Opinião

Notas sobre proteção de dados, prova digital e o devido processo penal - parte I

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

18 de agosto de 2020, 14h11

Em 10 de julho passado, por ocasião do VI do Seminário Internacional  "Proteção de dados pessoais na segurança pública e investigação criminal", realizado no âmbito da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional Brasileiro, apresentei comunicação sobre o tema "Proteção de dados, prova digital e devido processo legal".

Este breve ensaio contempla considerações sintéticas oferecidas à Comissão de Juristas, contando ainda com referência expressa à contribuição de grupo coordenado pelas professoras Flaviane Magalhães, Victória de Sulocki e pelo professor Fauzi Hassan Choukr e por mim a respeito do tema "prova digital", material submetido à apreciação da comissão da Câmara dos Deputados encarregada da redação do novo Código de Processo Penal (CPP) [1].

Da transversalidade das questões que envolvem o mundo digital, a segurança pública e o processo penal
Uma primeira necessária aproximação ao tema geral passa pelo reconhecimento da transversalidade das questões. É inevitável que os assuntos que envolvam a segurança pública e o processo penal conversem entre si, ainda que sob diferentes perspectivas.

Na realidade, mesmo o rigor normativo tradicional em alguns pontos termina cedendo perigosamente à permeabilidade dos assuntos, de que é exemplo a previsão referida no inciso I do artigo 282 do Código de Processo Penal (CPP) de que as medidas cautelares poderão ser aplicadas para "evitar a prática de infrações penais".[2]

Em termos de administração da Justiça criminal, a ignorância dos diferentes âmbitos peculiares à segurança pública e à apuração da responsabilidade penal se traduz na dissolução de garantias, afetadas em virtude das distintas e por vezes conflitantes vocações dos institutos próprios de cada uma dessas áreas.

É paradoxal, no entanto, que na sociedade da informação digital as fronteiras disciplinares percam sentido e o isolamento conceitual resulte por prejudicar severamente os campos do saber jurídico costumeiramente dedicados a investigar recortes mais estreitos das respectivas matérias.

O ideal como atitude analítica é ter do fenômeno digital uma visão que contemple o amplo horizonte que o consagra como fator de inevitável condicionamento da vida contemporânea, deduzindo, todavia, suas particularidades que, muitas vezes em razão de serem objeto de um mesmo "pacote digital", confundem-se até sob o olhar atento do teórico.

Nesse caso, a visão do teórico deve partir de um mirante que lhe permita desafiar a realidade por meio do poder da imaginação, enxergando o real, mas divisando o que ainda não é, ou seja, aquilo que existe apenas em potência.

Caminhar pelo "mundo concreto" e pensar não apenas nele, mas nas condições de possibilidade dos mundos alternativos futuros, é essencial em virtude do reconhecimento do caráter complexo e dinâmico da própria realidade.

A teorização neste caso funciona como chave de leitura via oposição dialética, isto é, "como disciplinamento de um objeto equacionado com a criatividade. Método ou/e imaginação" [3].

O tema da complexidade também é fundamental, como sublinhava Ludwig von Bertalanffy, ao constatar que conceitos e noções fixas aplicadas aos Sistemas não davam conta, quer descritiva, quer prescritivamente, de uma rede intrincada de relações, rede indomável por um ou por poucos princípios em tese hegemônicos. Nas palavras do pensador original da contemporânea "teoria dos sistemas":

"A teoria geral dos sistemas é então uma investigação científica de 'conjuntos' e 'totalidades' que, não faz muito tempo, eram considerados noções metafísicas, transcendendo os limites da ciência. Concepções novas, modelos e campos matemáticos desenvolveram-se para lidar com eles, tais como a teoria dinâmica dos sistemas, a cibernética, a teoria dos autônomos, análise de sistemas por teoria da fila, da rede, dos gráficos e outros.

(…)

O que se deve definir e descrever como sistema não é uma questão com uma resposta óbvia e trivial. Haverá rápido consenso de que a galáxia, o cachorro, a célula e o átomo são sistemas reais, isto é, entidades percebidas ou inferidas da observação, e existindo independentemente de um observador. Por outro lado, existem sistemas conceituais como a lógica, matemática (mas incluindo, por exemplo, a música) que são essencialmente construtos simbólicos, com sistemas abstratos (ciência) como subclasse da última, isto é, sistemas conceituais correspondendo à realidade" [4].

Nesse contexto compreende-se que Max Tegmark [5], Katja de Vries [6] e Alessandro Candeas [7] recorram a distopias para tratar de singularidades, oscilando do domínio da inteligência artificial sobre a natural ao receio das fronteiras extremas dessa inteligência artificial que, em atenção aos nossos desejos por mais e mais segurança, como no texto de Vries sobre os "cachorros eletrônicos", terminam por nos enredar em esquemas de hipervigilância.

A apuração da responsabilidade penal como função exercida no contexto da jurisdição criminal acaba perdida no emaranhado da segurança como prevenção de delitos. Algumas das perguntas clássicas da criminologia crítica (segurança em favor de quem? Exercida por quem? Em que condições e sob quais critérios?) ficam pelo caminho, enquanto a estética digital produz o inebriante efeito de fazer as pessoas suporem uma homogeneidade social inconciliável com a extraordinária heterogeneidade real.

As reações são previsíveis e problemáticas. O sentimento difuso de insegurança aumenta na proporção em que é incentivada a demanda por segurança. Os dados digitais temporariamente convertem-se de mercadorias em artefatos empregados em uma disputa política que no rastro da globalização limita significativamente o poder de interferência do próprio Estado sem com isso impedir que em reação à restrição "territorial" seja concentrada e incrementada a violência física e simbólica por agentes estatais [8].

A busca pelo equilíbrio é, necessariamente, a busca por domesticar o "poder digital". Sem controle, transparência, equilíbrio e prestação pública de contas, quaisquer que sejam os sujeitos que o exerçam estarão sempre em condições de concentrar este poder e o empregar não no interesse da comunidade, hoje, inevitavelmente, um corpo social que transcende as fronteiras dos Estados nacionais, mas em proveito próprio.

P.S.: Em linhas gerais, trata-se da comunicação do autor no painel VI do Seminário Internacional da Comissão de Juristas: “Proteção de dados pessoais na segurança pública e investigação criminal”, promovido pela Câmara dos Deputados do Congresso Nacional Brasileiro de forma online e transmitido pelo canal oficial da Câmara dos Deputados na plataforma YouTube. Data: 10 de julho de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=J4m5yiQnLbI&feature=youtu.be. Consultado em 13 de julho de 2020. Optou-se por agregar informações que pela limitação de tempo não puderam ser objeto de consideração circunstanciada na oportunidade. Registro aqui meus agradecimentos aos ministros Nefi Cordeiro e Antonio Saldanha e aos e às integrantes da Comissão de Juristas pelo generoso convite.

 


[1] MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan; SULOCKI, Victória-Amália de Barros Godawa; PRADO, Geraldo; CHOUKR, Fauzi Hassan (coord.). Novo Código Processual Penal: sugestões do Grupo de Trabalho de apoio à Comissão Especial do Código. Processo Penal e tecnologia – Princípios, atos de comunicação e provas. Modelo acusatório e gestão da administração da justiça. Processo Penal e pessoa jurídica. Processo em audiências. Disposições transitórias. Brasília, 2020.

[2] "Artigo 282, CPP. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011)".

[3] Entre tantas virtudes dos ensinamentos de Paulo Freire talvez seja a capacidade de articular cognição e imaginação sem a qual o mundo da vida giraria permanentemente em torno de si mesmo, a contribuição mais relevante para as práticas transformadoras.

[4] BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Tradução de Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 7ª edição, 2013. p. 14 e 16.

[5] TEGMARK, Max. Life 3.0: Being Human in the Age of Artificial Intelligence. New York: Alfred A. Knopf, 2017.

[6] VRIES, Katja de. Privacy, due process and the computational turn: a parable and a first analysis. In: HILDEBRANDT, Mireille; VRIES, Katja de (ed.). Privacy, Due Process and the Computational Turn: The philosophy of law meets the philosophy of technology. Abingdon, Nova Iorque: Routledge, 2013.

[7] CANDEAS, Alessandro. Hybris: inteligência artificial e a revanche do inconsciente. Barueri: Novo Século Editora, 2018.

[8] A propósito: OWEN, Taylor. Chapter one: Losing Control. In: Disruptive Power: The Crisis of the State in the Digital Age. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015. p. 1-21. De notar que a conversão dos dados de mercadoria em artefatos bélicos não importa em perda da condição de mercadoria, que parece ser o elemento de permanência que orienta toda a disputa em torno de si. A mencionada conversão cumpre aí papel meramente instrumental, todavia muito perigoso para a sobrevivência do Estado de Direito.

Autores

  • é sócio da Geraldo Prado Consultoria Jurídica, desembargador aposentado do TJ-RJ e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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