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A atuação da Justiça diante do abuso de álcool e outras drogas

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31 de agosto de 2020, 10h14

O poder estatal de punir tem seus limites estabelecidos em lei, não admitindo excessos, tampouco proteção deficiente. Dessa forma, esse poder deve ter como norte o Direito, firmar o olhar na realidade social e contemplar, também, as medidas alternativas que permitam abranger, inclusive, os casos em que o sistema de Justiça alcançar pessoas que abusam de álcool e outras drogas.

No tocante ao álcool, ao comparar os resultados do 1º e 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgados em 2006 e 2012, respectivamente, nota-se aumento de 10% da quantidade habitual do seu consumo entre as pessoas que beberam 5 doses ou mais dessa substância.[1] O texto do segundo levantamento ressaltou os riscos de o consumo ser igual ou superior a 5 doses, no caso de homens, e igual ou superior a 4 doses, no caso de mulheres, em uma mesma ocasião, num intervalo de até 2 horas. O 2º Lenad, também, apontou a maconha como droga ilícita de maior prevalência entre brasileiros, usada alguma vez na vida por 5,8% da população adulta, seguida pelo uso da cocaína por 3,8% e pelo uso do crack por 1,3%.

No campo das práticas administrativa e judiciária pessoas que cometem infração de menor gravidade podem sofrer a sanção de advertência, cuja finalidade é exatamente alertar e desestimular comportamento considerado desviante, cabendo aplicar penalidade diversa se repetida a conduta. Por exemplo, o Código de Trânsito Brasileiro permite à autoridade, no caso do cometimento de infração de trânsito leve ou média, aplicar advertência ao motorista infrator. Na mesma direção, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 autoriza ao juiz impor, entre outras, pena de advertência à pessoa que portar droga para uso próprio.

Há uma experiência interessante trazida pela reportagem Escola de Homens[2], que tratou de casos de violência doméstica, mostrando um grupo de homens potencialmente capazes de desestruturar o equilíbrio de suas companheiras e familiares, que foi reunido com o objetivo de lhes permitir refletir o quanto é importante respeitar e considerar a posição do outro no relacionamento afetivo. O vídeo mostrou detalhes dessa experiência, conduzida por profissional do sexo feminino que durante oito semanas organizou reuniões com esses homens, colhendo ao longo desse período importantes interpretações e reflexões sobre a convivência humana e as questões de gênero.

Observado esse quadro, poderia a Justiça Criminal agir de modo diferenciado ao se deparar com alguém encaminhado ao sistema judicial com visíveis sinais de abuso de álcool e outras drogas que, em razão dessa situação, violou norma penal? A obrigação de aplicar a lei deve sistematicamente afastar o profissional da área jurídica de conhecer a relação da pessoa com o abuso de substâncias? Nesse cenário, seria possível propor alternativa que facilitasse o infrator encontrar cuidado para esse abuso que pode ter contribuído para a infração?

Como responsabilizar o condutor de um veículo particular que ocasionalmente dirige sob efeito de álcool sem causar prejuízo direto a terceira pessoa? Como punir a pessoa que pela primeira vez subtrai, sem empregar violência ou grave ameaça, bem patrimonial alheio para transformá-lo em recurso para adquirir droga de sua preferência?

Nesses casos, o sistema de Justiça deve se esforçar para apresentar ao infrator e seu advogado alternativas à aplicação direta da lei, enfrentando responsavelmente a situação e as consequências, mediante pacto ou acordo que facilite o infrator a lidar com a causa que contribuiu para o cometimento da prática ilícita, oferecendo apoio e espaço para reflexão sobre o fato que o levou à Justiça.

Em outras palavras, a Justiça deveria ressaltar seu viés educativo, buscando na lei mecanismos para punir sem aprisionar e reprovar sem censurar, mas agindo com a necessária firmeza e a indispensável brandura, estabelecendo canais de comunicação com o infrator e sua defesa técnica, com o emprego de práticas consensuais capazes de despertar o infrator e lhe ajudar, se quiser, a alterar rumos futuros de vida.

A legislação penal brasileira não veda iniciativas com essa finalidade, no entanto, o juiz, o promotor e o advogado necessitam de apoio institucional e suporte da sociedade para criar ou reproduzir programas que se disponham a tais fins, fora da tradicional aplicação da pena de prisão ou mesmo de alguma pena alternativa que desconsidera a situação de abuso de álcool e outras drogas que envolve o infrator.

O apoio institucional é extraído das políticas, preferencialmente explícitas, acerca do abuso de álcool e outras drogas, exteriorizadas pelas instituições a que pertençam magistrados, promotores, advogados e defensores, seja no âmbito de cada Estado da Federação e/ou na posição dos Conselhos Nacionais da Magistratura e do Ministério Público e, também, da Ordem dos Advogados do Brasil. O suporte social para essas ações decorre do natural interesse humano em apoiar a recuperação do abusador de álcool e outras drogas, posição alinhada à ciência, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o uso indevido de substâncias psicoativas problema de saúde pública de ordem internacional que preocupa nações do mundo inteiro, afetando valores culturais, sociais, econômicos e políticos[3].

Outra reflexão necessária ao abordar a ideia de aproximar a Justiça da pessoa que abusa de álcool e outras drogas, é desvincular essa ação da preocupação de que o indivíduo abrangido por alguma forma de atenção iniciada por acordo judicial se afaste definitivamente das causas dos seus problemas, ademais, porque no campo da subjetividade humana, embora as ações devam ser norteadas pela ciência e boas práticas, é providencial a mensagem de Charlie Chaplin “não sois máquinas, homens é que sois”.
As oportunidades legais de aplicar mecanismos de consenso negociado na esfera criminal podem ser encontradas nos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, há muito previstos pela Lei 9099/1995 e, também, recentemente, no acordo de não persecução penal, introduzido no Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019.

Esse novo instituto do direito brasileiro, em linhas gerais, permite ao promotor de Justiça celebrar acordo com o investigado primário e de bons antecedentes que confessar a autoria da infração praticada sem violência ou grave ameaça, punida com pena mínima de até 4 anos de prisão. Nesse cenário, cabe celebrar um pacto que permita o cumprimento de alguma medida que evite o processo, admitindo acordo que permita, por exemplo, a prestação de outra natureza, que deve ser proporcional e a compatível com a infração penal, em tese cometida, cabendo oferta de cuidado e atenção à pessoa abusadora de álcool e outras drogas.

No exercício da prática judiciária, ainda, se surgir dúvida, é possível recorrer à ciência para separar as situações reais daquelas inverídicas em relação à condição de o infrator abusar ou não de álcool e outras drogas. Nesse ponto, vide a previsão do artigo 47 da Lei de Drogas, que permite ao juiz solicitar avaliação que ateste a necessidade de encaminhamento do agente para tratamento, a ser realizada por profissional de saúde com competência específica na forma da lei. Ainda nesse campo da prática judiciária é importante a proximidade das universidades e dos setores da sociedade tradicionalmente ocupados em apoiar e recuperar pessoas que abusam de álcool e outras drogas, inclusive, permitindo ampliar as formas de participação comunitária na administração da Justiça.

Em uma nação riquíssima de normas legislativas como é o Brasil, irrigada por problemas diversos que, por vezes, chegam ao sistema de Justiça porque as demais instâncias de controle não puderam evitar sua prática nem lidar com eles de modo diverso, cuja maior valor é seu povo pacífico e trabalhador, é preciso ampliar o número de profissionais no sistema de Justiça atentos às pessoas que fazem uso abusivo de drogas e álcool e, em razão disso, se envolveram em crimes, aplicando, sempre que possível, mecanismos que ampliem a força educativa da Justiça para apoiar o cuidado e a recuperação do infrator e, assim, prevenir problemas futuros.


[1] Disponível: <www.inpad.org.br/lenad> págs. 36 e 38. Acesso em 20 ago. 2020.

[2] Disponível: <https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/escola-de-homens.htm>. Acesso em 20 ago. 2020.

[3] Biblioteca Virtual em Saúde. Ministério da Saúde. Disponível <http://bvsms.saude.gov.br/ultimas-noticias/2908-20-02-dia-nacional-de-combate-as-drogas-e-ao-alcoolismo>. Acesso 19 ago. 2020.

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