Opinião

Os 30 anos do ECA e o Habeas Corpus coletivo nº 143.988/ES

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10 de agosto de 2020, 17h32

"Na minha condição, não dá para querer muito" — respondeu Pedro, 15 anos de idade, sétimo ano do ensino fundamental, cabelos cacheados, alto, mãe falecida, pai ausente, acolhido institucionalmente junto com os irmãos desde os primeiros anos de vida e, à época, em cumprimento de medida socioeducativa de internação, com uma clareza que não deveria ser permitida a alguém tão jovem.

O ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) completou 30 anos e é neste marco que o STF julgará um dos mais importantes processos para proteção e tutela de direitos fundamentais de adolescentes.

Os ministros se debruçarão no habeas corpus coletivo n.º 143.988/ES, impetrado pela Defensoria Pública do Espírito Santo, com liminar deferida em agosto de 2018, pelo Ministro  Edson Fachin, que  determinou que a Unidade Socioeducativa de Norte (Unisnorte), tenha taxa de ocupação limitada, equivalente à até 119%, o que ensejou reavaliações de medidas socioeducativas, o que de forma gradativa reduziu a taxa de ocupação da unidade.

Os efeitos positivos não se restringiram à redução da superlotação. Com a redução da taxa de ocupação, houve a possibilidade de trabalhar o objetivo pedagógico da medida socioeducativa de internação. Verificou-se melhoria nas estruturas físicas da Unidade. Os meninos internados têm acesso à escolarização regular e cursos, atividades esportivas e de lazer. Reduziu-se o número de ocorrências e motins. Diminuíram os relatos de excessos em procedimentos de segurança e agressões. Não foram registrados casos de mortes.

Para além da liminar, e como sua consequência, tivemos a substancial alteração do quadro fático de todas as unidades socioeducativas do Espírito Santo, garantindo que as taxas de ocupação respeitassem o percentual máximo fixado na liminar.

Em maio de 2019 tivemos a extensão dos efeitos da liminar para o Rio de Janeiro, Ceará, Bahia e Pernambuco, de modo que o STF potencializou os efeitos do  habeas corpus coletivo, que é importante instrumento para democratização do acesso à tutela jurisdicional, meio eficaz para suprir o déficit de acesso à justiça,  diminuindo o número de processos individuais e reforçando o sentimento de justiça e igualdade.

Mesmo sob a égide de uma das legislações mais avançadas do mundo, no que diz respeito aos direitos humanos, a primeira a trazer para uma lei específica, os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, as Unidades Socioeducativas do Estado do Espírito Santo apresentavam múltiplas violações de direitos fundamentais de adolescentes e jovens.

Instalações físicas insalubres, superlotação, problemas na qualidade da alimentação e água, ausência de ensino regular e profissionalizante, dificuldades de acesso à saúde, constantes motins, reiterados relatos de maus tratos, agressões e tratamentos degradantes, mortes, eram alguns dos graves problemas que faziam parte do cotidiano de meninos e meninas nas Unidades Socioeducativas do Estado.

Violações que não se coadunam com o disposto no artigo 4º, do ECA, que, na linha do artigo 227 da Constituição da República de 1988, determina ser “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

Tampouco com os arts. 121 e 124, do ECA, que tratam das medidas socioeducativas privativas de liberdade, e determinam que devem respeitar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento de adolescentes e jovens; bem como garantem, como direitos dos meninos e das meninas em cumprimento de medida, ser tratados com dignidade, habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade, receber escolarização e profissionalização, realizar atividades culturais, esportivas e de lazer, dentre outros.

Esse grave quadro de violações motivou peticionamento perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a concessão de medidas provisórias de urgência contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso da Unidade de Internação Socioeducativa — Unis) até hoje vigentes e, no plano interno, o ajuizamento de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), em 2019, pela Procuradoria Geral da República, único incidente a tratar de socioeducação.

Omissões contra adolescentes sujeitos a medidas socieoducativas se repetem nas mais variadas regiões do país. Basta lembrar a tragédia decorrente do incêndio que matou nove adolescentes em centro de internação em Goiás em 2018. Ou, ainda, o contexto de caos que assolou o Estado do Ceará e levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a expedir medidas cautelares contra o Brasil em 2015.

A (Unisnorte) era, também, palco de diversas violações, potencializadas pela quantidade excessiva de internados — que chegou a quase três vezes a capacidade da Unidade.

Além da superlotação, eram verificadas outras condições degradantes. Alojamentos criados para um adolescente, abrigavam de 10 a 15 meninos. Muitos se viam obrigados a dormir em redes improvisadas com lençóis, em cima do vaso sanitário ou mesmo em área descoberta do alojamento, expostos a toda sorte de intempéries. As condições extremamente insalubres dos alojamentos, com péssima higiene, insetos e ratos. Não se garantia escolarização. Relatos de agressões entre socioeducandos e de excessos por parte de agentes socioeducativos eram cotidianos.

Os parâmetros traçados no Habeas Corpus coletivo, trouxeram novo padrão para o cumprimento do ECA, tanto que muitos já beberam de sua fonte, como a  Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça — CNJ, que  os traz como referência balizadora na grave situação de pandemia da Covid-19, com reflexos em todo o país.

Há muito a caminhar na proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes, especialmente dos milhares de meninos e meninas em cumprimento de medida socioeducativa de internação, para quem falta a infância e a quem não se permite mais que "sonhar em conta medida".

Não se pode negar que a liminar concedida permitiu grandes avanços na efetivação de direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto e pela Constituição de 1988.

Imperiosa a manutenção das medidas concedidas em sede de decisão liminar, num processo no qual o Brasil haverá de reconhecer que todos os seus filhos e todas as suas filhas merecem respeito, independentemente de raça, renda ou classe social.

Que o STF possa concretizar os desígnios constitucionais, neste processo paradigmático, para todos os jovens brasileiros.

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