Supremo Tribunal Federal, políticas públicas e responsabilidade
30 de agosto de 2020, 9h12
Tinham uma postura na linha do “self-restraint” e eram muito comuns na jurisprudência daquele Tribunal histórico teses nessa linha restritiva, como o da “questão política”[1], da dificuldade do juízo judicial sobre a oportunidade e conveniência do ato administrativo, da chamada doutrina das “questões Interna Corporis”[2], do tema da relevância e urgência da medida provisória[3], dos limites do controle concentrado de constitucionalidade[4] ou das restrições de conhecimento recursal para se fazer “justiça”[5].
É uma leitura histórica totalmente equivocada a tese que ainda prevalece entre alguns de que essa postura do STF de ontem era o resultado de uma certa covardia ou temor do Tribunal para ampliar os horizontes dos seus julgamentos, especialmente em matéria de direitos fundamentais. Foi a vitória dessa visão opaca que ajudou a eclodir o “triunfo” do ativismo judicial no Brasil.
O que explicava, portanto, aquela postura sempre discreta e reservada do STF e que enervava o espírito daqueles que queria a revolução pelo Tribunal? Parece-me que a resposta está no senso de responsabilidade que se tinha. Não uso o termo “responsabilidade” aqui em sentido vulgar, para significar a característica daquele que é sério o bastante para saber o que está fazendo. Não é isso. A responsabilidade aqui tem um sentido jurídico-constitucional próprio: trata-se do atributo de quem tem a obrigação de responder jurídica e constitucionalmente pelos seus próprios atos.
Esse tema tem relação inusitada — porém necessária — com a questão das políticas públicas e também com a separação de poderes.
A formulação de políticas públicas é atividade político-administrativa complexa, que exige rigor metodológico no trato das melhores informações disponíveis para o diagnóstico do problema, avaliação técnica das alternativas de solução, exame dos custos e dos impactos dessas alternativas, verificação de suas repercussões sobre agentes econômicos, eventuais usuários e administrados em geral, avaliação da pertinência, da adequação, da utilidade e eficiência da medida escolhida, definição de critérios técnicos, orçamentários e econômicos para se avaliar tais atributos, criação de metodologia de verificação, a posteriori, dos impactos e resultados daquela medida escolhida, de forma a corrigir ou calibrar novas políticas.
O gestor público e seus superiores são responsáveis por essas análises e escolhas e respondem tecnicamente perante uma miríade de órgãos de controle interno e externo da Administração Pública. Há ainda o controle político exercido por Senado e Câmara dos Deputados e, ao final, o próprio controle judicial.
Duas leis recentes, inclusive, contribuíram para a consolidação dessa noção de responsabilidade ao tratar da análise de impacto regulatório na elaboração de atos normativos: a Lei 13.848, de 24.06.2019 (Lei das Agências Reguladoras) e a Lei 13.874, de 20.09.2019 (Lei da Liberdade Econômica). No último dia 1/7, o Presidente da República fez publicar o Decreto 10.411/2020, regulamentando a análise de impacto regulatório.
Muito se falou nos últimos anos sobre a possibilidade de análise pelo STF das políticas públicas e, geralmente, o enfoque era o discurso do resguardo dos direitos fundamentais. O que se vê, entretanto, é que o Tribunal não tem desenvolvido expertise ou metodologia para essa avaliação e, na prática, observa-se uma séria de julgados incisivos, que radicalmente desfazem formulações da Administração Pública (ou mesmo leis aprovadas pelo Poder Legislativo) sem que se tenha adequado rigor técnico nessa ação revisional.
Esse é um tema que carece de enorme desenvolvimento ainda no campo do direito constitucional. Como é possível revisar/cassar atos político-administrativos complexos sem se ter preparo técnico para compreender o problema e suas implicações? E mais, como é possível se admitir decisões dessa envergadura sem que o próprio STF seja cobrado pelos efeitos concretos de seu julgamento? Nesse deserto de “controle”, o ativismo prospera o que, inclusive, irradia para todo o Poder Judiciário.
Anos atrás, o hoje Ministro Gilmar Mendes fazia publicar o seu texto acerca da revisão de fatos e prognoses legislativas pelo órgão judicial, uma porta extremamente promissora para a construção de um quadro de responsabilidade para as decisões da jurisdição constitucional. Também na mesma linha, o artigo 9º, parágrafo 1º, da Lei 9.868, de 10/11/1999, abria a possibilidade de o Tribunal designar perito para emitir parecer técnico ou ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. O próprio princípio da proporcionalidade apresentava instrumental primitivo para isso (ao articular conceitos como “adequação”, “aptidão”, “necessidade”, etc). Esse fio visivelmente se perdeu com o tempo.
O que se vê hoje efetivamente é que falta ao próprio STF a identificação clara de suas próprias prognoses de julgamento. As decisões já partem de “discurso” e nele terminam. As audiências públicas sofrem enorme pressão para se tornarem capítulos protocolares ou espaços de mais discurso. A ampliação exagerada da participação de amici curiae não se traduziu em qualidade das decisões, mas, ao contrário, em enorme confusão de informações descontextualizadas ou parciais, com partes antagônicas apresentando, algumas vezes, números incompatíveis entre si. Como não há preparo técnico e metodologia do Tribunal para verificar e contrastar esses dados, na prática o Ministro simplesmente “escolhe” o número e a “fonte” que caiba melhor em seu raciocínio. O mesmo fenômeno se observa nas contribuições em plenário.
Tive a honra de participar recentemente da publicação de obra que se destinou a estudar decisões controversas do STF nos últimos anos[6]. Vários dos julgados ali tratados são criticáveis e contrastáveis simplesmente com uma análise de “impacto jurisprudencial”, por meio do qual se percebe concretamente que decisões foram ruins ou prejudiciais.
Nesse mês, o ministro Gilmar Mendes levantou, em encontro virtual com representantes do MST, a necessidade de o país ter uma “lei de responsabilidade social”. A sugestão é inegavelmente boa. Entretanto, muito mais prioritário, diante do quadro de onipresença do Judiciário em temas de políticas públicas, seria iniciativa de estabelecimento da necessidade de uma espécie de “análise de impacto regulatório” das decisões judiciais ao qual também se vinculasse o próprio STF. As importantes decisões tomadas durante o período de pandemia, por exemplo, poderiam ser um excelente case para esse controle a posteriori de eficácia e utilidade daquilo que foi decidido.
O setor da agricultura nos oferece um grande exemplo dos problemas de não se ter exigências de balizas técnicas e prognoses corretas para uma decisão judicial.
Embora seja atividade econômica pujante e que, mesmo durante a pandemia, não parou de crescer, a agropecuária sofre no Judiciário, já que é repetidamente alvo de discursos radicais e vítima de fake news que, muitas vezes, são divulgados por ONGs e Ministério Público e adotados por juízes e ministros. Se o assunto é regularização fundiária, o produtor rural é “grileiro”; se se trata de questões de propriedade o agricultor é o “invasor de terras”; se o tema é meio ambiente, a atividade agrícola é a “desmatadora” ou “poluidora”; se se fala de insumos e tecnologia de produção o produtor é cruel ou irresponsável por usar produtos supostamente cancerígenos[7]. Todas essas premissas são falsas e podem ser facilmente contestadas com dados.
A pressuposição equivocada (e, muitas vezes, maldosa) na cabeça do julgador, não abre espaço para olhar os números e as informações técnicas consistentes que estão disponíveis e que simplesmente são ignoradas na hora do julgamento, de forma a dar espaço ao “discurso”.
Como conclusão, o ponto é esse: da mesma forma que o Poder Executivo e Poder Legislativo precisam ter “responsabilidade” na hora de elaborar uma política pública ou aprovar uma lei, também o STF precisa o ter na hora de julgar e eventualmente decidir por sua inconstitucionalidade. A responsabilidade aqui não é “seriedade”, mas dedicação extrema para apuração de informações, empenho para se ter rigor técnico e metodológico na análise dessas informações, clareza e auto-controle de suas prognoses de decisão e, acima de tudo, análise prospectiva dos efeitos concretos dessas decisões.
Aliás, isso não precisa ser ação única do próprio Tribunal. O Congresso Nacional, especialmente o Senado, poderia instituir comissão para esse fim: examinar as prognoses do julgador, apurar seus acertos e seus erros de premissas e de substância, verificar o impacto positivo ou negativo da decisão e, ao final, sugerir encaminhamentos que pudessem aprimorar o processo cognitivo do Tribunal. Dar-se-ia importantíssimo passo no sentido de um diálogo institucional efetivo.
O fato é que a inexistência dessa “análise de impacto regulatório jurisprudencial” não concede ao STF a responsabilidade institucional que necessariamente se precisa ter diante de decisões de envergadura constitucional, especialmente em matéria de políticas públicas ou mesmo em temas plenamente legislados pelo Parlamento com prognoses bem definidas. Há um “preço” institucional a ser pago pela assunção de determinadas atribuições e poderes no controle judicial da jurisdição constitucional, “preço” esse que não pode ser pago com mero “discurso”, ilações genéricas ou suposições pessoais. O não pagamento desse preço tem trazido desequilíbrio na relação entre os Poderes e absoluta insegurança jurídica para o jurisdicionado.
[1] A tese da “political questions” foi, pela primeira vez, trazida no STF ainda no paradigmático HC nº 300, de 18.04.1892, quando Rui Barbosa defendeu a análise do Poder Judiciário quando o caso envolvesse a aplicação de direitos civis, mesmo nas situações que tratem de questões políticas. A situação envolvia o exame de conveniência e oportunidade para a decretação do Estado de Emergência. Houve alteração desse posicionamento nos HCs 1063 e 1073, julgados em 1898, mas, de uma forma geral, o Tribunal manteve a linha de raciocínio de que haveria um espaço de apreciação política infenso ao controle judicial, mesmo após a previsão pioneira da proteção judicial efetiva com o art. 141, § 4º, da Constituição de 1946;
[2] Por essa linha, haveria uma proibição do exame jurisdicional das questões internas de trabalho e atuação das Casas Legislativas, como a que diz respeito à aplicação de seus respectivos Regimentos Internos (MS nº 20.509, de 1985);
[3] A título de referência, veja a ADI nº 162 de 1989;
[4] Tanto é assim que a ação de descumprimento de preceito fundamental (Lei nº 9.882, de 03.12.1999) serviu fundamentalmente para reunir aquilo que, na jurisprudência mais antiga, era impossível de ser questionada no controle difuso. Também é interessante relembrar a leitura restritiva que o Tribunal anteriormente tinha em relação aos legitimados para as ações do controle concentrado;
[5] A grande referência desse assunto – que é vastíssimo – está na Súmula nº 400 do STF que estabelecia que “decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra “a” do art. 101, III, da Constituição Federal”. A súmula foi bastante polêmica e, embora com posicionamentos tópicos contrárias a ela antes de 2003, somente após esse período é que se consolidou a tese de que não se aplicaria em matéria de índole constitucional;
[6] Toron, Alberto Zacharias et al. Decisões controversas do STF: Direito constitucional em casos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020. Contribui com artigo tratando do caso da Raposa Serra do Sol (pág. 231);
[7] Em virtude de premissas como essas, a agropecuária e sua cadeia produtiva tem sofrido com decisões preocupantes: o Tribunal novamente reabre o debate sobre demarcação de terras indígenas com o RE nº 1.017.365, renovando a versão maldosa de que o produtor rural é invasor de terras e, criando assim, insegurança jurídica e insegurança no campo. No tema do meio ambiente, sempre se nota a mentalidade hostil ao setor, seja para definir a imprescritibilidade da pretensão de reparação civil decorrente de dano ambiental (RE nº 654.833), o que expõe todo o agricultor brasileiro a ações de pressão e constrangimento do Ministério Público, seja mesmo para deslegitimar legislação que definiram parâmetros claros sobre a proteção ambiental (veja, nesse sentido, a ADI nº 6.446, ainda sem julgamento, cuja decisão poderá significar o fim do Código Florestal com impactos negativos devastadores na agricultura). A agricultura é a maior protetora do meio ambiente (com 20,5% de área protegida do Brasil nas propriedades agrícolas) e a regularização fundiária é o melhor instrumento para atingir esse fim (e isso não é “discurso”. Há dados claros que comprovam matematicamente isso). Ainda nessa linha, há grande temor sobre o “relato oficial” sobre a questão ambiental que o Ministro Roberto Barroso quer elaborar a partir da audiência pública marcada no âmbito da ADPF nº 708 (ADO nº 60) para que não se cometa injustiças com os mais de 5 milhões de agricultores brasileiros. Outro tema importante para o agricultor e que pode contar com uma profunda incompreensão técnica do Tribunal está na análise dos defensivos agrícolas, insumo fundamental da atividade que, embora não ofereçam risco à saúde ou ao meio ambiente (o que é comprovado por análises científicas e técnicas de ANVISA, IBAMA e MAPA), são repetidamente acusados de causarem câncer, sem que haja qualquer respaldo técnico (ADI nº 5553, ADPF nº 667, ADPF nº 599 e ADI nº 6137. Veja-se o que se decidiu na ADPF nº 656). Seria possível ainda citar o caso do tabelamento do frete (ADI nº 5956 e ADI nº 5959) com enormes prejuízos para a cadeia produtiva ou mesmo o entendimento acerca da questão da indenização por danos morais coletivos decorrentes do excesso de peso de carga no transporte rodoviário (RESP nº 1.574.350 e RESP nº 1.678.883).
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