conta-se que viveu deploravelmente seus últimos anos. Era um homem angustiado.

Poe é considerado o primeiro autor verdadeiramente americano. No entanto, sua fama ocorreu primeiro na Europa. Foi traduzido por Baudelaire, o que o fez conhecido na França. Há, assim, um Poe europeu, bem antes de um Poe norte-americano. Poe foi um inovador. Criou um gênero (a ficção científica), uma mania (histórias de detetives) e uma obsessão (contos de terror). Lendo Poe pensamos que nossas consciências suportam uma carga tão pesada de horrores que somente descarregamos esse peso quando morremos. A sepultura pode ser o destino de nossas culpas. Por isso, não conseguiríamos revelar causas e responsáveis pela maioria dos crimes. A pulsão de morte (o tânatos) nas categorias freudianas, poderia representar uma ânsia libertadora de não movimento, o que se dá com a não vida.

"O homem das multidões" é um de seus textos mais apaixonantes. Há alguns traços de algum intimismo surrealista. Em Londres, sentado em um café, um homem reconhecia que há uma satisfação positiva no simples fato de que respiramos. Viver é gostoso. Esse homem aparentava grande interesse por todas as pessoas e coisas. O café se localizava em uma rua movimentada. A noite começava a cair. Observava a fauna encantadora das ruas. Notava as pessoas. Da mesa do café, constatava que iam e vinham. Para onde? E por quê?

Pelo modo como aqueles londrinos se vestiam intuía que eram nobres ou mercadores ou advogados ou lojistas ou agiotas ou uma tribo de burocratas e escreventes. Havia também elegantes batedores de carteiras, jogadores medievais, e um tipo de gente que atraía os mendigos da rua. Havia também mocinhas humildes que voltavam do trabalho para lares sem alegria. Havia também prostitutas de todas as idades, e de todas as espécies. E havia ainda bruxas enrugadas. E carregadores e ébrios e exibidores de macacos. É certamente a visão de um americano em Londres.

Com o rosto colado da vidraça do café, percebeu um homem que passava, cuja expressão era absolutamente peculiar. Imaginou quanta história se escondia naquela vida. O homem era magro. Roupas sujas e estragadas. Resolveu segui-lo.

A chuva começava a cair e a multidão se agitava. Uma enorme quantidade de guarda-chuvas aparecia não se sabe de onde. O homem andava pela rua principal, cortava travessas e retornava. O narrador nos conta que o homem da multidão apressava o passo com firmeza e segurança. Dava volta e refazia o mesmo caminho, refazendo e desfazendo a operação. Com muita agilidade, prossegue o narrador, revelava conhecer todos os caminhos possíveis.

O tempo passava, a noite avançava e a multidão diminuía. Quem o seguia não entendia os caprichos de quem era seguido. Avançou para as regiões mais sujas da cidade. A metrópole do capitalismo continha suas contradições. À época, as camas jamais esfriavam nos dormitórios das fábricas inglesas. O dia ia romper. O homem continuava andando e agora se confundia com aqueles que rumavam para o trabalho, misturando-se com a multidão de ébrios que resistia ao nascer do dia. O sol se ergueu. O narrador conta-nos que seu personagem estava fatigado.

O homem da multidão não parava. Recusava a solidão. Quem sabe, insinua o narrador, seria em vão segui-lo, nunca se pode saber dele ou de seus atos. Confunde-se com a multidão, lutando contra o isolamento, que é um isolamento que de algum modo a vida nos impõe. Uma pessoa perdida e solta na multidão parece a conselheiro íntima de nossa angústia. Tem-se a impressão que Poe pretendia unir arte e natureza, narrativa e sentimento de isolamento, demonstrando na existência alguma uma inutilidade sublime.

O homem da multidão vive só, não se sabe se na tristeza ou na alegria. Não conta com ninguém. Mas pode não ser diferente de quem presume que conta com toda a gente.

Para o homem da multidão, família e amigos exigem uma espécie de renúncia, que pode ser a mais totalitária das pressões que sofremos. Talvez Poe nos sugira que somos, ou queremos ser, mais um da multidão.

A teoria psicanalítica funda-se sobre dois tipos penais (ou quase penais): o parricídio e o incesto. Poe concluiu o conto observando que o homem da multidão "(…) é o tipo e o gênio do crime profundo. Basta estar só". O crime, nessa lógica, seria o resultado de ação ou omissão imperscrutável, que não se consegue explicar. O crime é como o homem da multidão, intangível em sua onipresença, mas potencializado em sua inacessibilidade.

O detetive dos romances policiais busca o criminoso com base em conjecturas sobre os motivos que levaram ao crime. Por isso, nos surpreende. Ao fim, elenca e aponta as provas fáticas, que apenas sustentam a suposição dos motivos que determinaram a conduta criminosa. É essa a tarefa psicanalítica do detetive. Toda a literatura do romance policial, penso, é uma exuberante nota de rodapé a essa genial intuição de Edgard Alan Poe.

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